domingo, 23 de janeiro de 2011

Augusto Nunes: Os idiotas estão por toda parte

Nelson Rodrigues acordou especialmente inspirado em 20 de maio de 1969. “Nada mais XIX que o século XX”, descobriu já na primeira linha da coluna que O Globo publicaria no dia seguinte. Abstraídas “a praia e as medidas masculinas dos quadris femininos”, não havia nada que permitisse distinguir uma época de outra. Em contrapartida, escancaravam-se as incontáveis semelhanças, começando pela consolidação do fenômeno que, segundo o cronista genial, configurou a mais notável singularidade do século XIX: “a ascensão espantosa e fulminante do idiota”.

Até então, os integrantes da tribo se haviam limitado a babar na gravata. “O idiota era apenas o idiota e como tal se comportava”, explicou Nelson Rodrigues. “O primeiro a saber-se idiota era o próprio idiota. Julgando-se um inepto nato e hereditário, jamais se atreveu a mover uma palha, ou tirar uma cadeira do lugar. Nunca um idiota tentou questionar os valores da vida”. Como ocorrera desde o começo dos tempos, decidiam pelos idiotas os que tinham cabeça para pensar e sabiam o que faziam. Os rumos eram ditados pelos melhores.

As coisas mudaram dramaticamente quando a imensidão de cretinos fundamentais se descobriu majoritária. “Houve, por toda parte, a explosão de idiotas”, avisou a crônica que, escrita há quase 42 anos, hoje tem cara de profecia. Neste começo de milênio, a praga que afligiu o século XIX e consolidou-se no século XX assumiu, em território brasileiro, dimensões amazônicas. Em suas infinitas variações ─ o espertalhão, o otário, o vigarista, o fanático, o farsante, o bobo alegre, o cafajeste, o prepotente, o gatuno ─, os idiotas elegem e são eleitos, nomeiam e são nomeados. Estão por toda parte.

No nono ano da Era da Mediocridade, a espécie em acelerada expansão é representada no governo e nos partidos da oposição, no Ministério e no segundo escalão, no Congresso, nos tribunais e na imprensa, na plateia que assiste à passagem do cortejo ou nos andores da procissão de espantos que começou há oito anos, não foi interrompida sequer pelas festas de fim de ano e seguiu seu curso no primeiro mês do governo de Dilma Rousseff. O imenso viveiro de cérebros baldios não se assusta com nada.

De saída, Lula apareceu ao lado de caminhões de presentes que não lhe pertencem, passaportes diplomáticos expedidos ilegalmente para alegrar a filharada e um forte do Exército reduzido a pensão de governantes ociosos. De chegada, Dilma montou o ministério mais bisonho de todos os tempos, escalou para gerenciá-lo um estuprador de contas bancárias e recolheu-se ao silêncio de quem não tem nada de aproveitável a dizer nem dispõe de ideias para trocar. Só recuperou a voz depois de surpreendida por uma tragédia anunciada em 2008.

Ao fim do passeio pela Região Serrana do Rio, Dilma prometeu fazer amanhã o que Lula jurou ter feito em 2005, solidarizou-se com as famílias assassinadas pela incompetência dos governos federal, estadual e municipal e elogiou o comparsa Sérgio Cabral. O governador devolveu o elogio, agradeceu a Lula por oito anos de providências imaginárias e debitou o massacre premeditado na conta de antecessores populistas, de São Pedro, do imponderável e dos mortos.

Nesta quinta-feira, em depoimento no Congresso, o secretário demissionário de Políticas e Programas do Ministério de Ciência e Tecnologia, Luiz Antonio Barreto de Castro, implodiu com seis palavras a conversa fiada sobre a catástrofe que até então contabilizava 762 mortos e 400 desaparecidos. Depois de revelar que não conseguiu incluir no PAC a implantação de um sistema de alerta com radares, orçado em R$ 115 milhões, que ajudaria a prever desastres em áreas de risco, Barreto resumiu o espetáculo do cinismo homicida: “Falamos muito e não fizemos nada”. Embora saiba disso há oito anos, a oposição oficial nada fala e nada faz. Há idiotas por toda parte.

Mas também há mais de 40 milhões de brasileiros que continuam enxergando as coisas como as coisas são e contando o caso como o caso foi. Não é pouca gente. E a munição é farta, como mostrarão os posts que pretendem retratar em preto e branco o verão brasileiro de 2011.

domingo, 2 de janeiro de 2011

Ricardo Setti: Lula tem legado importante, mas deixa atrás herança maldita — e já vai tarde

O presidente Lula encerra o mandato com uma decisão vergonhosa — a de não extraditar o terrorista e assassino Cesare Battisti para a Itália, como mandaria a legislação, o bom senso, o sentimento de justiça e as relações com um país amigo (leia post).

É como um escultor que dá seu toque final a uma obra. No caso, uma obra que o presidente parece ter perseguido com obstinação — a permanente tentativa de desmoralização das instituições. É esta a herança maldita, eivada de descaso moral, que passará à frente, hoje, à presidente eleita, Dilma Rousseff.

