segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Olavo de Carvalho: O mito da imprensa nanica

No seu texto de abertura, o site “Mídia Alternativa” (http://midiaalternativabypc.blogspot.com/2007/04/jornal-opinio.html) afirma: “Em toda a história, um punhado de grupos detiveram (sic) o poder dos meios de comunicação, veiculando o que lhes era de interesse e excluindo uma maioria, sem voz e sem imagem.”

Capenga o quanto seja, a frase parece descrever literalmente a situação dos conservadores e cristãos hoje em dia, cem por cento excluídos dos grandes meios de comunicação e ali só mencionados em termos pejorativos e caricaturais, quando não francamente caluniosos e odientos; marginalizados, também, no meio universitário, e desprovidos de qualquer canal de expressão fora do universo bloguístico, onde se defendem como podem.

Mas não é a eles que se refere o parágrafo. Ele fala da mídia esquerdista durante o regime militar, apresentando-a como um punhado de bravos combatentes isolados e desamparados, em luta contra inimigos poderosos encastelados nos jornais e canais de TV milionários, sob a proteção do governo.

Menciono o “Mídia Alternativa” a título de mero exemplo. Essa versão da história já se consagrou como verdade absoluta, infindavelmente repetida e repassada às novas gerações através de programas de TV, filmes, livros didáticos, aulas, conferências, jornais estudantis, discursos no Parlamento e, é claro, milhares de sites, muitos deles patrocinados por órgãos do governo.

A glorificação final veio na da série de depoimentos “Resistir é Preciso”, iniciativa do Instituto Vladimir Herzog patrocinada pela Petrobrás e coordenada pelo jornalista Ricardo Carvalho (v. http://www.youtube.com/watch?v=QGI_6UNr-8g&feature=related), em que sessenta e tantos militantes de esquerda recordam a história da assim chamada “mídia nanica” criada a partir de 1964 no Brasil e no exterior como instrumento de luta contra o governo militar.

Seguindo a norma estabelecida, a série enfatiza mil vezes a oposição, a diferença, a distância entre a grande mídia, cúmplice rica do governo militar, e a “imprensa nanica”, pobre e sem recursos, marginalizada e perseguida, lutando corajosamente contra o establishment poderoso.

A imagem, no entanto, é cem por cento falsa. Os astros da mídia esquerdista eram os mesmos que brilhavam nos grandes jornais e revistas. Ocupavam os mais altos postos, mandavam e desmandavam nas redações. Muitos deles dividiam o tempo entre os bons empregos e o hobby revolucionário.

Na Folha de S. Paulo, imperava Cláudio Abramo, trotsquista histórico. No Globo, Luiz Garcia. No Jornal do Brasil, Alberto Dines, cercado de comunistas por todos os lados. Na Folha da Tarde, Jorge de Miranda Jordão e Celso Kinjô. Na Veja, Mino Carta, que dirigiu também o Jornal da Tarde, edição vespertina do Estadão, e depois a IstoÉ. Marcos Faerman, fundador do Ex e de vários outros “nanicos”, trabalhou até seu último dia de vida como repórter especial do Jornal da Tarde, então um dos empregos mais cobiçados na mídia paulistana. Na Editora Abril, a base de apoio ao grupo terrorista de Carlos Marighela era comandada pelo próprio Roger Karmann, membro da diretoria da empresa. A revista Realidade, com Milton Coelho da Graça, Narciso Kalili, Milton Severyano da Silva, Raymundo Pereira, Roberto Freire (o psiquiatra, não o futuro deputado), era um verdadeiro front de guerra esquerdista. É verdade que a revista fechou no fim dos anos 60, mas o mesmo aconteceu com O Cruzeiro e logo depois com a Manchete, que tinham sido órgãos de apoio ostensivo ao governo militar. Excetuadas essas duas publicações e a revista Visão, que teve um breve período de direitismo sob a direção de Henry Maksoud e faliu logo em seguida, praticamente só tiveram diretores de redação direitistas a Folha da Tarde no seu período final, de curta duração e circulação mínima, e Notícias Populares, um jornal de crimes, sem a mínima relevância política.

A esquerda, enfim, não só nunca foi expulsa da grande mídia, mas dominou praticamente sem adversários a profissão jornalística no Brasil. Bem ao contrário, os colunistas tidos como de direita é que foram desaparecendo dos maiores jornais, um a um – Gustavo Corção, David Nasser, Lenildo Tabosa Pessoa, Nicolas Boer, Adirson de Barros –, sendo invariavelmente substituídos por gente de esquerda. Tão promíscua era a relação entre a militância esquerdista e a grande mídia brasileira, que o sr. Mário Augusto Jacobskind, após trabalhar na Folha de S. Paulo de 1975 a 1981, se tornou editor em português da revista oficial cubana Prismas, sendo portanto um notório agente de propaganda comunista, o que não o impediu de ser aceito logo em seguida como editor internacional da Tribuna da Imprensa (e continuar trabalhando até hoje para a Rádio Centenário, do Movimiento 26 de Marzo, braço político da organização terrorista Movimiento de Liberación Nacional, os Tupamaros).

Para fazer uma idéia da hegemonia que a esquerda desfrutava no meio jornalístico ao longo daquele período, basta notar que todos os sindicatos da classe foram presididos por esquerdistas desde o final dos anos 60 até hoje. Não é que a esquerda simplesmente vença as eleições sindicais: é que há meio século não surge uma só chapa direitista para disputá-las.

A hostilidade maciça da classe para com a direita estendia-se a qualquer profissional que, por coincidência ou falta de alternativas, aceitasse emprego naquilo que então restava da decadente e semifalida mídia direitista. Carlos Heitor Cony, que entre 1964 e 1966 havia sido elevado à condição de herói nacional por sua resistência ao novo regime, tornou-se uma imagem do demônio tão logo foi trabalhar na Manchete sob a direção de Adolpho Bloch, um fugitivo da URSS que tinha boas razões para odiar comunistas.


Também é puramente mitológica a noção de que muitos jornalistas perderam seus empregos por conta de suas convicções ideológicas. O Estadão e O Globo (jornal e TV) protegiam seus comunistas como se fossem tesouros, enquanto a Folha, na pior das hipóteses, fazia jogo duplo, tentando agradar à esquerda e à direita ao mesmo tempo. Muitos jornalistas perderam seus postos quando os órgãos em que trabalhavam faliram, como aconteceu com o Correio da Manhã, Realidade, O Cruzeiro etc. Não foram vítimas de perseguição política, mas da má administração ou da má sorte (o que não os impede de receber indenizações como perseguidos da ditadura).

Outros simplesmente largaram os jornais para ganhar mais dinheiro nos novos ramos das assessorias de imprensa e da mídia empresarial, novidades em franco progresso na época. Incluem-se aí centenas ou milhares de esquerdistas que se infiltraram como assessores nos escritórios de políticos, inclusive do partido governista, a Arena, bem como nos altos cargos das TVs estatais e semi-estatais então recém-criadas. O próprio Vladimir Herzog, quando preso, era diretor da TV Cultura de São Paulo. Querem maior prova de que os jornalistas de esquerda não estavam no porão?

Ao longo de todo o período militar a esquerda, em suma, foi hegemônica em toda a mídia brasileira, graúda ou miúda.

