terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Fernando Henrique Cardoso: Um ex de bem com a vida - Entrevista

UM EX DE BEM COM A VIDA
Mario Sabino

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, de 79 anos, é um homem realizado. Na Presidência, derrotou a inflação, por meio do Plano Real, lançado quando era ministro da Fazenda de Itamar Franco, e promoveu privatizações bem-sucedidas, que desoneraram os contribuintes, possibilitaram o surgimento de empresas fortes e globais, como a Vale, e universalizaram o sistema de telefonia.

Fora da Presidência, ele assumiu, dentro dos limites brasileiros, o papel de um ex que chama os políticos às falas quando a democracia está em perigo. Na semana passada, na sede do instituto que leva seu nome, ele deu a seguinte entrevista a VEJA.

O que o senhor sentiu no exato instante em que deixou de ser presidente da República, ao passar a faixa para Luiz Inácio Lula da Silva, em 2003?
 Fiquei emocionado, é claro, até porque o Lula disse que eu deixava lá, no Palácio do Planalto, um amigo – o que, naquele momento, talvez fosse verdadeiro. Mas a minha emoção também se deveu ao fato de eu sentir que vivia um momento histórico que ultrapassava em magnitude outras passagens da faixa presidencial.

Por quê?
Porque, durante os meus mandatos, com o consenso da sociedade, havíamos conseguido mudar o Brasil para melhor. Eu entregava a Lula um país que, a despeito de todas as crises econômicas mundiais que marcaram aqueles anos, estava mais sólido do ponto de vista da economia. Com o Plano Real, iniciado no governo de Itamar Franco, e a autonomia do Banco Central, vencemos a inflação.

Com a implantação da Lei de Responsabilidade Fiscal, detivemos um dos sangradouros de dinheiro público. Com as privatizações, alcançamos a universalização do sistema de telefonia. Além disso, havíamos superado os traumas políticos causados pelo regime militar, as arestas da redemocratização e o impeachment de Fernando Collor de Mello. Tudo isso me veio à cabeça no momento em que passei a Presidência a Lula.

E para além da emoção, digamos, institucional?
Depois da cerimônia, rumamos, eu e Ruth, para o aeroporto, onde muita gente amiga nos esperava para a despedida. Foi aí que a emoção mais pessoal começou. Abracei assessores que haviam trabalhado comigo durante oito anos seguidos, que faziam parte do meu cotidiano. Embarcamos, então, para São Paulo, ainda no avião presidencial.

Ao chegar, troquei de roupa e seguimos para o avião comercial que nos levaria a Paris. Nesse momento, relaxei, tive uma sensação boa de dever cumprido – tanto no plano institucional como no individual.

Quando chegamos a Paris, voltei um pouco a ser presidente, porque nos esperavam o então embaixador na capital francesa, o Marcos Azambuja, e o da Unesco, o José Israel Vargas, ambos meus amigos. Não havia séquito, mas ainda assim desembarcamos no terminal oficial, entramos num carro da embaixada e fomos escoltados por policiais franceses.

Ao chegar ao hotel perto da cidade de Chartres por alguns dias antes de ficar em Paris eu chamei o chefe da guarda francesa, agradeci a atenção, mas disse que dispensava aqueles cuidados. Ele me respondeu que estava cumprindo ordens e, portanto, seus homens tinham de fazer a segurança.

E que o senhor fez diante dessa resposta?
Eu renovei meu agradecimento e enfatizei que não queria ninguém perto de mim nem de minha mulher. Eles foram embora. Dormi, então, a minha primeira noite de mortal comum. No dia seguinte, eu e Ruth fomos a Chartres sozinhos para visitar a esplêndida catedral gótica – um passeio maravilhoso em todos aspectos, mais principalmente pelo fato de não estarmos mais acompanhados de comitiva, seguranças e repórteres.

Recuperei, enfim, minha privacidade. Em Paris, também dispensei os serviços que a embaixada queria me prestar e voltamos a andar de metrô, como sempre fizemos. Uma delícia – e com um efeito muito didático. Porque uma coisa é o Planalto; outra é a planície. Na planície, você é promovido a povo.

Não houve nenhum momento de angústia por causa da perda do poder?
Não, de verdade. Evidentemente, isso deve variar de pessoa para pessoa. O fato é que me considero, digamos assim, um homem pluridimensional. Além de ser político tenho uma vida intelectual, uma vida interior, que pude retomar com o fim da minha Presidência. Entrei nela imediatamente, começando a escrever o livro A Arte da Política — A História que Vivi, que seria lançado em 2006. Ainda na França, passei a ver meus amigos que lá moram.

Uma única vez, fui ao Palácio do Eliseu, para uma refeição com Jacques Chirac, então presidente. Ele me recebeu com honras de estado, verdadeiro cavalheiro que é, e depois me ligou duas vezes. Deixou mensagens na secretária eletrônica: “Allô, Fernandô, ici c’ est Jacques”. Mas resolvi viver de fato o meu dia a dia de turista, na planície, como disse.

O senhor não sentiu falta de nada?
Senti falta de certas coisas, é lógico. Da piscina do Palácio da Alvorada, por exemplo, que é magnífica e na qual eu dava umas braçadas para combater a dor nas costas. Também gostava muito de ter cinema em casa, muito conveniente. E do helicóptero, uma enorme facilidade.

Senti falta disso tudo, mas não era uma falta absoluta, visto que sou oriundo da classe média, que não goza desses confortos. Também senti falta de algumas pessoas. Por exemplo, da empregada que nos atendeu por anos a fio no Alvorada, a Dalina – que ainda hoje serve ao Lula. Levei-a do Itamaraty para o Palácio, e eu e minha família ficamos muito afeitos a ela.

O senhor gostava de Brasília?
Sempre gostei de Brasília.

Trata-se de um gosto um tanto peculiar, ao menos para a maioria dos políticos paulistas e cariocas, pelo menos…
Pois é, mas eu gosto de horizonte amplo que a cidade proporciona. Tudo em que, na Presidência, eu não morava em Brasília, mas no Palácio, que fica meio apartado da cidade…O fato é que, quando você é presidente, se torna um prisioneiro — prisioneiro de luxo, mas prisioneiro. Você não é dono da sua vida. Só volta a ser livre depois. A liberdade é ótima, mas requer adaptação, não é mesmo? Se você tem outros interesses na vida, ela é mais rápida.

Hoje, o senhor pode ser visto andando a pé pelas ruas de seu bairro, em São Paulo, entrando em livrarias e em restaurantes, sem que ninguém o incomode.
O povo brasileiro é extremamente agradável desse ponto de vista. Nunca recebi uma única agressão, e certamente tem muita gente me desaprova. Nem (…) por causa da campanha eleitoral ninguém foi desaforado comigo. Já os que se posicionam do seu lado, esses, sim, se manifestam. Você tem até a ilusão de que todo mundo gosta de você. O que mais surpreende é a receptividade durante o meu governo e, ainda assim, me abordam para conversar, tirar fotografias… O convívio no Brasil é, em geral, muito bom, cordial.

Medo de assalto, o senhor não tem?
Apesar de vez por outra ocorrerem assaltos nas imediações do meu prédio, não é uma preocupação para mim. Voltando ao convívio com as pessoas, outro dia aconteceu um episódio muito simpático: eu estava sozinho num sábado, quando resolvi ir a um restaurante perto da minha casa. Até pensei em bater na janela da casa de uma assessora minha, que mora próximo de mim, mas achei que ela estivesse dormindo.

