Vão longe os tempos do braço erguido e do punho fechado. A
novidade da prisão de José Dirceu encontra-se na esfera das narrativas. Mesmo
para o PT, o “preso político” do mensalão reduziu-se a um político preso. A
lacônica nota partidária assinada por Rui Falcão sequer menciona seu nome. Na
declaração agourenta do ministro Ricardo Berzoini, um homem de Lula, “cabe aos
investigados tomarem as providências que julgarem necessárias para se
defenderem perante a Justiça”. O celebrado “guerreiro do povo brasileiro” não
perdeu apenas os andrajos de liberdade pendurados no mancebo da prisão
domiciliar: foi condenado por seu partido ao degredo político. É uma forma de
adiar a reflexão inevitável sobre as fontes ideológicas do apodrecimento ético
do PT.
O PT traçou uma linha na areia separando a “corrupção pela
causa”, virtuosa, da “corrupção pelo vil metal”, pecaminosa. Corrupção
virtuosa: no mensalão, intelectuais petistas produziram doutos textos
consagrados à defesa da apropriação partidária de recursos públicos, e a
relativa pobreza de Genoino tornou-se símbolo e estandarte. Corrupção
pecaminosa: Dirceu, indicam as provas oferecidas pelos delatores, usou sua
influência no governo para constituir patrimônio pessoal. O guerreiro caído
cruzou a linha proibida. Seu degredo é uma desesperada tentativa de perenizar a
fronteira que se apaga sob ação do vento.
Não existe pecado do lado de cá do Equador. Se o país se
divide entre Povo e Elite, e se o Partido é a ferramenta da emancipação popular
de um jugo de 500 anos, então a “corrupção pela causa” não é corrupção, mas um
expediente legítimo na jornada libertadora. A fórmula inflexível, refletida nos
punhos cerrados do mensalão, tem suas próprias implicações. É em nome dela que
Dirceu experimenta a condenação mais implacável. Numa ordem unida à qual só
escapam cortesãos inúteis e vozes periféricas de aluguel, o Partido imprime-lhe
na fronte o estigma do traidor. “Bode expiatório”, disse seu advogado, numa
referência aberta a interpretação.
Dirceu é Dirceu, a segunda face do PT, não um Duque
qualquer, um Paulinho Land Rover ou um Vargas que só era André. Dobrando-se ao
vil metal, o guerreiro traidor remexe a areia, desmarca um limite, desfaz uma
certeza. Se até ele transitou de uma corrupção à outra, como separá-las
nitidamente, sanitizando a primeira e satanizando a segunda? O degredo
silencioso de Dirceu, que equivale a uma gritaria, destina-se a abafar a
pergunta incômoda. Os juízes do Partido temem menos a hipótese improvável de
uma delação premiada do guerreiro traidor que a exposição pública das conexões
entre a corrupção virtuosa e a corrupção pecaminosa.
A linha divisória riscada pelo PT reflete uma lógica
religiosa, típica dos partidos autoritários. A corrupção virtuosa é aquela que
serve à finalidade transcendente de salvação do Povo; a pecaminosa, pelo
contrário, serve ao objetivo terreno de acumulação individual de bens
materiais. Na política democrática, contudo, a oposição relevante é entre o
público e o privado, não entre a salvação coletiva e o enriquecimento pessoal.
Segundo essa lógica, cujo critério são os meios, o guerreiro não caiu sozinho.
Revisito as fotografias do líder estudantil preso, com
centenas de outros, no Congresso da UNE de Ibiúna, em 1968, e de sua partida
para o exílio, na base aérea do Galeão, com 12 outros, em 1969. Vistas da torre
de observação do presente, elas têm algo de profundamente melancólico: os
sinais de um fracasso coletivo. Mas, na história que se encerra, há também a
prova de um teorema: a “corrupção virtuosa” conduz, inelutavelmente, à “corrupção
pecaminosa”. O PT não deveria renegar seu guerreiro caído, nem defendê-lo, mas
reavaliar a si mesmo no espelho de sua trajetória. Para nunca mais cerrar o
punho contra as instituições da democracia.