A própria existência da censura oficial evidencia o que estou dizendo. Para que iria o governo meter um funcionário da Polícia Federal em cada jornal, para cortar matérias indesejáveis, se nas redações existissem militantes direitistas em número suficiente para fazer a opinião oficial prevalecer desde dentro? Se não há censores oficiais nas redações hoje em dia, é porque não resta nelas um único direitista empenhado em publicar notícias proibidas. O sucesso completo em ocultar a existência do Foro de São Paulo por dezesseis anos, por exemplo, ultrapassa tudo o que a ditadura houvesse jamais ousado sonhar em matéria de controle da mídia.

Em segundo lugar, a denominação mesma de “imprensa nanica” é altamente enganosa. A exposição montada pelo Instituto Vladimir Herzog para celebrar o lançamento da sua série de DVDs auto-hagiográficos deu uma prova fisicamente visível daquilo que as palavras dos entrevistados pareciam negar: o gigantismo da mídia esquerdista no Brasil no tempo da ditadura. Só no exterior, foram cento e doze jornais e revistas, mais cento e dez no Brasil – sem contar as publicações acadêmicas e inumeráveis jornais de grêmios estudantis, praticamente todos de esquerda, que multiplicariam esse número por dez ou vinte. Isso não é imprensa nanica. É um império midiático de proporções colossais. Tentem fazer uma idéia do custo global da operação, da extensão da mão-de-obra envolvida, da quantidade enorme de exemplares produzidos. Quantos jornais e revistas conservadores, de direita, surgiram no Brasil nos últimos vinte anos – período equivalente ao do regime militar? Nenhum. Simplesmente não há dinheiro para isso. Proponha uma publicação conservadora ou cristã a empresários brasileiros, e eles daí por diante evitarão ser vistos em sua companhia. Se não existisse a internet, onde se mantém um blog com cinqüenta reais por ano, a opinião conservadora teria simplesmente desaparecido do território nacional.

Imprensa nanica? Eu sei o que é imprensa nanica. Minha amiga Anca Cernea, na Romênia, tem uma bela coleção de jornais de oposição publicados ali e na Polônia durante o regime comunista. São miseráveis folhetos mimeografados ou pasquins de quatro páginas compostos com tipos móveis, impressos em máquinas de fundo de quintal e distribuídos por mãos trêmulas, em vielas escuras, longe da polícia.

Isso é imprensa nanica, isso é combate heróico contra uma ditadura. Nada dos produtos de alta qualidade, desenhados por artistas de primeira ordem, impressos nas mais importantes gráficas comerciais e vendidos em bancas, à vista de todo mundo. É certo que muitos órgãos da imprensa esquerdista foram de curta duração, mas outros permaneceram em circulação por muitos anos, não raro com o sucesso espetacular de O Pasquim e Movimento. Também é verdade que viviam sob a ameaça da censura, mas o mesmo acontecia com os jornais da grande mídia. Nenhum “nanico” foi tão censurado quanto o Estadão e o Jornal da Tarde: as notícias substituídas por versos de Camões, no primeiro, e por receitas culinárias, no segundo, dariam para preencher muitas edições de Opinião ou A Voz Operária.

Quando pergunto pelas fontes de sustentação financeira da “mídia nanica”, há dois erros crônicos que devem ser afastados desde logo. De um lado, a coisa mais fácil do mundo é fazer chacota da expressão “ouro de Moscou”, para inibir toda veleidade de investigar a interferência soviética na política nacional. De outro lado, seria bobagem tentar explicar a mídia alternativa como um todo com base na hipótese do dinheiro soviético. Vamos por partes.

O “ouro de Moscou” não era nem um pouco mitológico. Ladislav Bittman, o chefe da inteligência soviética no Brasil em 1964, informou que, na ocasião, a agência já tinha mais de cem jornalistas brasileiros na sua folha de pagamentos. É claro que sem saber os nomes deles e sem averiguar como se desenvolveu sua relação com o governo da URSS nas décadas seguintes, nada se pode compreender realisticamente da história da mídia esquerdista no Brasil. Em 17 de fevereiro de 2001, em artigo publicado na revista Época, convoquei os jornalistas brasileiros a entrevistar aquele agente e tirar o caso a limpo. O silêncio rancoroso com que a sugestão foi recebida ainda ressoa nos meus ouvidos. Foi também em vão que tentei persuadir empresários brasileiros a subsidiar um historiador russo – que vivera no Brasil e dominava a língua portuguesa – a investigar o assunto nos arquivos do Partido Comunista soviético, então abertos aos pesquisadores estrangeiros. Pelas expressões em seus rostos, tive a impressão de que lhes dissera alguma imoralidade.

Mas é claro que, no conjunto, a mídia esquerdista no período militar não dependeu substancialmente da ajuda soviética. Suas fontes de dinheiro eram múltiplas e heterogêneas, incluindo empresários e banqueiros locais, além de verbas provenientes das organizações terroristas, de organismos internacionais e, por baixo do pano, do próprio governo (Ênio Silveira, o maior editor comunista do Brasil, criador da Revista Civilização Brasileira, que tão decisivo papel desempenhou na reorientação estratégica dos movimentos de esquerda depois do golpe de 1964, me confessou pouco antes de morrer que sua editora só sobrevivera graças aos favores do general Golbery). A variedade dessas fontes parece dar àquela indústria editorial os ares de produto espontâneo e anônimo da sociedade, mas uma coisa é óbvia: sem uma imensa rede de conexões, apoios e proteções, estendendo-se de Montevidéu a Moscou, de Paris a Nova York e de Argel a Santiago do Chile, ninguém poderia ter inundado o espaço legente deste e de outros países com uma massa de duzentos e vinte e dois jornais e revistas – um feito digno do próprio Willi Münzenberg, o “Milionário Vermelho”. Essa rede não tinha sua coesão assegurada senão pelas metas políticas comuns a todo o movimento comunista internacional. Movimento que, àquela altura, se compunha de muitas facções diversas e relativamente independentes, mas todas unidas, ao menos nos instantes decisivos, contra o “inimigo comum”: o “imperialismo ianque” e seus supostos “agentes no Terceiro Mundo”, entre os quais, evidentemente, os militares latino-americanos.

A premissa básica da qual deve partir o estudo da mídia alternativa antimilitar no Brasil é aquela que, num depoimento marcado por sinceridade inaudita, foi colocada pelo sociólogo Herbert de Souza, o “Betinho”: o movimento revolucionário é sempre e invariavelmente um fenômeno internacional. A unidade da sua atuação no mundo é complexa e dialética, mas nem por isso menos real. Sem o apoio do movimento comunista internacional, nada do que os jornalistas de esquerda fizeram no Brasil e no exterior teria sido jamais possível. Nesse sentido, suas ações não podem ser compreendidas no puro contexto local, isolado das condições internacionais que as possibilitaram.

Ora, enquanto no Brasil os militantes da esquerda jornalística posavam como defensores da democracia e das liberdades públicas, qual era a atividade essencial desempenhada simultaneamente pela rede comunista que os apoiava e protegia? Essa atividade pode ser resumida numa única palavra: matar. Durante os anos da nossa ditadura militar, os governos comunistas mataram dois milhões de pessoas no Camboja, 1,5 milhão na Revolução Cultural chinesa, meio milhão na Etiópia, duzentos mil no Vietnã, outro tanto no Tibete, cem mil em Cuba, pelo menos um milhão em vários países da África. E notem que isso foi depois do seu período de maior violência genocida (anos 30 a 60). Como é possível que cúmplices e beneficiários ideológicos de tanta maldade se sentissem sinceramente escandalizados ante as mortes de trezentos e poucos militantes armados que ao mesmo tempo faziam duzentas vítimas entre seus inimigos? Quando se ouviu a imprensa “nanica” reclamar contra o que seus companheiros e protetores internacionais faziam em quatro continentes? Mais se escreveu e se falou no Brasil sobre a morte de Vladimir Herzog ou de Carlos Lamarca do que sobre milhões de civis desarmados que ao mesmo tempo eram assassinados pelos parceiros daqueles “combatentes pela democracia”.