Quando entrei no restaurante de comida árabe, duas moças que dividiam uma mesa exclamaram: “Presidente, andam dizendo que o senhor vai casar . Fiquei envergonhado, respondi que não e sentei numa mesa ao lado. Perguntaram, então, se eu não queria sentar com elas. Respondi que teria muito prazer que elas fossem para a minha mesa – e elas foram. Jantamos, cada um pagou a sua parte e elas ainda fizeram questão de me acompanhar a pé até a minha casa. Uma tinha um namorado em Barcelona, a outra era artista plástica: ótima conversa.

É bom voltar para casa com duas moças, não?
Sim, mas tudo na maior gentileza. Esse tipo de situação mostra como o povo brasileiro é informal. Desconhecidas perguntarem de chofre a mim, um ex-presidente, se eu vou casar… Convenhamos, não é habitual em nenhum lugar do mundo. E isso sem maldade, é apenas um jeito simpático de ser.

Outro exemplo: todo dia, tomo o elevador aqui deste prédio onde mantenho meu instituto, sem nenhuma exigência de exclusividade. Os mais jovens ficam um pouco atônitos ao me ver não sabem se sou ou não o ex-presidente. Os mais velhos, geralmente, me cumprimentam. Pois bem, não faz muito tempo, havia um casal de senhores no elevador. Ela, principalmente, não tirava os olhos de mim, até que tomou coragem para perguntar: “O senhor não é …? Respondi: “Não, aquele é meu irmão”.

Sabe o que ela disse? Logo vi, o outro é bem mais velho”. Só no Brasil.

Em nosso país, não existe a instituição do ex-presidente, assim como há nos Estados Unidos. Lá, ex-presidentes têm um papel institucional claro, ao se transformarem em referência para a nação, independentemente de seu partido ou popularidade. São, inclusive, chamados pelo presidente em exercício para cumprir determinadas missões. Chegaremos a esse grau de civilidade?
Olhe, eu fiz isso em duas ocasiões. Pedi ao [ex-presidente] Itamar [Franco, 1992-1995] que me representasse na entrega de um Prêmio Nobel da Paz, em Oslo, e o [ex-presidente José] Sarney me acompanhou numa viagem presidencial. Eu tentei, mas não é fácil.

O senhor não acha que o instituto da reeleição solapa a institucionalização da ex-Presidência?
Sem dúvida. Nos Estados Unidos, um ex-presidente, depois de reeleito para um segundo mandato consecutivo, não pode ambicionar voltar a política. Seria considerado uma ruptura inaceitável, inclusive do ponto de vista da tradição. Já no Brasil, isso é possível. Eu não sou contrário à reeleição consecutiva, foi no meu governo que essa regra foi aprovada, mas, hoje, acho ruim um ex-presidente reeleito ter a possibilidade de candidatar-se a um terceiro mandato, depois do interregno de um mandato alheio.
Se pudesse voltar atrás, teria lutado para aprovar uma legislação que impedisse isso. É que eu não imaginava que um ex-presidente pudesse se tornar um cabo eleitoral permanente de si mesmo, desprezando o princípio da alternância de poder, assim como faz o Lula. É preciso que ele entenda que existe vida fora do poder – e que você se torna tão mais útil e mais relevante, ao deixar a Presidência, quanto menor for sua ligação com a política partidária e maior o diálogo com os diversos segmentos da sociedade.

Nos últimos oito anos, contudo, o senhor fez críticas contundentes contra políticas do atual presidente. O senhor não foi partidário?
Eu fico espantado como os petistas consideram a minha simples existência uma pedra no sapato ou, mais poeticamente, no caminho… Quando fiz e faço críticas, é porque tenho a obrigação pública de me manifestar quando observo que certas decisões do governo federal comportam ameaças a democracia, inclusive porque não deixei de ser um homem político.

Nos Estados Unidos, por exemplo, o Jimmy Carter não se furta a dar sua opinião, mesmo quando não é perguntado. Agora, ninguém me vê na linha de frente da política partidária. Não é o meu papel como ex-presidente. A confusão entre o que é obrigação pública e comentário partidário advém também do fato de os ex-presidentes vivos brasileiros, a minha exceção, continuarem na vida partidária. Todos são senadores. Não deveria ser assim.

Aos olhos de muitos brasileiros, o senhor e o presidente Lula parecem nutrir uma rivalidade que ultrapassa o campo político e adentra o das personalidades. (…) É uma percepção correta?
Da minha parte, garanto que não. Da do Lula, parece que existe tal rivalidade. Não sei porque ele insiste tanto em comparar-se a mim. Nesta última campanha, por exemplo, falaram o diabo do meu governo, embora eu não fosse candidato. E eu não tenho direito de defesa, veja só!

O Lula não precisava de nada disso. Para mostrar o que fez, ele não tem necessidade de desfazer as conquistas do outro. Até porque ele deu continuidade a políticas do meu governo e acrescentou aspectos positivos a elas. O Lula, por exemplo, manejou bem o timão durante a última crise econômica, mas não foi ele quem estabilizou o país. Ele também não criou os programas sociais, mas os expandiu. Fez a sua parte? 

Fez. Então, por que tentar cancelar o passado e dizer que o Brasil nasceu no seu governo? O Lula não necessita disso como político.

O que me leva a pensar que, de fato, ele tem um problema de ordem psicológica em relação a mim. Quando o Lula solta a frase “nunca antes neste país”, eu até brinco que ele poderia dizer que “nunca antes neste país viveram tantos brasileiros”.

O senhor, recentemente, propôs ao presidente Lula que, quando ele “vestisse o pijama”, fosse debater com o senhor na televisão. Os dois, assim, estariam em condição de igualdade, como ex-presidentes, já que ele não poderia contar com a máquina oficial de propaganda. Foi uma blague ou é para valer?
A Rede Bandeirantes entrou em contato comigo, para realizar esse programa, e eu topei. Não seria propriamente um debate, um duelo, mas uma conversa franca, que a meu ver teria até uma função educativa para os cidadãos e os políticos.

Quando deixei o governo, achei que o Lula e o PT entenderiam finalmente que era possível estabelecer convergências com o PSDB, no intuito de implementar reformas do interesse do país. Mas, de uma forma eleitoreira, eles definiram desde o início que os tucanos e eu, principalmente seriam os seus inimigos. Tanto que Lula jamais me chamou para um café no Palácio do Planalto.

Esse caminho equivocado, de confrontação permanente, deu no mensalão. Eles recorreram aos fisiológicos do Congresso, em vez de estabelecer uma ponte com a oposição responsável. O pior é que não era necessário. Quem sabe agora, na condição de ex-presidente, o Lula se disponha a manter alguma forma de diálogo comigo, conosco… Uma conversa franca, nesse sentido. Seria interessante para ambos os lados. Poderia resultar numa agenda civilizada para o Brasil. Mas tenho dúvida, dado o grau de acirramento das animosidades, se isso serás possível. Infelizmente, estabeleceu-se uma disputa entre o PT e o PSDB, para ver quem comanda o atraso. E, muitas vezes, o atraso é que comanda – como no caso do mensalão, volto a dizer.

Que conselho o senhor daria ao ex-presidente?
Para ter humildade. O Lula foi tomado por uma apoteose mental. Ele realmente passou a acreditar no que diz a propagnda do seu governo e nos elogios dos seus áulicos. O curioso é que ele sempre me acusou de ser um sujeito demasiado vaidoso, arrogante, narcisista. Mas é o contrário. Comparado a ele, sou Gandhi.