Lula deixa um legado positivo em realizações, que não se pode negar: a manutenção da estabilidade econômica que herdou dos antecessores Itamar Franco (1992-1995) e Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), na qual se baseou o grande crescimento do PIB e a formidável geração de empregos ocorridos em sua gestão, ambos impulsionados por uma conjuntura internacional extraordinariamente favorável. E, entre outros aspectos louváveis, a marcante distribuição de renda, também estribada na “rede de proteção social” do antecessor FHC, que seu governo ampliou e aprofundou.

Em compensação, em matéria de herança maldita, o presidente que hoje deixa o Planalto…

* Viu seu governo ser tisnado por escândalos nos Correios, na compra de ambulâncias, na montagem de dossiês fajutos para prejudicar adversários, na transformação da Casa Civil em balcão de negócios.

* Desmoralizou o quanto pôde o Congresso Nacional, por meio de seu então braço direito, o chefe da Casa Civil, José Dirceu, que edificou um esquema de compra de apoio parlamentar, o mensalão, qualificado pelo procurador-geral da República como “formação de quadrilha”.

* Silenciou espantosamente diante da explosão do mensalão, para se pronunciar tardiamente dizendo-se “traído”, sem jamais apontar quem o traiu e por quê.

* Como parte do mesmo processo, fez composições com qualquer grupo político disposto a trocar apoio parlamentar por benesses governamentais, “não importando o quanto de incoerência essas novas alianças pudessem significar diante do que propunha, no passado, a aguerrida ação oposicionista de Lula e de seu partido na defesa intransigente dos mais elevados valores éticos na política”, como brilhantemente recordou o Estadão em editorial de 9 de setembro do ano passado. No saco de gatos governista o antes purista PT passou a conviver com o que há de pior na política brasileira, gente como José Sarney, Jader Barbalho, Renan Calheiros, Paulo Maluf e Fernando Collor.

* Envergonhou os brasileiros de bem quando comparou com bandidos comuns trancafiados em prisões brasileiras os dissidentes da ditadura cubana, e confraternizou com o ditador Raúl Castro no exato momento em que um deles morria em consequência de uma greve de fome.

* Envergonhou os brasileiros de bem estreitando laços com regimes ditatoriais, como os de Cuba ou do tenebroso Irã, ou com caudilhos autoritários como o venezuelano Hugo Chávez, e concordando em que o governo se abstivesse sistematicamente na ONU de condenar as violações de direitos humanos nesses países e em outros como a China, o Sudão e a Síria, aliando-se, na organização internacional, ao que há de pior em matéria de regimes autoritários.

* Desmoralizou as agências reguladoras, que deveriam ser órgãos técnicos e apartidários, para normatizar e fiscalizar áreas fundamentais da economia e da vida do país como o petróleo, as telecomunicações, a saúde pública ou a aviação, loteando-as entre políticos, cortando sua autonomia e reduzindo seus recursos no Orçamento.

* Desmoralizou o Tribunal Superior Eleitoral, zombando em público das sucessivas multas e advertências que recebeu por violar a lei ao fazer campanha para sua candidata à Presidência, Dilma Rousseff, em horário de trabalho e utilizando espaços e outros recursos públicos.

* Desmoralizou o Tribunal de Contas da União, ao apontá-lo seguidamente como entrave à execução de obras públicas nas quais a corte detectou problemas, e mandando seguir obras cuja paralisação havia sido determinada pelo TCU.

* Desmoralizou uma instituição que por décadas figurava entre as mais confiáveis entre os brasileiros, os Correios, aparelhando-0s politicamente e deixando que o que antes era um centro de excelência em ninho de corrupção.

* Desestimulou os brasileiros que se esforçam por estudar e avançar em seu progresso educacional, ao passar invariavelmente a impressão de orgulhar-se de não possuir um diploma universitário e de, mesmo podendo, não ter estudado além do ensino elementar.

* Desmoralizou com frequência a majestade do próprio cargo, transformando a figura do presidente em palanqueiro vulgar, encantado pela própria voz, proferindo uma catarata diária de discursos e frequentes e constrangedores disparates, que dividiu o país entre “eles” e “nós”, falou em “extirpar” um partido político legítimo, o DEM, e zombou do candidato da oposição à Presidência, José Serra (PSDB), quando este se viu envolvido em incidente provocado por baderneiros no Rio de Janeiro.

* Fez o possível para desmoralizar a História, ao martelar em seus discursos e, indireta e insidiosamente, na caríssima propaganda de seu governo, que o Brasil começou com sua chegada ao Planalto, há oito anos, quando “os brasileiros se reencontraram com o Brasil e consigo mesmos” — desconsiderando e desrespeitando o trabalho de antecessores, principalmente FHC, e agindo como se o que a propaganda oficial chama de “reencontros” não ocorresse em surtos desde, pelo menos, a Inconfidência Mineira (1789). E depois passando pela Independência (1822), a República (1889) e, mais recentemente, pelos anos JK (1955-1961), as esperanças suscitadas com a eleição de Jânio Quadros (1961), o “Brasil Grande” da ditadura militar, o extraordinário movimento das Diretas-Já (1983-1984), o surto de civismo que significou a vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral, em janeiro de 1985, e a comoção gigantesca que acompanhou sua morte, em abril do mesmo ano, o delírio otimista do Plano Cruzado (1986), o apoio ao Plano Real (1994) e a eleição em primeiro turno de FHC (ainda em 1994).

Nesse sentido, não importam seus índices de popularidade: Lula deixa uma herança maldita.

E já vai tarde.