Eis a razão pela qual a base econômico-social da “mídia alternativa” brasileira jamais é sondada em profundidade por aqueles que professam, com hipocrisia exemplar, fazer a reconstituição documental da sua história. Ela é uma caixa-preta que, quando aberta, revela o que ninguém quer saber.

Derramar toneladas de lágrimas de crocodilo quando morre um terrorista, e ao mesmo tempo negar às vítimas do comunismo um olhar de piedade, um minuto de atenção, tal tem sido a atitude permanente com que a militância mais cruel e assassina que já existiu consegue se fazer passar, ante o olhar das massas, como vítima inocente da brutalidade alheia. A essa duplicidade moral acrescenta-se uma astuta distribuição geográfica dos sentimentos fingidamente humanitários. É inevitável que, operando em escala global, os comunistas levem vantagem em alguns países e saiam perdendo em outros. Nestes últimos, tratam de encobrir as pistas de suas conexões internacionais, de modo a bloquear toda comparação entre os males que ali sofrem e os padecimentos muito maiores que, no mesmo momento, estão impondo a outros povos, em outros lugares. Nossa “midia alternativa” seguiu essa receita à risca, criando a imagem de uma esquerda nacional isolada do universo, sem culpa pelo que seus patronos e cúmplices faziam no resto do planeta. Restauradas as devidas comparações, sua presunção de heroísmo e santidade revela seu verdadeiro rosto de farsa cínica e macabra.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Ben-Hur Rava: Piada politicamente incorreta depende de cada pessoa

Liberdade de expressão é uma virtude liberal que está alicerçada na crença do pleno Estado de Direito e que se reforça pela qualidade do regime democrático. Quanto mais democrática uma sociedade política, mais livre, sob o ponto de vista dos direitos fundamentais, o seu povo.

Trata-se, também, de uma conquista histórica, consagrada pelas Declarações de Direitos que foram fruto da luta dos homens contra o arbítrio. Num dado momento da história da humanidade, passou-se a proclamar que os cidadãos tinham certos direitos naturais e inalienáveis contra o Estado e perante os demais cidadãos. A liberdade de expressar-se, livremente, era um desses direitos, porque decorrência da liberdade de pensamento.

Erige-se, pois, como um reflexo da afirmação efetiva dos direitos fundamentais. O século XX foi, gradualmente, consolidando os direitos que foram proclamados nos séculos XVIII e XIX.

Na França, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789 dispunha, em seu art. 11, sobre a liberdade de expressão: "A livre comunicação de pensamentos e de opiniões é um dos direitos mais preciosos do homem: todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, salvo responder pelo abuso desta liberdade nos casos determinados pela lei".

E nos Estados Unidos, foi a Primeira Emenda, de 1791, à Constituição de 1787, que garantiu a liberdade de expressão. Diz ela: "O Congresso não legislará no sentido de estabelecer uma religião, ou proibindo o livre exercício dos cultos; ou cerceando a liberdade de palavra, ou de imprensa, ou o direito do povo de se reunir pacificamente, e de dirigir ao Governo petições para a reparação de seus agravos".

A língua inglesa, inclusive, faz uma diferença substancial entre as expressões “liberty” e “freedom”. A primeira tem uma conotação de limitação, que implica a existência de um sistema de regras, uma rede de contenção e ordem, portanto, estreita associação da palavra com a vida política. A segunda, por sua vez, expressa um significado mais geral, que varia de uma oposição à escravidão à ausência de algum ônus psicológico ou pessoal. Aqui o conceito é mais amplo, mais filosófico.

Os founding fathers da nação norte-americana tiveram bem presente essa realidade quando criaram um sistema de regras jurídicas baseadas numa apreciação filosófica da realidade concreta, pragmática. A liberdade era a expressão da luta contra o arbítrio em todos os sentidos, e “ser livre” estava condicionado à busca da felicidade. Felicidade como ideal político, segundo nos ensina John Locke e outros liberais.

Não é por acaso que o segundo parágrafo da Declaração de Independência dos Estados Unidos assenta essa crença: “Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a procura da felicidade. Que a fim de assegurar esses direitos, governos são instituídos entre os homens, derivando seus justos poderes do consentimento dos governados; que, sempre que qualquer forma de governo se torne destrutiva de tais fins, cabe ao povo o direito de alterá-la ou aboli-la e instituir novo governo, baseando-o em tais princípios e organizando-lhe os poderes pela forma que lhe pareça mais conveniente para realizar-lhe a segurança e a felicidade”.

São vários os níveis e alcances da liberdade. Ela varia de grau e de intensidade. No entanto, são conceitos que estão em continuo processo de atualização e adaptação.

A liberdade puramente moral foi se aperfeiçoando a ponto de consistir, mais adiante, o sentimento de participação na distribuição da riqueza. Afinal de contas, só é plenamente livre quem tem condições de manter-se e gozar dos benefícios econômicos e sociais gerados pelo Estado e pela sociedade, mas isso já é uma outra história.

Após a Segunda Guerra, com a criação da ONU e, principalmente, após a Declaração de 1948, os direitos humanos passaram a ser um dos temas dos quais mais se tem escrito e falado. Isso atinge as questões essenciais relacionadas com as minorias étnicas, políticas, com as questões de gênero, etc. No entanto, o desrespeito aos direitos humanos continua a ser uma realidade. Entretanto, as minorias e grupos discriminados que sentem seus direitos fundamentais não observados ou violados têm todo o direito de buscar os mecanismos amplos para fazer valerem seus direitos.

Assim, em nome das liberdades constitucionais, nenhuma lei pode proibir a expressão de qualquer opinião. Os demais países ocidentais, na medida em que foram incorporando os princípios democráticos, foram reproduzindo tais crenças.

No Brasil, como em muitos países democráticos, a liberdade de expressão é um princípio inviolável segundo o qual toda pessoa pode expressar livremente uma opinião, positiva ou negativa, sobre um assunto, mas também sobre pessoas e instituições. É, portanto, um direito; mas, como todo direito, deve ser exercido dentro de limites balizados pelas regras jurídicas e, assim, seu abuso pode (e deve) ser punido, segundo a doutrina do abuso de direito.

A doutrina do abuso de direito desenvolveu-se principalmente durante o século XIX, particularmente em torno dos direitos de propriedade. Um proprietário não podia sujeitar os seus vizinhos a distúrbios além daqueles razoáveis no uso e gozo do exercício de seu direito de propriedade pacífica. Por isso, não admitia a lei a possibilidade de usar a propriedade com intenção maliciosa. Por exemplo: não era livre para fazer fogo no seu jardim, onde o combustível e a fumaça contamine o ar e infeste a toda a vizinhança do bairro.

A mesma doutrina do abuso de direito foi implementada no caso de uma pessoa exceder a sua liberdade de expressão causando impacto negativo para terceiros. Isto significa que a pessoa pode ser livre para se expressar, não podendo sofrer censura prévia. Porém, se sua ação externa causar danos a quem quer que seja, mediante ofensas, este terá direito a recorrer às vias legais para buscar a reparação dos danos sofridos, sejam eles materiais ou morais.