Que conselho o senhor daria ao próximo presidente?
Para não viver sob o impulso do passado. O Brasil precisa urgentemente de uma visão estratégica. Precisamos pensar sobre o papel que teremos num mundo em que o eixo do poder se desloca velozmente para a China. Outro exemplo: qual será a nossa matriz energética? Vamos mesmo apostar tudo no pré-sal? E quanto à justiça, à segurança, à educação: o que podemos fazer de fato, e rápido? As nossas questões não são mais econômicas, isso já está resolvido. Aprendemos a trabalhar bem nessa área. Nossa agenda, agora, é outra. Ou deveria ser.

O senhor, tão demonizado pelo PT, sente-se injustiçado?
Injustiçado, não, porque sou bem tratado de forma geral, como disse no início desta entrevista. Mas a minha figura acabou distorcida na imprensa, em certos meios intelectuais e, é triste dizer, contaminou até mesmo setores do partido que fundei. De vez em quando, os absurdos que os inimigos dizem a meu respeito são tamanhos que me sinto obrigado a me defender. Mas, em geral, como estou fora da rinha, lido bem com essa distorção e deixo para lá. Penso é no julgamento da História.

E como a História o julgará?
A História é uma contínua reinterpretação e será assim tanto em relação a mim como em relação ao Lula. Mas isso não me abala. Ora vão me exaltar, ora me esculhambar, dependendo da visão ideológica que se tenha no momento. Não é assim em relação até mesmo a grandes nomes como Napoleão e Bismarck? Por que não seria comigo? Esse é o ônus dos políticos que fizeram algo de relevante, deixaram uma marca pública e não permitiram que sua vida passasse em branco. É o meu caso e também o do Lula.

Qual seria a frase com a qual o senhor gostaria de passar á história?
Fernando Henrique Cardoso foi um democrata que teve a coragem de fazer o que deveria ser felto. Trata-se de uma frase, enfim, que deveria definir todos os ex-presidentes brasileiros daqui por diante.

Nelson Rodrigues - Assim é um líder

Publicado no jornal O Globo em 9 de janeiro de 1968

O líder é um canalha. Dirá alguém que estou generalizando. Exato: estou generalizando. Vejam, por exemplo, Stalin. Ninguém mais líder. Lenin pode ser esquecido, Stalin, não. Um dia, os camponeses insinuaram uma resistência. Stalin não teve nem dúvida, nem pena. Matou, de forma punitiva, 12 milhões de camponeses. Nem mais, nem menos: – 12 milhões. Era uma maravilhoso canalha e, portanto, o líder opuro.

E não foi traído. Aí está o mistério que, realmente, não é mistério. É uma verdade historicamente demonstrada: – o canalha, quando investido de liderança, faz, inventa, aglutina e dinamiza as massas de canalhas. Façam a seguinte experiência: – ponham um santo na primeira esquina. Trepado num caixote, ele fala ao povo. Mas não convencerá ninguém, e repito: – ninguém o seguirá. Invertam a experiência e coloquem na mesma esquina, e em cima do mesmo caixote, um pulha indubitável. Instantaneamente, outros pulhas, legiões de pulhas, sairão atrás do chefe abjeto.

Mas, dizia eu que Stalin não foi traído, nem Hitler. O Führer, para morrer, teve de se matar. (Nem me falem do atentado dos generais grã-finos. Há uma só verdade: – nem o soldado alemão, nem o operário, nem o jovem, nem o velho, traíram Hitler.) E, quanto a Stalin, ninguém mais amado. Só Hitler foi tão amado. Aqui mesmo, no Brasil. Bem me lembro, durante a guerra, dos nossos stalinistas. Na queda de Paris, um deles veio-me dizer, de olho rútilo e lábio trêmulo: – “Hitler é muito mais revolucionário que a Inglaterra”.

Sim, o que se sentia, aqui, por Stalin, era uma dessas admirações hediondas. Eu via homens de voz grossa, barba cerrada, ênfase viril. Em cada um dos seus gestos, a masculinidade explodia. E, quando falavam de Stalin, eles se tornavam melífluos, como qualquer “travesti” do João Caetano ou do Teatro República. O que se sentia, por trás desse arrebatamento stalinista, era um amor quase físico, uma espécie de pederastia idealizada, utópica, sagrada. Com as mandíbulas trêmulas, uma salivação efervescente, os fanáticos chamavam o Guia de “o Velho”. E essa paixão era de um sublime ignóbil.

Já o Czar foi o antilíder. Há um quadro russo da matança da Família Imperial. (A pintura de lá, tanto a czarista, como a soviética, é puro Osvaldo Teixeira.) Eis o que nos mostra a tela: empilhados, numa bacanal de defuntos, o Czar, a Czarina, as princesinhas, etc., etc. Uns por cima dos outros, e cravejados de bala. Os soldados receberam a ordem e estouraram a cara dos velhos, das mocinhas, dos meninos. Mas não vamos assumir, aqui, nenhuma postura sentimental. Eis o que importa diser.

Na véspera de morrer, o nosso Nicolau entretinha-se na redação do seu diário. Fazia diário como qualquer heroína da Coleção das Moças. Reparem no antilíder, no anti-rei, no antitudo. No dia seguinte estariam à mostra os intestinos dele mesmo, as tripas da mulher, dos filhos, dos sobrinhos, dos netos. Mas ele não teve nenhum sentimento da morte. No jardim havia um “lago azul” como o da nossa canção naval. E, lá, dois ou três cisnes deslizavam mansamente. Um mundo já morria e outro ia nascer. E o Czar estava fascinado pelos cisnes, e a última página do diário era a eles dedicada. Um homem assim teria de ser exterminado a bala ou a pauladas, como uma ratazana.

Alguém lembrará a figura de Kennedy. Era um líder que preservava um mínimo de humanidade. Mas não era líder. Lembro-me da babá portuguesa da minha garotinha. Ao ver o retrato de Kennedy, gemeu com sotaque: – “Bonito como uma virgem”. Era um líder de luxo, isto é, um antilíder. Ao entrar na política, o pai, outro aristocrata, deu-lhe um cheque de um milhão de dólares. E mais: – Johnny casou-se com Jacqueline. E a mulher bonita é própria do falso líder. Nem Stalin, nem Hitler, fariam essa dupla concessão ao sentimento e ao sexo. Reexaminem toda a vida de Kennedy: – não foi, em momento nenhum de sua história e de sua lenda, um canalha. E não soube fazer pulhas para juntá-los em torno de sua liderança.

Pensem no pacto germano-soviético. Todos os que o aceitaram ou que ainda hoje o justificam eram e são perfeitos, irretocáveis canalhas. De um só lance, Stalin e Hitler degradaram toda uma época. Eis o que desejo ressaltar: – faltava a Kannedy essa capacidade de aviltar um povo. Ao passo que Stalin fez seu povo à imagem e semelhança da própria abjeção. Mas foi na morte que Kennedy demonstrou a ineficácia e falsidade de sua liderança.

O líder não morre antes, nem depois. O derrame escolheu a hora certa para matar Stalin. Hitler meteu uma bala na cabeça no momento justo em que precisava estourar os miolos. Waterloo aconteceu quando se esgotou a vitalidade histórica da era napoleônica. Se Lenin vivesse mais quinze dias, seria outro Trotski. E Kennedy caiu antes do tempo, morreu quando não tinha que morrer. Imaginem um cristo morto de coqueloche aos três anos. Não seria Cristo, não seria nada. Kennedy morreu ao lado da mulher bonita. E, de repente, veio a bala e arrancou-lhe o queixo, forte, crispado, vital. Restava tudo por fazer; o horizonte da reeleição abria-se diante dele. Esta morte antes do tempo mostrou que Kennedy não era Kennedy. O amor que lhe consagramos é um equívoco.

