Emoção é coisa rara na Corte Especial, órgão máximo do
Superior Tribunal de Justiça. Os julgamentos daquela quarta-feira em Brasília
avançavam na rotina de sobriedade dos juízes mais antigos do STJ, até que
chegou a vez do “Recurso Especial 0142548-2”.
Houve quem duvidasse do que estava escrito no sumário.
Alguns leram de novo a ementa, que anunciava: “Embargos de declaração nos
embargos de declaração nos embargos de declaração no agravo regimental no
recurso extraordinário nos embargos de declaração nos embargos de declaração
nos embargos de declaração no agravo regimental no recurso especial.”
Resumia uma sucessão de recursos judiciais que pretendiam
revisão de uma sentença há muito considerada definitiva num processo criminal.
No sistema eletrônico do tribunal, onde cada ação é
classificada por abreviaturas da respectiva categoria processual, a
extravagância jurídica ficara registrada da seguinte forma: “EDcl nos EDcl nos
EDcl no AgRg no RE nos EDcl nos EDcl nos EDcl no AgRg no Recurso Especial”.
O caso foi liquidado na Corte Especial com unânime ironia e
uma só palavra: “Rejeitados.” E assim terminou um processo que há mais de uma
década havia sido encerrado por sentença teoricamente irrecorrível (“transitado
em julgado”).
Não se trata de caso isolado em um país conflagrado nos
tribunais. O Brasil já tem um processo em andamento para cada dois habitantes.
São mais de 100 milhões de ações, estima o Conselho Nacional de Justiça, para
uma população de que chegou a 204 milhões nesta semana, segundo o IBGE.
Medida pelo número de autos judiciais, a litigiosidade
avançou nos últimos cinco anos ao dobro do ritmo do crescimento populacional. E
o Judiciário não consegue resolver mais do que três em cada dez processos
pendentes. Cada um dos 17 mil juízes brasileiros produz em média quatro
sentenças por dia, ou cerca de 1.600 por ano.
Resultado: os tribunais estão com um estoque de mais de 70
milhões de casos sem decisão, e receberam cerca de 30 milhões novos nos últimos
12 meses. E de cada 100 ações apenas 29 recebem sentença — sempre passível de
recursos.
Muitos casos parecem intermináveis, como o da catástrofe do
barco de turismo que afundou na Baía de Guanabara na noite do réveillon de
1988. Das 153 pessoas a bordo do Bateau Mouche, 55 morreram no mar de
Copacabana. Passaram-se 15 anos até a condenação dos responsáveis.
A sentença transitou em julgado em 2003, mas o enredo
jurídico ainda não acabou. Um dos proprietários do barco, Álvaro Pereira da
Costa, foi condenado a 18 anos de cadeia e fugiu do país uma década atrás. Em
outubro passado, ele recorreu para anular a condenação. Vinte e sete anos
depois da tragédia, o processo continua.
— Excesso de recursos é uma deformidade do nosso ordenamento
jurídico — diz Vladimir Aras, professor de direito penal e procurador da
República: — Cada processo vira uma centopeia de recursos protelatórios, para
evitar condenações definitivas, que já passaram pela reanálise dos tribunais de
Justiça e foram revistas em instância superior. Enquanto isso, o relógio da
prescrição das penas continua avançando.
O Superior Tribunal de Justiça tem poder sobre 2,6 mil
distritos judiciais em todo o país. Pelo protocolo do tribunal, em Brasília,
ingressaram 127,3 mil recursos processuais no primeiro semestre — o equivalente
a 707 por dia, ou 29 por hora. Esses novos casos, somaram-se aos 389 mil
pendentes de decisão desde o ano passado.
Se quisessem zerar esse estoque ainda este ano, os 33 juízes
do STJ precisariam emitir 119 sentenças por dia — duas por minuto — até a
meia-noite de 31 de dezembro. Sem parar.
Esse é o panorama inquietante de um sistema judicial
excessivo em formalidades, que resultaram numa miríade de expedientes.
No Supremo Tribunal Federal, por exemplo, os pesquisadores
Joaquim Falcão, Pablo Cerdeira e Diego Arguelhes, da Fundação Getulio Vargas,
ficaram surpreendidos com o milhão e meio de processos recebidos pela Corte nas
duas décadas seguintes à promulgação da Constituição de 1988.
— Procuramos saber como chegaram ao Supremo — conta Falcão:
— Descobrimos que o tribunal é como um casarão com mais de meia centena de
portas de entrada.
Até 2011, existiam 52 formas (classes processuais
diferentes) de se recorrer ao STF. Meses atrás foi criada outra, a do “Agravo
em Recurso Extraordinário”. Agora, são 53 portas, das quais 37 usadas
rotineiramente.