Essa liberdade fundamental, em nossa Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, apreenta dois desdobramentos lógicos: a liberade de pensamento, no incisiso IV: “É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; e a liberdade de expressão” e a liberdade de expressão, no inciso IX : “É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.

A limitação à livre manifestação de pensamento e de expressão é a própria lei. Mesmo os leigos sabem que não existem direitos absolutos, salvo àqueles personalíssimos.

Segundo a Constituição Federal “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (art. 5º, II). Isso delimita o campo geral de ação, em conformidade com o ordenamento jurídico como um todo. Depois, deixa às demais leis, conforme a matéria e o âmbito de vigência, as formas de interpretação e aplicação aos casos concretos.

Tudo porque há um princípio geral de justiça, mais do que de direito, que afirma que a liberdade é ser capaz de fazer qualquer coisa que não prejudique os outros: assim, os direitos de cada homem não têm limites senão àqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo desses direitos. Estes limites só podem ser determinados pela lei. Esta é uma outra formulação do ditado de que a liberdade de um termina onde começa a liberdade de outro ou dos outros.

O humor como expressão artística
Recentemente houve uma grande polêmica acerca das piadas “politicamente incorretas” em face à liberdade de expressão, quando o humorista de stand up comedy,Rafinha Bastos, referiu-se ao estupro em mulheres feias.

Em primeiro lugar quem vai a um show do Rafinha Bastos sabe que se trata de stand up comedy. Um tipo de humor que não é muito comum por aqui. É bastante popular nos países de língua inglesa, onde o comediante está, invariavelmente, sozinho no palco. Literalmente, como o nome inglês sugere, ele está lá, sozinho e de pé no palco enfrentando a plateia, onde seu objetivo é contar histórias curtas ou situações cômicas do cotidiano. Por isso a característica é a agilidade de raciocínio e o resultado é imediato. Não é por outro motivo, que muitas vezes esses espetáculos artísticos são realizados em bares, pubs e restaurantes, justamente para dar a ideia de descontração.

E é isso que muitas vezes identifica o humor do stand up. Algo semelhante a como se estivéssemos conversando sobre situações pessoais que nos envolvessem ou aos nossos amigos ou conhecidos.

Quando se analisa friamente cada situação, vemos que as pessoas em situações normais de descontração, geralmente estão sempre falando sem níveis de controle absoluto. Cai o autopoliciamento, cai a autocensura. Elas permitem-se falar de si mesmo ou de alguém (bem ou mal). Muitas vezes fazendo piadas com isso. E quantas vezes são ditos os mais disparatados absurdos? No entanto, como se tratam de pequenos grupos ou de conversas reservadas, isso não causa espanto ou revolta.

Agora, quando se trata de um lugar público, como um show, teatro, televisão ou envolva alguém conhecido que tenha repercussão no que diz ou fala, ai temos um nível progressivo de repercussão positiva ou negativa. Os níveis de controle alheio são maiores e mais rígidos.

Por isso, o humor deve estar contextualizado com a finalidade que ele enseja ou o que ele quer transmitir. É um estado de espírito que expressa sentimentos e sensações. Se nos lembrarmos da etimologia da palavra, veremos que ela está associada a estado de ânimo, sensação e grau de disposição que vem da ciência natural, da medicina. Desse modo, o que está em desacordo com isso, pode ser considerado atípico, anormal.

Portanto, depende do contexto e da situação. Não acredito no humor - do qual a piada é um dos instrumentos -, limitado em nome do “politicamente correto”. Da mesma forma que não acredito no humor como instrumento de agressão pura e simples. Qualquer forma de ofensa deliberada contra minorias ou segmentos sociais pode se traduz em agressão gratuita. Isso seria valer-se da liberdade de expressão para atingir objetivos desvirtuados.

Todavia, sou contra qualquer tipo de parvice. Os parvos e os néscios são os tipos mais perigosos e traiçoeiros. Deve-se analisar o contexto, a forma, enfim, uma série de elementos daquilo que foi dito ou feito, mas sempre depois. Nunca antes porque senão será censura prévia. E isso, numa democracia, é inadmissível. Fico absolutamente enojado quando alguém se arvora em censor da imprensa, por exemplo.

O problema é que os brasileiros são hipócritas. Querem liberdades, mas não na plenitude. Liberdade para eu falar dos outros tudo bem. Agora quando falam de mim eu processo. Isso é um absurdo. Sempre estamos atrás de um líder personalista que nos diga o que ler, o que fazer e como ser. Basta você discordar do que pensa a grande maioria, para ser objeto da ira de grupos e da patrulha ideológica.

A matéria-prima do humor é toda e qualquer situação da vida. O humor feito sobre qualquer situação mostra (ou quer mostrar) uma apreciação positiva ou negativa. Ressaltar determinado aspecto. Isso também vale para qualquer grupo ou minoria.

Os políticos são um bom tema de humor em qualquer parte do mundo. Não porque sejam engraçados suficientemente. Às vezes o são, pelas trapalhadas ou gafes que cometem. Mas, invariavelmente são objeto dos humoristas pelo grotesco da sua atuação mediante a mentira, a trapaça e o engano. E, a forma de vingança, de crítica, seja lá qual for o instrumento para castigá-los, é mostrar o quão cabotinos e canastrões ele são ou podem ser. Há um ditado latino que diz ridendocastigatmores,que numa tradução livre seria “pelo riso corrigem-se os costumes”.

Já as minorias são objeto de humor (positivo e negativo, também chamado de “negro” - o que seria, para alguns, politicamente incorreto, pelo traço marcante que possuem. O humorista busca a característica do exagero, da situação-limite para expressar dada realidade.

Veja-se, por exemplo, as charges. Elas são um humor gráfico que expressa uma pontual característica a ser ironizada, criticada. O mesmo vale para os personagens estereotipados em caracterizações televisivas e cinematográficas.

Outro bom exemplo de minoria que se presta ao humor são os judeus (como aliás, muitos outros povos) que gerou uma literatura própria, refinada, decorrente da tradição oral. Não fora isso, e não teríamos o excelente humor judaico. Judeus como Mel Brooks, Gene Wilder, Woody Allen, Irmãos Marx, e, entre nós, Moacyr Scliar, sempre expuseram a condição judaica com um humor refinado, reflexivo, que vem do sofrimento dos que sempre foram perseguidos e discriminados e encontraram no riso contido, uma forma de encarar a vida. Com o passar do tempo esse humor foi deixando de ser passivo para ser mais ativo. Obviamente que a tentativa de usar o humor, de forma distorcida, como meio de mascarar o preconceito - que é uma manifestação indecorosa de ódio -, deve ser sempre repudiado.

Recentemente pudemos ver nos cinemas o filme “Borat”, onde há uma referência humorística pesada sobre a situação dos judeus. E saiba-se que o ator-protagonista, Sacha Baron Cohen, é um judeu inglês praticante. Ele encontrou uma forma de humor que se arma do próprio discurso antissemita para mostrar o efeito do antissemitismo. É uma autorreferência – o self que referia Carl Gustav Jung, como arquétipo de si mesmo.

A liberdade de expressão é um conceito amplo, garantido pelas Constituições democráticas que deve ser adequado ao limite da esfera da intimidade pessoal e dos direitos subjetivos da personalidade humana, como a honra, a dignidade, etc. Para, além disso, é o abuso que deve ser reprimido.