Falo, falo, e não sei bem por que estou dizendo tudo isso. Agora me lembro, Eu disse algo parecido ontem, num sarau de grã-finos. Não achem graça. Aprende-se muito no grã-finismo, e repito: certos grã-finos têm um sutil faro histórico, diria melhor, profético. Sentem, por vezes, antes dos outros, o que eu chamaria “odor da História”. E um desses estava-me dizendo, num canto, com uma convicção forte: – “Vai haver o diabo neste país”. Disse e fez um “suspense”. Instiguei-o: – “O diabo, como?” E ele, misterioso: – “Você não sente que vem por aí não sei o quê?” Esse “não sei o quê” era pouco para a minha fome. O grã-fino punha mais gelo no copo. Insinuou: – “”Há muita insatisfação”. Ainda era pouco. E eu queria saber, concretamente, o que vinha por aí. Perguntei: – “Sangue?” E o outro: cara a cara comigo e um ar de quem promete hemorragia nacional inédita: – “Sangue”.

Todavia, o “suspense” continuava. “Sangue”, dissera ele. Mas, quem ia derramar o sangue, e que sangue? Ainda olhei para os lados, como a procurar, entre os convidados, um possível Drácula. Quando, porém, o grã-fino falou em “esquerda”, a minha perplexidade não teve mais tamanho. Recuei dois passos avancei outros tantos e perguntei: – “Você acredita na nossa esquerda? Nessa que está aí?”

Ele acreditava. Então perdi a paciência e falei sem parar, Quem ia mudar qualquer coisa neste País? A esquerda tem um canalha para exercer uma liderança concreta e proveitosa? Senhoras entraram no debate. Fez-se, ali, uma alegre pesquisa de pulhas. Mas os canalhas lembrados eram, ao mesmo tempo, imbecis. E o que a história pedia era um crápula com seu toque de gênio. Em suma: não ocorria aos presentes um nome válido. A última palavra foi minha. Disse eu mais ou menos o seguinte: – enquanto a esquerda que aí está não for substituída até seu último idiota, não vai acontecer nada, rigorosamente nada.

Mario Vargas Llosa - Lição sueca de tolerância

Texto publicado no Estadão

Se um dia você for a Estocolmo, aconselho-o a visitar, além dos museus, palácios, o centro velho e as ilhas, um modesto bairro ao sul da cidade chamado Rinkeby. A grande maioria da sua população é formada por famílias imigrantes e é uma das áreas mais pobres do país, embora a noção de pobreza na Suécia, país que atingiu o mais alto nível de vida do mundo, juntamente com a Suíça, tem pouco a ver com o significado dessa palavra para o restante do planeta.

É importante conhecer em Rinkeby a sua escola pública, instituição que é o espelho do que deveria ser a sociedade humana, o mundo todo, se prevalecesse, entre nós, mortais, a sensatez, o discernimento e o espírito prático. Nesta escola, meninos e meninas falam 19 idiomas diferentes e veem de uma centena de países diversos. Todas essas crianças conhecem o sueco e o inglês, mas não perderam a língua materna. Isso porque a escola organizou-se de maneira que elas tenham aulas, pelo menos uma hora por semana, na língua que falam em casa e dos seus ancestrais. O diretor da escola, Börje Ehrstrand, está convencido de que a integração dessas crianças à cultura e aos costumes da Suécia é mais fácil se, em vez de rechaçarem, elas reivindicarem e sentirem orgulho da sua origem. A filosofia dessa escola se resume numa palavra: tolerância.

De tudo o que fiz e vi em oito dias em Estocolmo, pouca coisa me deixou tão comovido como a tarde que passei em Rinkeby, para assistir a um espetáculo preparado pelos alunos. Fui acolhido por 19 meninos e meninas, cada um falando um idioma distinto, formando um verdadeiro leque de raças, tradições, religiões e culturas do mundo. Havia adolescentes escandinavas de minissaia ao lado de garotas do Iêmen usando véu, árabes norte-africanos misturados com turcos, chilenos e chineses, roupas extravagantes e formais.

As crianças começaram a sessão cantando canções natalinas nórdicas. Em seguida começou a apresentação, que consistiu de duas partes. A primeira foi um resumo da vida e obra de Alfred Nobel (1833-1896), o químico que inventou a dinamite, foi um poderoso industrial e deixou sua fortuna para a criação dos prêmios que levam seu nome.

Depois, a representação das crianças ficou mais didática, explicando quais eram as invenções e realizações, cujos autores tinham merecido, este ano, os prêmios Nobel de medicina, Física e Química. Foi de tirar o chapéu! Na véspera, num programa da BBC, os próprios laureados tentaram explicar para nós, leigos, sobre seus inventos, mas, que não falo apenas em meu nome – nos deixaram sem entender nada.

Na segunda parte, as crianças narraram e representaram, resumidamente, um romance meu, O Falador. A encenação das crianças foi maravilhosa, ilustrando com desenhos, música e imagens, os textos que os diversos narradores liam em idiomas diferentes. Era como se eu estivesse revivendo minhas sensações quando criei essa história.

Há 20 anos, tanto o bairro quanto a escola de Rinkeby não eram nem a sombra do que são agora. A violência reinava nessa área e fotos da época mostram que as salas de aula, os pátios e corredores da escola eram um monumento à desordem e o rendimento escolar era o mais baixo do país. Foi nestas condições que um dos professores, Börje Ehrstrand, assumiu a direção. As reformas que introduziu foram discutidas com os pais dos alunos que passaram a ter uma participação constante em todas as atividades escolares, incluindo as didáticas. Esses pais, juntamente com os alunos, assumiram a limpeza do local, a título de trabalho voluntário.

Os dois primeiros anos são os mais difíceis, sendo que a tarefa fundamental da escola é eliminar a desconfiança dos recém-chegados para com seus companheiros de classe que se vestem diferente, falam outra língua, adoram outro Deus. Alguns se adaptam com facilidade; os com mais dificuldades têm cursos especiais, que são assistidos também pelos pais, assessorados por dois psicólogos. No geral, a partir do terceiro ano, a comunicação e o intercâmbio são espontâneos e pode-se falar de uma integração, porque os denominadores comuns – o idioma e a aceitação do “outro” – já fazem parte da personalidade do aluno.

A escola de Rinkeby não é notável só porque ali coexistem meninos e meninas de todo o espectro cultural, mas também porque há três anos os seus alunos figuram nos primeiros lugares do concurso nacional de matemática e pelos excelentes sucessos acadêmicos dos alunos medianos. Como nos últimos anos a demanda aumentou, a escola cresceu e hoje uma quarta parte dos alunos vem de outros bairros e a fama da instituição transcendeu as fronteiras suecas. A Comunidade Europeia premiou a escola como a que mais sucesso teve na prevenção da delinquência.

Não é de estranhar que, ao contrário do que costuma acreditar, a escola não é mais do que um reflexo daquilo que ocorre em torno dela, e neste caso a transformação teve um efeito saudável na comunidade que a cerca, atenuando a violência, as disputas étnicas e religiosas, a criminalidade.