A leveza arquitetônica da sede do Supremo, em Brasília, oculta
um labirinto judicial adornado por relíquias do mobiliário em jacarandá do
século XIX. Ali, o tempo é relativo: uma decisão pode sair em 44 dias (média
para liminares) ou demorar mais de duas décadas (em disputas agrárias ou
urbanas, como uso de cintos de segurança em transporte coletivo).
O STF é um tribunal constitucional que, também, atua como
Corte recursal das cortes estaduais. Seu acervo contém processos históricos
como o da expulsão da família real do Brasil e o caso do mensalão (53 sessões
de julgamento, 38 réus e quase 100 mil páginas de autos), mas, também, registra
decisões sobre vulgaridades como o furto de seis barras de chocolate num
supermercado de São Paulo, uma briga de vizinhos por causa de duas galinhas em
Rochedo de Minas, a 300 quilômetros de Belo Horizonte, e até um embate pela
disposição de cadeiras durante um júri de homicídio em Turiaçu, a 460
quilômetros de São Luís.
— Cinco decisões corriqueiras de um juiz, em processos na
primeira instância, acabam em 25 recursos aos tribunais estaduais e, depois, em
mais dois às cortes superiores — repete Luiz Fux, juiz do Supremo, em palestras
a advogados sobre o novo Código de Processo Civil, que entra em vigor no
próximo ano com o objetivo de reduzir o volume de apelações judiciais.
— Temos 800 mil ações sobre uma mesma tese jurídica, logo,
elas se transformam em 800 mil recursos — acrescenta. — O novo código pretende
inibir isso. Garantir o direito de defesa não significa lançar mão de
infindáveis recursos.
Os principais protagonistas dessa “litigiosidade
desenfreada”, como qualifica Fux, são o setor público, o sistema financeiro e
telefônicas. Esses três segmentos são parte interessada em três de cada dez
processos em curso no país.
Governos federal, estaduais e municipais integram 23% dos
casos, segundo o Conselho Nacional de Justiça. Têm mais de 30 milhões de ações
fiscais pendentes nos tribunais e, na média, acrescentam outras três milhões a
cada ano. Na prática, a Fazenda pública e empresas privadas passaram a usar a
Justiça como instrumento de planejamento de caixa.
São várias as consequências dessa conflagração judicial.
Todas conduzem ao império da injustiça.
Uma das sequelas é o efeito da morosidade nos tribunais: “No
Brasil, cerca de 41% das pessoas privadas de liberdade são presos sem
condenação”, informa o Departamento Penitenciário Nacional. “Significa dizer
que quatro em cada dez presos estão encarcerados sem terem sido julgados e
condenados”.
Segundo o governo, a situação é “alarmante” em um terço dos
presídios nacionais, porque “60% dos presos provisórios estão custodiados há
mais de 90 dias aguardando julgamento”. Em junho do ano passado, 99% dos presos
provisórios do Ceará estavam há mais de três meses encarcerados e sem
perspectiva de julgamento. Em Alagoas, eram 93% e no Mato Grosso, 80%.
Outra resultante é o predomínio da impunidade, especialmente
nos crimes de colarinho branco, como corrupção e lavagem de dinheiro.
No ano passado, entre os 607 mil presos em todo o país
contavam-se apenas 600 pessoas com sentenças por corrupção (ativa e passiva).
Já os presos e condenados por tráfico de drogas somavam 160
mil, representando 27% do total de sentenciados em presídios.
Porém, em 23 estados não havia um único preso e condenado
por lavagem de dinheiro do tráfico de drogas, negócio dos mais lucrativos do
submundo do crime (nesse quesito, a pesquisa do Ministério da Justiça não
considerou São Paulo, Rio, Tocantins e DF por insuficiência de informações).
O quadro nacional sobre crimes de colarinho branco começou a
mudar em outubro passado, com as primeiras condenações de intermediários
financeiros da corrupção na Petrobras flagrados na lavagem de dinheiro do
narcotráfico.
O caso Petrobras se tornou paradigma. O Ministério Público e
a Justiça Federal apostaram em acordos de colaboração, o que possibilitou
confissões, celeridade processual e uma inédita repatriação de recursos
desviados para o exterior.
— Sem esses acordos seria impossível trazer o dinheiro de
volta — diz o procurador Vladimir Aras, que chefia o Departamento de
Recuperação de Ativos e Cooperação Internacional do Ministério da Justiça: — Se
não houvesse acordo com os denunciados, só seria possível repatriar ativos
bloqueados no exterior depois da confirmação da sentença definitiva, transitada
em julgado.
O governo estima em R$ 700 milhões o total bloqueado no
exterior e à espera de repatriação por falta de sentença definitiva nos
processos. Como o Brasil admite uma miríade de recursos judiciais, é possível
que essa dinheirama fique retida até a prescrição dos crimes e, em seguida,
seja restituída a quem desviou. E quando isso acontece, o crime compensa.