Enquanto houver a capacidade criativa e de expressar-se, o ser humano vai achar formas de dizer aquilo que pensa. Pensar e agir (ou dizer) são atos naturais, instintivos do ser humano.

Portanto, não pode existir limites subjetivos para o humor. Na verdade, o limite subjetivo do qual falo é o bom senso e o bom gosto. Acredito que as mesmas pessoas que ficaram ofendidas com a referência ao estupro de mulher feia nas piadas de stand up do Rafinha, não se ofendem quando ouvem ou veem essas cenas de funk pancadão nas favelas do Rio de Janeiro.

Objetivamente, os limites à liberdade de expressão são aqueles delineados pelo ordenamento jurídico. Há uma Constituição que, do mesmo modo que estabelece o direito de liberdade de expressão, também assegura que os limites são os danos causados à honra, à intimidade, à privacidade. Se esses limites forem ultrapassados, quem causou esses danos deverá ser responsabilizados penal, civil e administrativamente, se for o caso, gerando inclusive indenizações para reparar o ofendido.

Assim, se há o direito da livre expressão, há o direito daquele que se sente ofendido, de buscar a tutela de seus direitos para coibir ou reparar os abusos. Portanto, caberá aos Tribunais, no pleno exercício da jurisdição constitucional e legal, aquilatar a liberdade de expressão e os seus limites objetivos e subjetivos. Nem mais, nem menos.

Portanto, piadas que hoje são consideradas politicamente incorretas, que no geral falam sobre as minorias ou violência, sempre existiram. O que faz, talvez, com que elas sejam atualmente sejam consideradas impróprias é o contexto no qual são ditas e ao público a que se referem. E, isso, depende de cada pessoa e de cada sensibilidade sobre o certo e o errado.

Invadir essa esfera é invadir a liberdade individual. O foro íntimo de cada pessoa vai dar a dimensão do discernimento. Ocorre-me, a esse respeito, uma discussão similar com relação ao ato pornográfico. Numa decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos, em 1954, o Juiz Potter Stewart, diante da dificuldade em definir o que era obscenidade ou ato obsceno dissera: “Eu não sei o que ela é, mas reconheço quando vejo uma”.

Por outro lado, a sociedade numa tentativa de se “modernizar” e “romper” com o passado e suas tradições arcaicas, quer espelhar novos padrões de comportamento ético. Um desses padrões é a linguagem. O que você diz, acaba sendo a forma como você pensa ou quer pensar. É um compromisso que começa pela palavra, pela linguagem. Como o fundamento bíblico da palavra: “No princípio era o verbo...” Até que ponto isso é uma realidade ou uma tentativa de mudar hábitos, só o tempo dirá mediado pela função da hermenêutica e da pragmática. O estudo da semiótica tem muito a contribuir nesse campo.

Mas o impróprio, o maldito, o provocador, o obsceno sempre existirão, como um dia existiram Calígula, Bocaccio, Bocage, Larry Flint entre tantos outros que desafiaram o senso comum ou o “politicamente correto”.

Afinal, do mesmo modo que a política não é espaço de atuação só de anjos, a sociedade civil não é só constituída de homens puros.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

FHC: Corrupção e Poder

O novo ministro do Esporte, Aldo Rebelo, afirmou recentemente que os desmandos que ocorreram em sua pasta se devem a que as ONGs passaram a ter maior participação na concretização de políticas públicas. E sentenciou: ele só fará convênios com prefeituras, não mais com segmentos da sociedade civil. Ou seja, em vez de destrinchar o que ocorre na administração federal e de analisar as bases reais do poder e da corrupção, encontra um bode expiatório fora do governo.

No caso, quanto eu saiba, é opinião de pessoa que não tem as mãos sujas por desvios de recursos públicos. Não se trata, portanto, de simples cortina de fumaça para obscurecer práticas corruptas. São palavras que expressam a visão de mundo do novo ministro: o que pertence ao “Estado”, ao governo, é correto; o que vem de fora, da sociedade, traz impurezas… O mal estaria nas ONGs em si, não no desvio de suas funções nem na falta de fiscalização, cuja responsabilidade é dos partidos e dos governos.

Esse tipo de ideologia vem associado a outra perversão corrente: fora do partido e do governo nada é ético; já o que se faz dentro do governo para beneficiar o partido encontra justificativa e se torna ético por definição.

Repete-se algo do mensalão. Naquele episódio, já estava presente a ideologia que santifica o Estado e faz de conta que não vê o desvio de dinheiro público, desde que seja para ajudar os partidos “populares” a se manterem no poder. Com uma diferença: no mensalão desviavam-se recursos públicos e de empresas para pagar gastos eleitorais e para obter apoio de alguns políticos. Agora são os partidos que se aninham em ministérios e, mesmo fora das eleições, constroem redes de arrecadação por onde passam recursos públicos que abastecem suas caixas e os bolsos de alguns dirigentes, militantes e cúmplices.

A corrupção e, mais do que ela, o “fisiologismo”, o clientelismo tradicional, sempre existiram. Depois da redemocratização, começando nas prefeituras, o PT – e não só ele – enveredou pelo caminho de buscar recursos para o partido nas empresas de coleta de lixo e de transporte público (sem ONGs no meio…). Há, entretanto, uma diferença essencial na comparação com o que se vê hoje na esfera federal. Antes o desvio de recursos roçava o poder, mas não era condição para o seu exercício. Agora os partidos exigem ministérios e postos administrativos para obterem recursos que permitam sua expansão, atraindo militantes e apoios com as benesses que extraem do Estado. É sob essa condição que dão votos ao governo no Congresso. O que era episódico se tornou um “sistema”, o que era desvio individual de conduta se tornou prática aceita para garantir a “governabilidade”.

Dessa forma, as “bases” dos governos resultam mais da composição de interesses materiais que da convergência de opiniões. Com isso perdem sentido as distinções programáticas, para não falar nas ideológicas: tanto faz que o partido se diga “de esquerda”, como o PC do B, ou centrista, como o PMDB, ou de centro-direita, como o PR, ou que epíteto tenham, todos são condôminos do Estado. Há apenas dois lados, o dos condôminos e o dos que estão fora da partilha do saque. O antigo lema “é dando que se recebe”, popularizado pelo deputado Cardoso Alves no governo Sarney, referia-se às nomeações, ao apadrinhamento, que, eventualmente, poderiam levar à corrupção, mas em si mesmo não o eram. Tratava-se da forma tradicional, clientelista, de fazer política.

Hoje é diferente. Além da forma tradicional – que continua a existir -, há uma nova maneira “legitimada” de garantir apoios: a doação quase explícita de ministérios com as “porteiras fechadas” aos partidos sócios do poder. Digo “legitimada” porque desde o mensalão o próprio presidente Lula outra coisa não fez senão justificar esse “sistema”, como ainda agora, no caso da demissão dos ministros acusados de corrupção, aos quais pediu que tivessem “casca dura” – ou queria dizer caradura? – e se mantivessem no cargo. Num clima de bonança econômica, a aceitação tácita deste estado de coisas por um líder popular ajuda a transformar o desvio em norma mais ou menos aceita pela sociedade.

Pois bem, parece-me grave que, no momento em que a presidenta esboça uma reação a esse lavar de mãos, um ministro reitere a velha cantilena: a contaminação adveio das ONGs. Esqueceu que o governo tem a responsabilidade primordial de cuidar da moral do Estado. Não há Estado que seja por si só moral, nem partido que seja imune à corrupção pela graça divina. Pior, que não se possa tornar cúmplice de um sistema que se baseie na corrupção.