A Suécia não ficou imune aos preconceitos contra a imigração que, fomentados pela crise financeira e a consequente redução do emprego fez com que partidos e movimentos extremistas, anti-imigrantes e xenófobos passassem a ter uma presença que não tinham. Pela primeira vez, um deles entrou no Parlamento sueco nas últimas eleições. Não é um fato raro. Quando uma sociedade é vítima de alguma catástrofe, econômica ou política, surge a necessidade de um bode expiatório e é claro que os imigrantes são os principais alvos.

Não importa que todas as estatísticas mostrem que, sem a imigração, os países europeus não conseguiriam manter os altos níveis de vida que possuem e o que os trabalhadores estrangeiros dão para a economia de um país é muito superior ao que dela recebem. Mas a verdade se fragmenta contra o que Popper chamava de espírito da tribo, o rechaçar instintivo do “outro”, um repúdio primitivo que é o maior obstáculo para um país alcançar a civilização.

Por isso, o que a escola de Rinkeby conseguiu é muito importante e deveria servir de modelo para todos os países que recebem grandes contingentes de imigrantes e querem evitar os problemas decorrentes da marginalização e da discriminação contra eles. É preciso começar com as crianças.

Que elas aprendam a conviver com quem tem fala, pele, deuses e costumes diferentes e que, com esse convívio, se desprendam de tudo aquilo que dificulta ou impede a coexistência com os outros. Esta é a maneira mais segura de conseguir, mais tarde, quando já são pessoas adultas, que elas possam viver em paz nessa diversidade étnica e linguística que, gostemos ou não, será o traço primordial do mundo no qual já entramos.


segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

WikiLeaks: críticas a Lula e PT na saída de Dirceu

Ex-ministro admitiu caixa 2 mas negou mensalão, revela WikiLeaks

Tatiana Farah, O Globo

À beira da cassação no Congresso, o ex-ministro-chefe da Casa Civil José Dirceu teria afirmado a um emissário dos Estados Unidos que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, "que não faz muito por iniciativa própria", deveria ter "prestado atenção" ao cultivo de "fontes legítimas de financiamento" das eleições de 2002.

Para Dirceu, que em outra conversa admitiu caixa dois em suas campanhas eleitorais, Lula deveria ter atraído o PMDB para o governo logo no princípio. A estratégia foi feita na campanha da presidente eleita Dilma Rousseff.

O petista admitiu "que as lideranças do PT pós-2002 vieram com um esquema ilegal de financiamento ‘louco e perverso’ que está no centro das investigações correntes como resposta às pressões dos pequenos e mercenários partidos aliados, PTB, PL e PP, e da campanha de 2002 do marqueteiro Duda Mendonça", escreveu o embaixador John Danilovich, em telegrama ao Departamento de Estado em 19 de agosto de 2005.

O documento foi divulgado ao GLOBO pelo grupo WikiLeaks.

Segundo Danilovich, Dirceu era personagem "quente demais" para que fosse visitado por uma missão oficial. Por isso, a visita a seu apartamento em Brasília foi feita pelo assessor especial William Perry, a quem Dirceu já conhecia havia anos. Os dois se encontraram para um café da manhã em 17 de agosto.

A Perry, Dirceu falou mal do ex-presidente do partido, o deputado José Genoino, e do governador eleito do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, que assumira a presidência interina do PT em meio à crise do mensalão.

Dirceu chega a dizer que o ex-tesoureiro do partido Delúbio Soares não é seu "cara". Delúbio foi expulso do PT como um dos únicos punidos no caso.

Embora o ex-ministro tenha negado participação no esquema, o embaixador não se convenceu: "Dirceu se dissocia totalmente de qualquer culpa e sustenta o ‘eu não sabia’", escreve ele, dizendo que "compartilha do mesmo ceticismo" da imprensa e de políticos, que consideram essas posições como "ridículas" diante do poder que o ex-ministro exercia no PT e no governo.

Sobre o PMDB, Danilovich reporta que o presidente Lula, na opinião de Dirceu, deveria ter trazido o partido, assim como outras legendas maiores, desde o princípio do governo, com cargos ministeriais. Na ocasião, o ex-ministro avalia que Lula não está lidando habilmente com a crise política.

Ao amigo americano, Dirceu se mostra desanimado com o futuro político tanto seu quanto de Lula. Diz que, caso Lula "fique deprimido", nem concorrerá à reeleição e que, caso concorra, perderá. Diz estar "resignado" com a cassação iminente. O ex-ministro diz ainda que pensa em passar um período nos EUA, estudando inglês e escrevendo um livro.

"Contudo, não podemos deixar-nos crer que esse camaleão cruel e brilhante está disposto a ir tão silenciosamente noite adentro. Não ainda", comenta o embaixador.

Outro telegrama, de 13 de outubro de 2005, reporta um almoço entre Dirceu, amigos e um diplomata do Consulado Geral de São Paulo no dia em que o PT elegia sua nova direção. Nele, Dirceu confirma o uso de caixa dois em campanhas pessoais e diz que todos os políticos brasileiros usam a prática.

"Dirceu não parece muito interessado em discutir a reforma política", mas "reconheceu que os candidatos, inclusive Lula, têm de usar a reforma como tema de campanha", escreve o diplomata Arnold Vela, revelando a conversa com o ex-ministro.

"Dirceu admitiu que ele mesmo habitualmente gasta duas vezes mais do que reporta em sua própria campanha e que todos os políticos brasileiros empregam alguma forma de ‘caixa dois’ (recursos não contabilizados)", continua o americano.

Nesse ponto, Dirceu, que alega inocência no caso do mensalão, diz que o governo não o está ajudando muito, mas que também não precisa de "favores" de Lula.

Na opinião do ex-ministro, seu julgamento no Congresso é "puramente político", lembrando que não estava no exercício do mandato quando ocorreu o mensalão. "Sua estratégia agora será manter a cabeça baixa e trabalhar para sustentar a influência que detém dentro do partido", conclui o diplomata.

domingo, 19 de dezembro de 2010

Augusto Nunes - Confira 13 momentos da denúncia do procurador-geral que mostram José Dirceu no comando da quadrilha do mensalão

No depoimento em que escancarou as catacumbas do mensalão, o deputado Roberto Jefferson ordenou ao ministro José Dirceu que deixasse imediatamente a chefia da Casa Civil. “Rápido! Sai daí rápido, Zé!”, determinou o presidente do PTB em 14 de junho de 2005, diante da plateia de parlamentares aglomerada na sala da CPI dos Correios. Despejado do Planalto dias depois, Dirceu teria o mandato cassado em dezembro.

