UM EX DE BEM COM A VIDA
Mario Sabino
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, de 79 anos, é um homem realizado. Na Presidência, derrotou a inflação, por meio do Plano Real, lançado quando era ministro da Fazenda de Itamar Franco, e promoveu privatizações bem-sucedidas, que desoneraram os contribuintes, possibilitaram o surgimento de empresas fortes e globais, como a Vale, e universalizaram o sistema de telefonia.
Fora da Presidência, ele assumiu, dentro dos limites brasileiros, o papel de um ex que chama os políticos às falas quando a democracia está em perigo. Na semana passada, na sede do instituto que leva seu nome, ele deu a seguinte entrevista a VEJA.
O que o senhor sentiu no exato instante em que deixou de ser presidente da República, ao passar a faixa para Luiz Inácio Lula da Silva, em 2003?
Fiquei emocionado, é claro, até porque o Lula disse que eu deixava lá, no Palácio do Planalto, um amigo – o que, naquele momento, talvez fosse verdadeiro. Mas a minha emoção também se deveu ao fato de eu sentir que vivia um momento histórico que ultrapassava em magnitude outras passagens da faixa presidencial.
Por quê?
Porque, durante os meus mandatos, com o consenso da sociedade, havíamos conseguido mudar o Brasil para melhor. Eu entregava a Lula um país que, a despeito de todas as crises econômicas mundiais que marcaram aqueles anos, estava mais sólido do ponto de vista da economia. Com o Plano Real, iniciado no governo de Itamar Franco, e a autonomia do Banco Central, vencemos a inflação.
Com a implantação da Lei de Responsabilidade Fiscal, detivemos um dos sangradouros de dinheiro público. Com as privatizações, alcançamos a universalização do sistema de telefonia. Além disso, havíamos superado os traumas políticos causados pelo regime militar, as arestas da redemocratização e o impeachment de Fernando Collor de Mello. Tudo isso me veio à cabeça no momento em que passei a Presidência a Lula.
E para além da emoção, digamos, institucional?
Depois da cerimônia, rumamos, eu e Ruth, para o aeroporto, onde muita gente amiga nos esperava para a despedida. Foi aí que a emoção mais pessoal começou. Abracei assessores que haviam trabalhado comigo durante oito anos seguidos, que faziam parte do meu cotidiano. Embarcamos, então, para São Paulo, ainda no avião presidencial.
Ao chegar, troquei de roupa e seguimos para o avião comercial que nos levaria a Paris. Nesse momento, relaxei, tive uma sensação boa de dever cumprido – tanto no plano institucional como no individual.
Quando chegamos a Paris, voltei um pouco a ser presidente, porque nos esperavam o então embaixador na capital francesa, o Marcos Azambuja, e o da Unesco, o José Israel Vargas, ambos meus amigos. Não havia séquito, mas ainda assim desembarcamos no terminal oficial, entramos num carro da embaixada e fomos escoltados por policiais franceses.
Ao chegar ao hotel perto da cidade de Chartres por alguns dias antes de ficar em Paris eu chamei o chefe da guarda francesa, agradeci a atenção, mas disse que dispensava aqueles cuidados. Ele me respondeu que estava cumprindo ordens e, portanto, seus homens tinham de fazer a segurança.
E que o senhor fez diante dessa resposta?
Eu renovei meu agradecimento e enfatizei que não queria ninguém perto de mim nem de minha mulher. Eles foram embora. Dormi, então, a minha primeira noite de mortal comum. No dia seguinte, eu e Ruth fomos a Chartres sozinhos para visitar a esplêndida catedral gótica – um passeio maravilhoso em todos aspectos, mais principalmente pelo fato de não estarmos mais acompanhados de comitiva, seguranças e repórteres.
Recuperei, enfim, minha privacidade. Em Paris, também dispensei os serviços que a embaixada queria me prestar e voltamos a andar de metrô, como sempre fizemos. Uma delícia – e com um efeito muito didático. Porque uma coisa é o Planalto; outra é a planície. Na planície, você é promovido a povo.
Não houve nenhum momento de angústia por causa da perda do poder?
Não, de verdade. Evidentemente, isso deve variar de pessoa para pessoa. O fato é que me considero, digamos assim, um homem pluridimensional. Além de ser político tenho uma vida intelectual, uma vida interior, que pude retomar com o fim da minha Presidência. Entrei nela imediatamente, começando a escrever o livro A Arte da Política — A História que Vivi, que seria lançado em 2006. Ainda na França, passei a ver meus amigos que lá moram.
Uma única vez, fui ao Palácio do Eliseu, para uma refeição com Jacques Chirac, então presidente. Ele me recebeu com honras de estado, verdadeiro cavalheiro que é, e depois me ligou duas vezes. Deixou mensagens na secretária eletrônica: “Allô, Fernandô, ici c’ est Jacques”. Mas resolvi viver de fato o meu dia a dia de turista, na planície, como disse.