O “sistema” reage a essa argumentação dizendo tratar-se de “moralismo udenista”, referência às críticas que a UDN fazia aos governos do passado, como se ao povo não interessasse a moral republicana. Ledo engano. É só discutir o tema relacionando-o, por exemplo, com trapalhadas com a Copa para ver se o povo reage ou não aos desmandos e à corrupção. A alegação antimoralista faz parte da mesma toada de “legitimação” dos “malfeitos”. Não me parece que a anunciada faxina, embora longe de haver sido completa, tenha tirado apoios populares da presidenta. O obstáculo a uma eventual faxina não é a falta de apoio popular, mas a resistência do “sistema”, como se viu na troca de um ministro por outro do mesmo partido, possivelmente também para preservar um ex-titular do mesmo ministério que trocou o PC do B pelo PT e hoje governa o Distrito Federal. Estamos diante de um sistema político que começa a ter a corrupção como esteio, mais do que simplesmente diante de pessoas corruptas.

Ainda há tempo para reagir. Mas é preciso ir mais longe e mais rápido na correção de rumos. E nesse esforço as oposições não se devem omitir. Podem lutar no Congresso por uma lei, por exemplo, que limite o número de ministérios e outra, se não a mesma, que restrinja ao máximo as nomeações fora dos quadros de funcionários. Por que não explicitar as condições para que as ONGs se tornem aptas a receber dinheiros públicos? Os desmandos não se restringem ao Ministério do Esporte, há outros na fila. Os dossiês da mídia devem estar repletos de denúncias. Não adianta dizer que se trata de “conspirações” contra os interesses populares. É da salvaguarda deles que se trata.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Victor Castro: Só há uma Esquerda…

Em que pese todo o histórico de que esquerda e direita surgiram durante as revoluções iluministas dos séculos XVII a XVIII, foi durante o século XIX que a verdadeira Esquerda emergiu e ganhou a identidade que teria até os dias de hoje. Marx foi o grande divisor de águas, que relegou Proudhon, Lassale e outros pensadores de esquerda da época ao segundo plano, definindo a metodologia e o conjunto de crenças que mais tarde guiariam Gramsci, Lenin, Mao, Trotsky, e outros pensadores e estadistas pós-marxistas.

A única delimitação conceitual existente entre direita e esquerda, que se funda em premissas mais objetivas e aferíveis in concreto (leia-se: segregacionistas), é justamente a delimitação dada pelos marxistas: só é de esquerda quem está concatenado com a pauta revolucionária de instituição da ditadura do “proletariado” (aqui dentro de um conceito partidário do termo, não significando o operário em si, mas os professores, servidores públicos, artistas, intelectuais, etc., que abraçam o socialismo marxista).
A hegemonia política de um único partido sobre as demais forças políticas da sociedade, com a posterior implantação de uma pauta mista de reformismo e reacionarismo, é a única bandeira ideológica real da esquerda marxista: é preciso ser hegemônico no poder, sobre a “mídia”, os partidos, as instituições, o ensino, as crenças, etc., para que o projeto socialista perdure e gere os frutos de utopia igualitária que ele pretende.

E por ser assim, não há margem para negociações de longo prazo, como a aceitação às liberdades individuais da pequena burguesia, contempladas no liberalismo constitucional das revoluções iluministas (aquelas mesmas que fizeram surgir o embate direita x esquerda, sob outras bases, décadas antes de Marx). Toda concessão feita pela Esquerda é uma aceitação provisória, uma negociação que visa derrotar o liberalismo constitucional com as armas da democracia representativa: vencer as eleições, cooptar aliados, subornar a ala corrupta e fisiológica da Direita, aparelhar as instituições, deslegitimar as forças de oposição e, finalmente, suprimir as liberdades burguesas.

Não existe esquerda democrática, não no sentido liberal do termo: a democracia que esbarra na garantia de direitos e liberdades individuais inalienáveis. A democracia da Esquerda é a democracia direta da vontade popular dinâmica, dialética, da supressão de “privilégios” daqueles que estejam por baixo na cadeia alimentar do equilíbrio de forças políticas de uma sociedade. E quem tacha como “de direita” todos aqueles que, mesmo se dizendo de esquerda, não estão comprometidos com o projeto revolucionário marxista, de hegemonia partidária e ideológica (o que inclui o controle da superestrutura, do ensino à comunicação social), é a própria Esquerda (marxista, socialista, revolucionária).

Logo, fora do campo de auto-articulação desses grupos revolucionários, que visam à ditadura do proletariado “de boutique” (leia-se: os professores, intelectuais, artistas e servidores públicos marxistas), só há a Direita. E esta Direita pode ser liberal ou conservadora nos costumes, liberal ou intervencionista/nacionalista na economia, democrática ou autoritária: a Direita é a zona cinzenta que abrange todos os demais grupos de ideologias que não são a Esquerda (marxista, socialista, revolucionária).

Isto não sou eu quem está dizendo. Isto é o que disseram Gramsci, Lenin, Trotsky, Mao, e todos os demais pensadores e estadistas pós-marxistas, com seu segregacionismo próprio daqueles que se pretendem iluminados com um messianismo que a tudo justifica, inclusive à utilização da democracia para suprimir a democracia, ou de discursos de paz e prosperidade para justificar a violência e a privação.

Plagiando o Al Corão: só há uma Esquerda, e Karl Marx é seu profeta. Alguém duvida disto?

Manoel Pastana: Amorim e Genoino comandam a Defesa

O ex-chanceler Celso Amorim e o ex-guerrilheiro José Genoino, o primeiro como ministro da Defesa e o segundo como assessor especial, são exemplos de coragem e patriotismo que servem de estímulo à tropa.

Certamente os militares devem estar muito satisfeitos, orgulhosos com a missão que têm de defender o país. O Brasil está muito bem em termo de defesa, assim como está no combate à corrupção (os corruptos estão com tanto medo da repressão contra eles, que o verbo corromper só se conjuga no passado...).

Quando Evo Morales, também conhecido como “Evo Petrobale” ou “Evo Cocale”, com seus bem nutridos soldados de 1,90m de altura, invadiram as instalações da Petrobras na Bolívia e tomaram no grito a propriedade brasileira, Celso Amorim, então ministro das Relações Exteriores, disse a Lula que Morales estava no direito dele. Parece que Lula gostou do que ouviu e nada fez em defesa da estatal brasileira. Como “prêmio” à “coragem” de “Cocale”, Lula perdoou dívida de 52 milhões de dólares da Bolívia para com o Brasil e ainda aceitou que o invasor aumentasse o preço do gás que vende para nós.

Celso Amorim também auxiliou Lula a ajudar o bispo mulherengo Fernando Lugo a cumprir promessa de campanha pela Presidência do Paraguai. O bispo Lugo, que não levava a sério as limitações do sacerdócio e “faturou” umas devotas, engravidando várias delas, elegeu-se presidente do Paraguai prometendo obrigar o Brasil a pagar o “preço justo” da energia que o país dele nos “vende”, em decorrência da sociedade que tem na Hidrelétrica de Itaipu. Lula aceitou a imposição do companheiro guarani e o Brasil passou a pagar 300% a mais pela energia “comprada” do Paraguai.