Passados cinco anos, Dirceu repete que foi vítima de uma vingança política da oposição e se proclama inocente. A esperteza do guerrilheiro de festim é implodida pela denúncia apresentada em 30 de março de 2006 pelo então procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza, encampada quase integralmente no ano seguinte pelo ministro Joaquim Barbosa, do Supremo Tribunal Federal. Confira 13 momentos do histórico arrazoado em que aparece o nome de José Dirceu:

1)
A análise das movimentações financeiras dos investigados e das operações realizadas pelas instituições financeiras envolvidas no esquema demonstra que estes, fazendo tabula rasa da legislação vigente, mantinham um intenso mecanismo de lavagem de dinheiro com a omissão dos órgãos de controle, uma que possuíam o apoio político, administrativo e operacional de José Dirceu, que integrava o Governo e a cúpula do Partido dos Trabalhadores (…)

2)
O núcleo principal da quadrilha era composto pelo ex Ministro José Dirceu, o ex tesoureiro do Partido dos Trabalhadores, Delúbio Soares, o ex Secretário-Geral do Partido dos Trabalhadores, Sílvio Pereira, e o ex Presidente do Partido dos Trabalhadores, José Genoíno. Como dirigentes máximos, tanto do ponto de vista formal quanto material, do Partido dos Trabalhadores, os denunciados, em conluio com outros integrantes do Partido, estabeleceram um engenhoso esquema de desvio de recursos de órgãos públicos e de empresas estatais e também de concessões de benefícios diretos ou indiretos a particulares em troca de ajuda financeira (…)

3)
As provas colhidas no curso do Inquérito demonstram exatamente a existência de uma complexa organização criminosa, dividida em três partes distintas, embora interligadas em sucessivas operações: a) núcleo central: José Dirceu, Delúbio Soares, José Genoíno e Sílvio Pereira (…)

4)
Ante o teor dos elementos de convicção angariados na fase pré-processual, não remanesce qualquer dúvida de que os denunciados José Dirceu, Delúbio Soares, José Genoíno e Sílvio Pereira, objetivando a compra de apoio político de outros Partidos Políticos e o financiamento futuro e pretérito (pagamento de dívidas) das suas próprias campanhas eleitorais associaram-se de forma estável e permanente aos denunciados (…) para o cometimento reiterado dos graves crimes descritos na presente denúncia (…)

5)
É certo que José Dirceu, então ocupante da importante Chefia da Casa Civil, em razão da força política e administrativa de que era detentor, competindo-lhe a decisão final sobre a indicação de cargos e funções estratégicas na administração pública federal, foi o principal articulador dessa engrenagem, garantindo-lhe a habitualidade e o sucesso. Sua atuação, na verdade, teve origem no período que presidiu o Partido dos Trabalhadores no curso da eleição presidencial de 2002 (…)

6)
Roberto Jefferson, com o conhecimento de quem vendia apoio político à organização delitiva ora denunciada, em todos os depoimentos prestados, apontou José Dirceu como o criador do esquema do “mensalão”. (…) Roberto Jefferson afirmou que todas as tratativas sobre a composição política, indicação de cargos, mudança de partidos por parlamentares para compor a base aliada em troca de dinheiro e compra de apoio político foram tratadas diretamente com o ex Ministro Chefe da Casa Civil, José Dirceu. Tratavam, inclusive, sobre o “mensalão”, matéria que foi objeto de conversa entre ambos em cinco ou seis oportunidades (…)

7)
Com a base probatória colhida, pode-se afirmar que José Genoíno, até pelo cargo partidário ocupado, era o interlocutor político visível da organização criminosa, contando com o auxílio direto de Sílvio Pereira, cuja função primordial na quadrilha era tratar de cargos a serem ocupados no Governo Federal. Delúbio Soares, por sua vez, era o principal elo com as demais ramificações operacionais da quadrilha (Marcos Valério e Rural) repassando as decisões adotadas pelo núcleo central. Tudo sob as ordens do denunciado José Dirceu, que tinha o domínio funcional de todos os crimes perpetrados, caracterizando-se, em arremate, como o chefe do organograma delituoso (…)

8 )
Merece destaque, para o completo entendimento de todos os mecanismos de funcionamento do esquema, a relevância do papel desempenhado por José Dirceu no Governo Federal. De fato, conforme foi sistematicamente noticiado pela imprensa após o início do Governo atual, José Dirceu inegavelmente era a segunda pessoa mais poderosa do Estado brasileiro, estando abaixo apenas do Presidente da República. Assim, a atuação voluntária e consciente do ex Ministro José Dirceu no esquema garantiu às instituições financeiras, empresas privadas e terceiros envolvidos que nada lhes aconteceria, como de fato não aconteceu até a eclosão do escândalo, e também que seriam beneficiados pelo Governo Federal em assuntos de seu interesse econômico, como de fato ocorreu (…)

9)
Marcos Valério, diante das claras evidências no sentido de que Delúbio Soares não atuava sozinho no Partido dos Trabalhadores, pois não teria a autonomia necessária para estruturar operações do porte das investigadas nos autos, admitiu que o então Ministro José Dirceu, representando a cúpula do Partido dos Trabalhadores e como alto integrante do Governo Federal, estava ciente dos esquemas de repasse de dinheiro estabelecidos com Delúbio Soares, tendo garantido as operações (…)

10)
Toda a estrutura montada por José Dirceu, Delúbio Soares, José Genoíno e Sílvio Pereira tinha entre seus objetivos angariar ilicitamente o apoio de outros partidos políticos para formar a base de sustentação do Governo Federal. Nesse sentido, eles ofereceram e, posteriormente, pagaram vultuosas quantias a diversos parlamentares federais, principalmente os dirigentes partidários para receber apoio político do Partido Progressista (PP), Partido Liberal (PL), Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e parte do Partido do Movimento Democrático Brasileiro ─ PMDB (…)

11)
Para a execução dos pagamentos de propina, José Dirceu, Delúbio Soares, José Genoíno e Sílvio Pereira valeram-se dos serviços criminosos prestados por Marcos Valério, Ramon Hollerbach, Cristiano Paz, Rogério Tolentino, Simone Vasconcelos e Geiza Dias (…)

12)
Ao longo dos anos de 2003 e 2004, os denunciados Valdemar Costa Neto, Jacinto Lamas e Antônio Lamas receberam aproximadamente dez milhões e oitocentos mil reais a título de propina. O acordo criminoso com os denunciados José Dirceu, Delúbio Soares, José Genoíno e Sílvio Pereira foi acertado na época da campanha eleitoral para Presidência da República em 2002, quando o PL participou da chapa vencedora (…)

13)
José Dirceu, Delúbio Soares, José Genoíno e Sílvio Pereira, mediante pagamento de propina, adquiriram apoio político de Parlamentares Federais do Partido Trabalhista Brasileiro – PTB. Os pagamentos foram viabilizados pelo núcleo publicitário-financeiro da organização criminosa. Os parlamentares federais que receberam vantagem indevida foram José Carlos Martinez (falecido), Roberto Jefferson e Romeu Queiroz. Todos contaram com o auxílio direto na prática dos crimes de corrupção passiva do denunciado Emerson Palmieri (…)

José Dirceu foi acusado de formação de quadrilha, peculato e corrupção ativa. Somadas as penas previstas para cada delito, pode ser engaiolado por cinco a 27 anos.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Miriam Leitão - Em causa própria

Um Congresso que não consegue ter um relator para o Orçamento aprova um aumento salarial de 62% para os parlamentares e de 130% para ministros e presidente da República. Este é o resumo desse final de legislatura. O Orçamento está no terceiro relator e os três enfrentam o mesmo tipo de dúvidas: emendas que beneficiam entidades às quais estão ligados seus parentes ou assessores.

Qualquer aumento de salário de parlamentar vai sempre provocar reações na opinião pública, mesmo quando forem justificáveis. Mas, no caso, o Brasil desconhece reajustes de preços em percentuais tão altos desde que derrubou a hiperinflação. Nenhum trabalhador conseguiria seu objetivo se pedisse reajuste de 60% a 130%.

Os deputados e senadores brasileiros têm vários outros benefícios dos quais a imprensa tem falado com frequência. Auxílios para transporte, para correspondência, verba de representação, benefícios frequentemente usufruídos de forma ilegítima. Tantas notícias sobre os desvios no uso dessas verbas, e os escândalos, foram esgarçando a confiança dos eleitores nos deputados e senadores.