O senhor não sentiu falta de nada?
Senti falta de certas coisas, é lógico. Da piscina do Palácio da Alvorada, por exemplo, que é magnífica e na qual eu dava umas braçadas para combater a dor nas costas. Também gostava muito de ter cinema em casa, muito conveniente. E do helicóptero, uma enorme facilidade.
Senti falta disso tudo, mas não era uma falta absoluta, visto que sou oriundo da classe média, que não goza desses confortos. Também senti falta de algumas pessoas. Por exemplo, da empregada que nos atendeu por anos a fio no Alvorada, a Dalina – que ainda hoje serve ao Lula. Levei-a do Itamaraty para o Palácio, e eu e minha família ficamos muito afeitos a ela.
O senhor gostava de Brasília?
Sempre gostei de Brasília.
Trata-se de um gosto um tanto peculiar, ao menos para a maioria dos políticos paulistas e cariocas, pelo menos…
Pois é, mas eu gosto de horizonte amplo que a cidade proporciona. Tudo em que, na Presidência, eu não morava em Brasília, mas no Palácio, que fica meio apartado da cidade…O fato é que, quando você é presidente, se torna um prisioneiro — prisioneiro de luxo, mas prisioneiro. Você não é dono da sua vida. Só volta a ser livre depois. A liberdade é ótima, mas requer adaptação, não é mesmo? Se você tem outros interesses na vida, ela é mais rápida.
Hoje, o senhor pode ser visto andando a pé pelas ruas de seu bairro, em São Paulo, entrando em livrarias e em restaurantes, sem que ninguém o incomode.
O povo brasileiro é extremamente agradável desse ponto de vista. Nunca recebi uma única agressão, e certamente tem muita gente me desaprova. Nem (…) por causa da campanha eleitoral ninguém foi desaforado comigo. Já os que se posicionam do seu lado, esses, sim, se manifestam. Você tem até a ilusão de que todo mundo gosta de você. O que mais surpreende é a receptividade durante o meu governo e, ainda assim, me abordam para conversar, tirar fotografias… O convívio no Brasil é, em geral, muito bom, cordial.
Medo de assalto, o senhor não tem?
Apesar de vez por outra ocorrerem assaltos nas imediações do meu prédio, não é uma preocupação para mim. Voltando ao convívio com as pessoas, outro dia aconteceu um episódio muito simpático: eu estava sozinho num sábado, quando resolvi ir a um restaurante perto da minha casa. Até pensei em bater na janela da casa de uma assessora minha, que mora próximo de mim, mas achei que ela estivesse dormindo.
Quando entrei no restaurante de comida árabe, duas moças que dividiam uma mesa exclamaram: “Presidente, andam dizendo que o senhor vai casar . Fiquei envergonhado, respondi que não e sentei numa mesa ao lado. Perguntaram, então, se eu não queria sentar com elas. Respondi que teria muito prazer que elas fossem para a minha mesa – e elas foram. Jantamos, cada um pagou a sua parte e elas ainda fizeram questão de me acompanhar a pé até a minha casa. Uma tinha um namorado em Barcelona, a outra era artista plástica: ótima conversa.
É bom voltar para casa com duas moças, não?
Sim, mas tudo na maior gentileza. Esse tipo de situação mostra como o povo brasileiro é informal. Desconhecidas perguntarem de chofre a mim, um ex-presidente, se eu vou casar… Convenhamos, não é habitual em nenhum lugar do mundo. E isso sem maldade, é apenas um jeito simpático de ser.
Outro exemplo: todo dia, tomo o elevador aqui deste prédio onde mantenho meu instituto, sem nenhuma exigência de exclusividade. Os mais jovens ficam um pouco atônitos ao me ver não sabem se sou ou não o ex-presidente. Os mais velhos, geralmente, me cumprimentam. Pois bem, não faz muito tempo, havia um casal de senhores no elevador. Ela, principalmente, não tirava os olhos de mim, até que tomou coragem para perguntar: “O senhor não é …? Respondi: “Não, aquele é meu irmão”.
Sabe o que ela disse? Logo vi, o outro é bem mais velho”. Só no Brasil.
Em nosso país, não existe a instituição do ex-presidente, assim como há nos Estados Unidos. Lá, ex-presidentes têm um papel institucional claro, ao se transformarem em referência para a nação, independentemente de seu partido ou popularidade. São, inclusive, chamados pelo presidente em exercício para cumprir determinadas missões. Chegaremos a esse grau de civilidade?
Olhe, eu fiz isso em duas ocasiões. Pedi ao [ex-presidente] Itamar [Franco, 1992-1995] que me representasse na entrega de um Prêmio Nobel da Paz, em Oslo, e o [ex-presidente José] Sarney me acompanhou numa viagem presidencial. Eu tentei, mas não é fácil.
O senhor não acha que o instituto da reeleição solapa a institucionalização da ex-Presidência?
