O Evangelho ensina. Quando tentaram intrigá-lo com as autoridades,
perguntando-lhe se era permitido pagar imposto, Jesus mostrou a efígie do
imperador na moeda e foi claríssimo: “Dai a César o que é de César e a Deus o
que é de Deus.” Mas parece que no Brasil essa página não existe ou saiu
truncada. Aqui igreja dá adeus a imposto e goza de isenção fiscal. Mesmo num
ajuste que se quer duro, isso não se debate.
Poucas coisas sinalizam com tanta clareza o retrocesso que
enreda o Brasil atual quanto a necessidade de se insistir na defesa do Estado
laico. Ou seja, leigo e neutro, que aceite as diferentes religiões mas não
professe nenhuma delas.
Devia ser algo já resolvido. Mas não é. A todo momento vemos
sinais de que é preciso ficar atento para não perder essa conquista
fundamental.
Diz o artigo 5º da Constituição: “É inviolável a liberdade
de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos
religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a
suas liturgias.”
O Código Penal também traz dispositivos nesse espírito. Essa
legislação não garante apenas o direito dos cidadãos à crença e à descrença
religiosa. Implica ainda no dever de tolerar as crenças alheias. Assegura a não
intervenção do Estado nas Igrejas. Mas também pressupõe a não intervenção das
Igrejas no Estado.
Em termos históricos, é uma conquista razoavelmente recente.
Talvez daí, sua relativa fragilidade. No Brasil, as constituições imperiais
asseveravam que o catolicismo era a religião oficial do Império. Políticos
progressistas, como Joaquim Nabuco, no final do Segundo Reinado já batalhavam
pela separação entre Igreja e Estado. Mas isso só viria com a República. Antes
mesmo da promulgação da primeira Constituição republicana, menos de dois meses
após o 15 de novembro, um decreto redigido por Rui Barbosa já separava o Estado
de qualquer religião oficial, proibia a intervenção da autoridade federal ou
estadual em matéria religiosa e estipulava a liberdade de culto. Em linhas
gerais, a República seguiu por esse caminho.
Na prática, por vezes a teoria fraqueja. No âmbito da
recomendação de dar a Deus o que é de Deus e a César o que é de César, parece
que César vem sendo instado a dar a Deus mais do que recebe, cedendo a pressões
religiosas que contradizem seu caráter leigo. E, se o Estado tolera e aceita
todas as religiões, algumas delas não toleram outras. Pior: ele eventualmente
faz vista grossa diante da força eleitoral ou da capacidade de mobilização por
parte de alguns grupos.
O ensino religioso nas escolas públicas brasileiras é um
desses pontos controversos. A tradição das constituições da República foi
manter o direito a esse ensino, desde que facultativo e respeitando a religião
do aluno. Prática das mais complicadas, diante da proliferação de igrejas, da
falta de recursos, de grades curriculares sobrecarregadas. O risco acaba sendo
impor uma das crenças. Ou que a religião atrapalhe a educação — como nas
escolas fundamentalistas americanas que rejeitam o evolucionismo.
A isenção fiscal para igrejas, ao lhes dar o privilégio de
não pagar impostos, sobrecarrega os outros contribuintes. Novos templos com
nomes inusitados brotam como cogumelos em bairros populares a atrair os mais
simplórios. Custam pouco. Cobram dízimos. Daí a algum tempo já são prédios
imponentes em áreas centrais. Poucas atividades parecem ser tão bem-sucedidas.
Em maio, quando a Câmara aprovou a MP 668 que aumentava
impostos para importados, deu um jeito para nela colocar um jabuti — e com esse
quelônio na lei 13.137, que a presidente não vetou, perdoaram-se às igrejas
evangélicas mais de 200 milhões em multas, apesar da opinião contrária da
Receita e em pleno processo de ajuste fiscal. A mesma quantia que, segundo
Nelson Barbosa, o governo economizaria com sua proposta de corte de cargos
comissionados e redução de ministérios.
O privilégio poupa cofres religiosos de fiscalização e pode
dar ensejo a que doações a igrejas se misturem com propinas a políticos, como o
Ministério Público acaba de denunciar.
Em termos morais, a isenção também custa caro: contribui
para a noção de que entidades religiosas se situam acima da lei, podendo
desrespeitar posturas de defesa ambiental ou a lei do silêncio. Multiplicam-se
os casos de intolerância religiosa —da imagem da santa chutada por pastor
diante das câmeras de TV ao da menina apedrejada por suas crenças. Mesmo sendo
legal o aborto em certos casos, hospitais públicos se recusam a fazê-lo, ou não
informam à mulher esse direito. Culpabiliza-se a vítima do estupro.
Confundem-se direitos civis (como o casamento) com sacramentos religiosos (como
o matrimônio). Nas últimas semanas tomamos conhecimento até de uma seita que se
vale do trabalho escravo, incentivado por meio de lavagem cerebral dos fiéis.
Os que representam Deus na Terra bem podiam canalizar a
compaixão e solidariedade e se dispor a pagar impostos como todo mundo. É amor
ao próximo. E é justo.