Aí, no final de uma legislatura tumultuada, quando não se sabe se haverá relatoria para o Orçamento, os deputados aprovam um decreto legislativo legislando em causa própria, dos ministros, da próxima presidente e, indiretamente, para deputados estaduais do país todo. No mesmo dia, numa agilidade desconhecida em outras matérias, o Senado também aprova o projeto.

Fazem neste 15 de dezembro por truque, e não por falta de tempo. Logo virá o recesso e, no ano que vem, assumirá novo Congresso. Esse, que está velho, ficará com o desgaste. A aposta geral é que a reclamação não virá porque será esquecida nas festas de fim de ano.

Melhor é que o Congresso tivesse argumentos para defender o reajuste dos seus salários no início da Legislatura. Pior é a maneira como se faz: a 15 dias do fim do ano, vota-se que o tema é "urgente" e, em seguida, aprova-se o mérito em votações simbólicas, porque assim não se sabe quem votou ou deixou de votar.

A tese para justificar o aumento também não faz sentido algum: a de que é para que todos tenham "isonomia" em relação aos ministros do Supremo Tribunal Federal. Eles, por sua vez, estão com novos pedidos de aumentos para o Judiciário também na casa dos 50%, num país em que 5% é inflação alta.

O risco de um reajuste com esse motivo é de novo consagrar aquela corrida do passado. Na hiperinflação, os funcionários do Banco do Brasil pediam aumento alegando que era para ter isonomia com os funcionários do Banco Central. Aí os funcionários do Banco Central conseguiam outro aumento e começava de novo a rodada.

sábado, 11 de dezembro de 2010

Olavo de Carvalho - Falta de respeito

Por que devemos consentir em continuar chamando de “Sua Excelência, o Senhor Ministro da Educação” um semianalfabeto que não sabe sequer soletrar a palavra “cabeçalho”? Por que devemos continuar adornando com o título de “Sua Excelência, o Senhor Ministro da Defesa” um civil bocó que se fantasia de general sem nem saber que com isso comete ilegalidade? Por que devemos honrar sob a denominação de “Sua Excelência, o Senhor Ministro da Cultura” um pateta sem cultura nenhuma? Por que devemos curvar-nos ante a magnificência presidencial de um pervertido que se gaba de ter tentado estuprar um companheiro de cela e diz sentir nostalgia do tempo em que os meninos do Nordeste tinham – se é que tinham – relações sexuais com cabritas e jumentas?

Essas criaturas, é certo, têm o direito legal a formas de tratamento que as elevam acima do comum dos mortais, mas até quando nossos nervos suportarão o exercício supremamente antinatural e doentio de fingir respeito a pessoas que não merecem respeito nenhum, que só emporcalham com suas presenças grotescas os cargos que ocupam? Respeito, afinal de contas, é noção hierárquica: sem o senso da distinção entre o melhor e o pior, o alto e o baixo, o excelso e o vulgar, não há respeito possível.

Nietzsche já observava: Quem não sabe desprezar não sabe respeitar. Se um sujeito que só merece desprezo aparece envergando um uniforme, ostentando um título, exibindo um crachá que o diz merecedor de respeito, estamos obviamente sofrendo uma agressão psicológica, um ataque de estimulação contraditória, ou dissonância cognitiva, que esfrangalha o cérebro mais vigoroso e reduz ao estado de cãezinhos de Pavlov as mentes mais lúcidas e equilibradas.

Um povo submetido a esse regime perde todo senso de gradação valorativa, todo discernimento moral. Prolongado o tratamento para além de um certo ponto, a sociedade entra num estado de desmoralização completa, de apatia, de indiferentismo, onde só os mais cínicos e desavergonhados podem sobreviver e prosperar.

Mas não é só nas pessoas que o encarnam que o presente governo é uma usina de estimulações desmoralizantes. Impondo a sodomia como o mais sacrossanto e incriticável dos atos, as invasões de terras como modalidade superior de justiça fundiária, o abortismo como dever de caridade cristã, a distribuição de pornografia às crianças como alta obrigação pedagógica, Suas Excrescências estão fazendo o que podem para sufocar, na alma do povo brasileiro, toda capacidade de distinguir entre o bem e o mal e até a vontade de perceber essa distinção.

Nunca, na história de país nenhum, se viu uma degradação moral tão rápida, tão geral e avassaladora. Os crimes mais hediondos, as traições mais flagrantes, os escândalos mais intoleráveis são aceitos por toda parte não só com indiferença, mas com um risinho de cumplicidade cínica que, nesse ambiente, vale como prova de realismo e maturidade.

Em cima de tudo, posam as personalidades mais feias e disformes, ante as quais mesmo homens sem interesses obscuros em jogo se sentem obrigados a debulhar-se em louvores e rapapés.

Num panorama tão abjeto, destacam-se quase como um ato de heroísmo as manifestações de desrespeito ostensivo com que os estudantes da Universidade de Brasília saudaram, na inauguração do “beijódromo”, o presidente da República, seu ministro da Incultura e o reitor José Geraldo Souza Júnior.

Que é um “beijódromo”, afinal? Idéia suína concebida na década de 60 por Darci Ribeiro, um dos intelectuais mais festeiros e irresponsáveis que já nasceram neste País, então deslumbrado com a doutrina marcusiana da gandaia geral como arma da revolução comunista, o “beijódromo” é um estímulo à transformação da universidade em espaço lúdico-erótico onde um governo de vigaristas possa obter ganhos publicitários explorando calhordamente os instintos lúbricos da população estudantil, assim desviada dos deveres mais óbvios que tem para consigo mesma e para com o País.

Meu caro amigo Reinaldo Azevedo assim resumiu o caso: “Um estado totalitário reprime o tesão. Um estado demagogo o estatiza.” Peço vênia para discordar. Excetuados os países islâmicos, só alguns regimes autoritários, de natureza transitória, ousaram impor a repressão sexual.

A exploração estatal do erotismo é característica inconfundível dos regimes totalitários e revolucionários. Quem tenha dúvida fará bem em percorrer as 650 páginas do estudo magistral de E. Michael Jones, Libido Dominandi: Sexual Liberation and Political Control (St. Augustine’s Press, 2000). O “beijódromo” é a cristalização mais patente de um totalitarismo em gestação.

Os gritos e insultos com que Lula foi recebido por estudantes que querem algo mais que pão, circo e orgasmo refletem um fundo de sanidade que ainda resta na alma popular: nem todos os cérebros, neste País, estão perfeitamente adestrados na arte de bajular o que não presta.

Esse protesto impremeditado, espontâneo, sem cor ideológica definida, traz a todos os brasileiros a mais urgente das mensagens: no estado de degradação pomposa a que chegamos, só uma vigorosa falta de respeito pode nos salvar.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Guilherme Fiúza: A despedida de um presidente mimado

Destaque: Em 2003, recém-empossado, Lula recebeu no Palácio da Alvorada a visita dos humoristas do Casseta & planeta, para uma sessão do primeiro filme do grupo. Bussunda, que era fã de Lula, se fixou numa cena: o presidente estava numa cadeira de rodas, por causa de uma torção no pé.

Enquanto era empurrado pelos corredores palacianos, um ministro caminhava a seu lado segurando um cinzeiro, para que o chefe batesse a cinza do charuto que fumava.

Por Guilherme Fiúza - Revista Época.

É claro que isso não ia acabar bem. Um presidente da República que vê seu cargo, acima de tudo, como fator de ascensão social está condenado à frustração. O elevador que o levou ao topo um dia desce - e esse dia está chegando. Luiz Inácio da Silva terá de se acostumar a parar de chamar seus interlocutores de "meu filho", entre outros tratamentos irritadiços. Enquanto manda e desmanda no ministério da sucessora - seu último ato senhorial -, o ex-operário não disfarça a agonia de sua volta à planície.