O Paraguai é sócio do Brasil na Hidrelétrica de Itaipu. Como aquele país consome apenas 5% da energia a que tem direito na sociedade, vendia o restante ao Brasil pelo preço de custo. Fernando Lugo fez campanha e foi eleito, acusando o nosso país de ser explorador. Ele teria razão, se não fosse um pequeno detalhe: o Paraguai não gastou um único centavo com a construção da mega hidrelétrica. Tudo foi suportado pelo contribuinte brasileiro.

Para se ter uma ideia da dimensão de Itaipu, que continua sendo a maior hidrelétrica do mundo, mais de 40 mil operários participaram da obra. Foram 13 anos de construção, sendo gasto 15 vezes mais concreto do que no Eurotúnel que liga a Inglaterra à França. Aliás, 15 mil operários levaram sete anos escavando a construção do Eurotúnel, porém o volume de escavação na construção de Itaipu é 8,5 vezes maior do que o do empreendimento europeu. Itaipu é tão grande que hoje, 26 anos depois de sua construção, o Paraguai só consegue consumir 5% dos 50% da energia que lhe cabe na sociedade.

Nessa sociedade, o país vizinho só entrou com a cara. É como se um empresário convidasse um mendigo para construir um shopping no lugar onde este dormia. O mendigo teria 50% de direito na sociedade, sendo que sua quota financeira no empreendimento seria paga com o faturamento do shopping quando entrasse em funcionamento. Mutatis mutandis (feitos os ajustes necessários), foi isso o que aconteceu no referido empreendimento. O Paraguai não teria a menor condição de arcar financeiramente, pois o investimento representava várias vezes o seu PIB (Produto Interno Bruto). Então o Brasil assumiu o ônus financeiro, sendo que a parte do Paraguai ficou para ser paga com excedente da energia que lhe cabe na sociedade, e não consegue consumir.

Pelo acordo, o Brasil comprava o excedente da energia a preço de custo, sendo que a quitação da dívida do Paraguai ocorrerá no ano de 2023. A compra pelo preço de custo era justa, pois o investimento fora realizado apenas pelo contribuinte brasileiro. Não é razoável o Paraguai, que nada investiu, querer ter lucro em cima do investimento brasileiro. É muito o que aquele país já ganhou, porquanto desde a construção, no início da década de setenta, ele vem se beneficiando, pois milhares de empregos diretos e indiretos contemplaram tanto brasileiros como paraguaios, e a estes só coube o bônus; alem disso, em 2023, com a quitação da dívida na sociedade, o Paraguai será dono de 50% de um empreendimento de muitos bilhões de dólares, várias vezes superior ao seu PIB.

Por ter cedido ao capricho do presidente Paraguaio, Lula onerou o contribuinte brasileiro em 300% do valor da energia adquirida da quota do Paraguai, cujo investimento foi brasileiro. O presente de Lula foi aprovado pelo Congresso Nacional em maio desde ano. A “justificativa” para a aprovação é que o aumento do valor da energia, que representará algumas centenas de milhões de dólares a jorrar nos cofres paraguaios todos os anos, não será repassado ao consumidor, pois os recursos sairão do Tesouro Nacional.

A pergunta que se faz é quem banca o Tesouro Nacional? É o Lula com suas palestras? É o Celso Amorim com suas aulas? ou.é o espoliado contribuinte brasileiro que trabalha mais de cinco meses por ano somente para pagar impostos e terá mais uma conta a ser suportada em razão dos caprichos megalomaníacos de uma pessoa, que nunca deu duro para estudar (há estudantes no interior da Amazônia que saem de suas casas 11 horas da noite para estudar no outro dia. Lula não precisaria fazer tal sacrifício, mas ele preferiu não estudar...), bem como se aposentou muito cedo, não sabendo como é duro trabalhar para pagar impostos.

A propósito, em apenas oito anos de mandato, Lula endividou o Brasil em um trilhão de reais (dívida pública interna), o que representa mais de seiscentos bilhões de dólares. Em 20 anos de governo, os militares endividaram o país em 100 bilhões de dólares, ou seja, em apenas oito anos, Lula endividou o Brasil seis vezes mais do que os militares endividaram em 20 anos de governo, sendo que os milicos fizeram várias obras gigantescas como, por exemplo, a Hidrelétrica de Itaipu; enquanto Lula apenas prometeu, mas não fez nenhuma obra de porte grande. A infraestrutura do país continua a mesma do século passado. E mais. Ao contrário dos governos Sarney, Collor, Itamar e FHC que passaram por situações de instabilidade econômica, sendo necessário investir em vários planos econômicos, Lula não precisou investir em nenhum plano, pois apenas continuou com o Real.

Pois é, além de Lula ter saído passeando pelo mundo, torrando o dinheiro suado do imposto do contribuinte no luxuoso Aerolula, ele fazia muita “caridade”, perdoando dívidas de países devedores do Brasil. A paixão dele era por ditadores; por exemplo, ele perdoou dívida do Gabão, governado por um ditador, acusado de possuir bilhões de dólares em paraísos fiscais. Se não bastassem a roubalheira com a corrupção interna, os gastos astronômicos com cabide de empregos e exageradas mordomias, o grande “estadista” distribuía benesses mundo a fora. Tudo, claro, custeado pelo contribuinte brasileiro.

Lula, o Papai Noel de ditadores, saiu, mas a conta ficou. A dívida interna está quase chegando a dois trilhões de reais. A externa, que disseram ter sido paga em 2005 (e muita gente acreditou...), está quase chegando a 300 bilhões de dólares. Os efeitos disso repercutem diretamente no emprego das montanhas de recursos arrecadados com os impostos. Só nos cinco primeiros meses do ano, foram arrecadados meio trilhão de reais.

Grande parte desse gigantesco recurso deve ter sido utilizada para pagar juros da dívida, principalmente a interna, outra robusta parte deve ter vazado pelo ralo da corrupção, uma parte menor, mas de bom tamanho, deve ter sido utilizada para fazer publicidade, a fim de ocultar a verdadeira realidade, sobrando muito pouco como retorno à sociedade. É por isso que o Brasil está com a infraestrutura do século passado, e a educação, saúde, segurança e outros serviços públicos são prestados em condições piores as de países do Terceiro Mundo.

A propósito, no livro “Viagens com o Presidente”, editora Record, 2ª edição, p.93, está registrado para que gerações futuras saibam, já que a atual parece não querer saber, o critério utilizado pelo ex-presidente Lula para “conquistar o mundo”. O registro consigna a grande importância do atual ministro da Defesa, Celso Amorim, no magnífico trabalho desenvolvido pelo ex-presidente, que hoje ensina o que fez nas suas palestras. Vejamos o registro:

Nas viagens internacionais, (Lula) tem outra mania. Logo no início do trajeto de volta ao Brasil, chama o ministro Celso Amorim e um oficial da Aeronáutica à sua cabine e, com a ajuda de um grande mapa-múndi, trata de ficar imaginando quais poderiam ser as próximas nações a serem visitadas. A rotina, então, é questionar Amorim sobre as características dos países apontados por ele no mapa, e ao militar pergunta a respeito de questões técnicas das rotas imaginadas, como escalas e trajetórias viáveis à aeronave.

Como se vê, Celso Amorim, o ex-ajudante do Papai Noel de ditadores, foi muito importante no governo passado e agora o será no Governo Dilma, ainda mais contando com o assessoramento do ex-guerrilheiro José Genoino. Para quem não sabe, Genoino participou da chamada Guerrilha do Araguaia, ou melhor, ele quase participou, pois antes mesmo que fosse dado o primeiro tiro, o nosso herói desistiu da luta. Não só desistiu, como ajudou a seus companheiros a desistir.