Perguntado se estava no Maranhão para retribuir o apoio da oligarquia Sarney Lula respondeu que o repórter tinha de "se tratar". De acordo com o presidente, a pergunta demonstrava falta de evolução da imprensa, e em particular daquele repórter:

"Você não evoluiu nada. É uma doença
O repórter repreendido por Lula não deve se abater. De fato, é difícil evoluir tão rápido, a ponto de compreender todos os avanços proporcionados ao país pela família Sarney. A resistência a essa modernização vertiginosa foi resumida por Roseana, a governadora dos novos tempos: "É preconceito contra a mulher".

Também deve ser preconceito contra a mulher a reação de alguns ao projeto de compra do AeroDilma. O avião de meio bilhão de reais, que deverá substituir o AeroLula, é fundamental, segundo o presidente, para que o Brasil não se humilhe nas viagens oficiais. Tem toda razão. Chega de humilhação. Já basta o que os líderes do governo popular gastam de sola de sapato por aí, em anos e anos de comícios nos fins de mundo brasileiros. Uma vez eleitos, o mínimo a que têm direito é um salão de baile a 10.000 metros de altura - sem escalas enfadonhas.

Da altitude do poder, é possível esculhambar repórteres que fazem perguntas indesejáveis. Também é possível reescrever a história. No discurso de despedida do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social - criado em 2003, e que se tornou muito importante por institucionalizar o bate-papo presidencial em horário de expediente -, Lula se emocionou. Disse que foi vítima de uma tentativa de golpe em 2005 (o ano do mensalão) e agradeceu aos conselheiros que permaneceram a seu lado naquele momento difícil. Deve ser mesmo comovente imaginar que, em menos de um mês, não haverá mais plateias simpáticas como essa para ajudá-lo a acreditar no que ele quiser.

Da altitude do poder, é possível esculhambar repórteres que fazem perguntas indesejáveis Em 2003, recém-empossado, Lula recebeu no Palácio da Alvorada a visita dos humoristas do Casseta & planeta, para uma sessão do primeiro filme do grupo. Bussunda, que era fã de Lula, se fixou numa cena: o presidente estava numa cadeira de rodas, por causa de uma torção no pé.
Enquanto era empurrado pelos corredores palacianos, um ministro caminhava a seu lado segurando um cinzeiro, para que o chefe batesse a cinza do charuto que fumava. O humorista achou que havia algo errado com a conquista do palácio pelo povo. Pareceu-lhe que o povo era quem tinha sido conquistado pelo palácio.

Lula foi conquistado pelo poder. E este lhe foi mesmo cativante. Foram oito anos vendo o Banco Central governar, surfando na conjuntura econômica generosa e distribuindo bolsas, repetindo bordões fáceis como PAC e pré-sal, engordando o mito do filho do Brasil. Nem convencer o povo de que Dilma é Lula deu trabalho - e aí, realmente, não se pode querer outra vida. Este 1º de janeiro vai ser mesmo difícil para o operário que chegou lá, e enfrentará seu maior desafio: sair de lá.

Essa outra vida promete ser estranha. Certas delícias vão desaparecer, como ignorar por oito anos a segurança pública e poder declarar, diante da ofensiva da polícia carioca contra o tráfico, que "ocupamos o Morro do Alemão". Mas nem tudo está perdido. Talvez a máquina de arrecadação do PT lhe consiga alguém para segurar seu cinzeiro. E não há de faltar convite para um passeio no AeroDilma.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Augusto Nunes: Três assaltos com Paulo Maluf

PRIMEIRO ASSALTO (sala de estar da casa na Rua Costa Rica, no Jardim América)
─ Que livro o senhor está lendo? ─ pergunto ao governador Paulo Maluf no meio da entrevista para as páginas amarelas de VEJA.

Eu decidira introduzir o tema por dois motivos. Primeiro: interromper a discurseira sobre Petropaulo, rodovias, viadutos e outras façanhas administrativas do entrevistado ─ em São Paulo, como se sabe, tudo foi Maluf quem fez. Segundo: como políticos brasileiros não têm muita intimidade com estantes, queria pegá-lo no contrapé.

– A Terceira Onda, do Alvin Tofler – responde de bate-pronto.

Era o sucesso da hora. Tratava de novas tendências da economia, como a terceirização de serviços, e já vendera milhões de exemplares no mundo inteiro. Ele nota que estou surpreso e parte para a ofensiva.

– Você já leu?

– Ainda não.

– Pois leia. Vai aprender alguma coisa.

O Doutor Paulo vence o primeiro assalto.

SEGUNDO ASSALTO (estúdio da TV Gazeta, Avenida Paulista)

─ Que livro o senhor está lendo? – volto a perguntar dois anos mais tarde ao ainda governador Paulo Maluf.

Como a conversa no programa Veja Entrevista se arrastava por canteiros de obras e promessas a cumprir quando chegasse à Presidência da República, resolvera repetir o truque.

– A Terceira Onda, do Alvin Tofler ─ responde de bate-pronto.

Contenho o entusiasmo ao deduzir que ele havia esquecido a conversa anterior. Chegou a minha vez, penso enquanto saboreio antecipadamente a vingança. Solto o direto no fígado:

─ Ainda não acabou de ler ou está lendo de novo?

─ Como assim? ─ ele parece intrigado.

─ Há dois anos, o senhor me disse que estava lendo esse livro. Quero saber se não chegou ao fim ou se gostou tanto que resolveu reler.

Maluf parte para o improviso sem pausa:

─É o meu livro de cabeceira.

Acuso o contragolpe e ele retoma a ofensiva:

─ E você, já leu?

Não, ainda não lera.

─ Está perdendo uma boa chance de melhorar a cabeça ─ ironizou.

O Doutor Paulo vence o segundo assalto.

TERCEIRO ASSALTO (estúdio da RBS TV, Porto Alegre)

– Que livro o senhor está lendo? – pergunto oito anos depois do segundo assalto ao agora prefeito Paulo Maluf.

A entrevista está chegando ao fim, eu nem planejara surpreendê-lo, só resolvera mudar de assunto. Maluf, sempre sem pausas:

– A Terceira Onda, do Alvin Tofler.

Quase caio da cadeira. Demoro a acreditar no que acabei de ouvir. O prodígio de memória capaz de chamar pelo nome todos os integrantes da família real saudita ─ um viveiro de Abns e Ibns ─ esqueceu que já dissera aquilo duas vezes. Dessa ele não escapa.

– Acho estranho ─ começo. ─ Há dez anos, o senhor me disse que estava lendo isso. Há oito anos, também. O senhor só leu esse livro?

O Grande Falante emudece momentaneamente. Parto para o ataque:

─ Já li o livro ─ antecipo-me.

Estou mentindo, mas Maluf não tem como saber.

─ Achei só razoável, não é coisa para se ler a vida inteira ─ tripudio.

E então consigo o milagre: ele perde a calma.

─ Eu leio o que quero! ─ esbraveja. ─ Você não tem nada com isso! E isso não é assunto para entrevista séria! Ou mudamos de tema ou paro por aqui!

Mudamos de tema e a entrevista prossegue sem mais sobressaltos.

Perdi a luta por 2 a 1. Mas achei que fui tão bem no terceiro assalto que me atribuí o título de campeão moral.