Havia cerca de 90 guerrilheiros na Selva Amazônica. Os militares não tinham certeza da existência deles, então enviaram cerca de dez homens do serviço de inteligência para a região. Quando os guerrilheiros souberam que os milicos estavam na área, eles fizeram igual àqueles “corajosos” trezentos e poucos bandidos, armados de fuzis, que fugiram do morro igual a galinhas assustadas com medo da raposa, quando dois pequenos tanques com duas dúzias de policiais subiram o morro. Os “valentes” guerrilheiros fizeram o mesmo, tomaram doril e sumiram na densa selva, deixando para trás o acampamento e um faminto cachorro vira lata.

Genoino foi pego no meio do caminho, interrogado pelos milicos, ele disse que se chamava “Geraldo” e que era um caboclo da região. Os militares pediram para ver a mão dele e observaram que era igual a do Lula (a mão do caboclo é grossa, devido ao trabalho duro). “Geraldo” foi conduzido para o acampamento abandonado. Lá chegando foi “dedurado” pelo vira lata que foi para cima dele abanando o rabo e fazendo ruídos característicos de cães que pedem desesperadamente comida. Com a certeza de que “Geraldo” não era Geraldo, os militares disseram que se ele não colaborasse, seus “documentos” seriam extraídos com o próprio facão (ele portava um facão na cintura, quando foi pego) e serviriam de fonte de proteína para o animal faminto.

Apavorado com o “argumento” dos militares, Genoino abriu o verbo. Informou o nome falso que cada guerrilheiro usava, posição que ocupava na guerrilha etc.. Além disso, tirou foto e fez declaração a seus companheiros para que se entregassem. O material foi confeccionado em panfletos e jogado de helicópteros no meio da selva. A estratégia funcionou, a maioria se entregou e quem não seguiu o conselho de Genoino virou presunto.

Portanto, Genoino tem todos os requisitos para o importante cargo que exerce, inclusive foi condecorado em maio deste ano com a “Medalha da Vitória”. Ele faz jus à condecoração, pois é um vitorioso, ponha vitorioso nisso.

Com efeito, a experiência e o elevado espírito nacionalista do ex-chanceler Celso Amorim e mais a coragem do ex-guerrilheiro José Genoino, os brasileiros podem ficar tranquilos: a defesa do país está em boas mãos; boas, não, ótimas.

Manoel Pastana é Procurador da República e Escritor - www.manoelpastana.com.br

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Roberto Pompeu de Toledo: À moda stalinista

Pouco antes de jogar a toalha, na semana passada, e entregar a cabeça do ministro do Esporte, Orlando Silva, o PCdoB tentou reinventar seu passado. No programa de propaganda obrigatória que foi ao ar no dia 20, apresentou como emblemas do partido Luís Carlos Prestes, Olga Benario, Jorge Amado, Portinari, Patrícia Galvão (a Pagu), Oscar Niemeyer e Carlos Drummond de Andrade. Era uma fraude similar às operações do programa Segundo Tempo. Dos sete, os seis primeiros pertenceram ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), o arquirrival do Partido Comunista do Brasil (PCdoB). O sétimo, o poeta Carlos Drummond de Andrade, não foi nem de um nem de outro. O partido tentava, num programa de TV em que jogava as últimas fichas para safar-se do escândalo no Ministério do Esporte, pegar carona num casal de ícones da história brasileira (Prestes e Olga) e em algumas das mais queridas figuras da cultura do país.

O caso menos grave é o de Oscar Niemeyer, o único vivo do grupo. Apesar de ter sido militante do PCB, já apareceu em programas anteriores do PCdoB, do qual aceita as homenagens. O mais grave é o de Prestes. O PCdoB surge, em 1962, do grupo que, no interior do PCB, discordou da denúncia do stalinismo promovida na União Soviética após a morte do ditador. O PCdoB, com um curioso “do” no meio da sigla, será daí em diante o guardião da pureza stalinista. Os outros são a “camarilha de renegados”. E o renegado-mor, claro, é Prestes, o líder do PCB. No verbete “PCdoB” da Wikipédia, escrito num tão característico comunistês que não deixa dúvida quanto à sua procedência oficial, Prestes é tratado de “revisionista” (insulto grave, em comunistês) e acusado de ter “usurpado a direção partidária”. Também se diz ali que “abandonado à própria sorte, em idade avançada”, Prestes “dependerá de amigos como Oscar Niemeyer para sobreviver”. Eis colocadas na mesma cloaca da história (o comunistês é contagiante) duas figuras que agora o PCdoB alça ao altar de seus santos.

Entre os outros casos de usurpação biográfica, a alemã Olga, primeira mulher de Prestes, foi fiel soldado das ordens de Moscou. Morreu muito antes de surgir o desafio do PCdoB, mas é de apostar que essa não seria a sua opção. Portinari e Pagu morreram, no mesmo 1962 do cisma comunista, ele fiel à linha de Moscou, ela convertida ao trotskismo, portanto inimiga do stalinismo. Jorge Amado na década de 60 já tinha o entusiasmo mais despertado pelo cheiro de cravo e pela cor de canela do que pela causa do proletariado. Em todo caso, sua turma era a de Prestes, o “Cavaleiro da Esperança” que cantara num livro com esse título.

O caso mais estapafúrdio é o de Drummond. Nos anos 1930/1940 ele praticou uma poesia de cunho social e filocomunista. Chegou a colaborar com o jornal Tribuna Popular, do PCB. Mas nunca se filiou ao partido. Cultivou a virtude de nunca ser firme ideologicamente. O namoro com o comunismo, dividia-o com a fidelidade ao Estado Novo, ao qual serviu no Ministério da Educação. No pós-guerra, mitigava o comunismo com a sedução pela UDN do amigo e mentor Milton Campos. Em 1945 votou para senador em Luís Carlos Prestes, do PCB, e para presidente em Eduardo Gomes, da UDN. E, em 1964, apoiou o golpe militar. “A minha primeira impressão foi de alívio, de desafogo, porque reinava realmente, no Rio, um ambiente de desordem, de bagunça, greves gerais, insultos escritos nas paredes contra tudo. Havia uma indisciplina que afetava a segurança, a vida das pessoas”, explicou numa entrevista, transcrita em livro recente (Carlos Drummond de Andrade Coleção Encontros). Agora vem o PCdoB dizer que Drummond foi um dos seus!?

Desconcertante história, a desse partido. A defesa do stalinismo levou-o a festejar o grande timoneiro Mao Tsé-tung e, quando o timão do chinês emperrou, buscar inspiração na Albânia do “Supremo Camarada” Enver Hoxha. Arriscou uma aventura guerrilheira nos barrancos do Araguaia. E, em anos recentes, encantou-se pela UNE e pelo monopólio da carteirinha de estudante, declarou ao esporte um amor insuspeitado em quem associava o partido à figura franzina do patrono João Amazonas (1912-2002) e recrutou, para reforço de suas chapas, jogadores de futebol (Ademir da Guia, Muller) e cantores (Netinho de Paula, Martinho da Vila) em quem nunca se suporia inclinação pela causa da foice e do martelo. Se há uma coisa em que manteve a coerência, é no vezo stalinista. Stalin mandava cortar das fotos dirigentes do partido caídos em desgraça. O PCdoB inclui em suas fileiras gente que lhe foi alheia. Pelo avesso, chega ao mesmo fim de falsificar a história.