Sem dúvida. Nos Estados Unidos, um ex-presidente, depois de reeleito para um segundo mandato consecutivo, não pode ambicionar voltar a política. Seria considerado uma ruptura inaceitável, inclusive do ponto de vista da tradição. Já no Brasil, isso é possível. Eu não sou contrário à reeleição consecutiva, foi no meu governo que essa regra foi aprovada, mas, hoje, acho ruim um ex-presidente reeleito ter a possibilidade de candidatar-se a um terceiro mandato, depois do interregno de um mandato alheio.
Se pudesse voltar atrás, teria lutado para aprovar uma legislação que impedisse isso. É que eu não imaginava que um ex-presidente pudesse se tornar um cabo eleitoral permanente de si mesmo, desprezando o princípio da alternância de poder, assim como faz o Lula. É preciso que ele entenda que existe vida fora do poder – e que você se torna tão mais útil e mais relevante, ao deixar a Presidência, quanto menor for sua ligação com a política partidária e maior o diálogo com os diversos segmentos da sociedade.
Nos últimos oito anos, contudo, o senhor fez críticas contundentes contra políticas do atual presidente. O senhor não foi partidário?
Eu fico espantado como os petistas consideram a minha simples existência uma pedra no sapato ou, mais poeticamente, no caminho… Quando fiz e faço críticas, é porque tenho a obrigação pública de me manifestar quando observo que certas decisões do governo federal comportam ameaças a democracia, inclusive porque não deixei de ser um homem político.
Nos Estados Unidos, por exemplo, o Jimmy Carter não se furta a dar sua opinião, mesmo quando não é perguntado. Agora, ninguém me vê na linha de frente da política partidária. Não é o meu papel como ex-presidente. A confusão entre o que é obrigação pública e comentário partidário advém também do fato de os ex-presidentes vivos brasileiros, a minha exceção, continuarem na vida partidária. Todos são senadores. Não deveria ser assim.
Aos olhos de muitos brasileiros, o senhor e o presidente Lula parecem nutrir uma rivalidade que ultrapassa o campo político e adentra o das personalidades. (…) É uma percepção correta?
Da minha parte, garanto que não. Da do Lula, parece que existe tal rivalidade. Não sei porque ele insiste tanto em comparar-se a mim. Nesta última campanha, por exemplo, falaram o diabo do meu governo, embora eu não fosse candidato. E eu não tenho direito de defesa, veja só!
O Lula não precisava de nada disso. Para mostrar o que fez, ele não tem necessidade de desfazer as conquistas do outro. Até porque ele deu continuidade a políticas do meu governo e acrescentou aspectos positivos a elas. O Lula, por exemplo, manejou bem o timão durante a última crise econômica, mas não foi ele quem estabilizou o país. Ele também não criou os programas sociais, mas os expandiu. Fez a sua parte?
Fez. Então, por que tentar cancelar o passado e dizer que o Brasil nasceu no seu governo? O Lula não necessita disso como político.
O que me leva a pensar que, de fato, ele tem um problema de ordem psicológica em relação a mim. Quando o Lula solta a frase “nunca antes neste país”, eu até brinco que ele poderia dizer que “nunca antes neste país viveram tantos brasileiros”.
O senhor, recentemente, propôs ao presidente Lula que, quando ele “vestisse o pijama”, fosse debater com o senhor na televisão. Os dois, assim, estariam em condição de igualdade, como ex-presidentes, já que ele não poderia contar com a máquina oficial de propaganda. Foi uma blague ou é para valer?
A Rede Bandeirantes entrou em contato comigo, para realizar esse programa, e eu topei. Não seria propriamente um debate, um duelo, mas uma conversa franca, que a meu ver teria até uma função educativa para os cidadãos e os políticos.
Quando deixei o governo, achei que o Lula e o PT entenderiam finalmente que era possível estabelecer convergências com o PSDB, no intuito de implementar reformas do interesse do país. Mas, de uma forma eleitoreira, eles definiram desde o início que os tucanos e eu, principalmente seriam os seus inimigos. Tanto que Lula jamais me chamou para um café no Palácio do Planalto.
Esse caminho equivocado, de confrontação permanente, deu no mensalão. Eles recorreram aos fisiológicos do Congresso, em vez de estabelecer uma ponte com a oposição responsável. O pior é que não era necessário. Quem sabe agora, na condição de ex-presidente, o Lula se disponha a manter alguma forma de diálogo comigo, conosco… Uma conversa franca, nesse sentido. Seria interessante para ambos os lados. Poderia resultar numa agenda civilizada para o Brasil. Mas tenho dúvida, dado o grau de acirramento das animosidades, se isso serás possível. Infelizmente, estabeleceu-se uma disputa entre o PT e o PSDB, para ver quem comanda o atraso. E, muitas vezes, o atraso é que comanda – como no caso do mensalão, volto a dizer.
Que conselho o senhor daria ao ex-presidente?
Para ter humildade. O Lula foi tomado por uma apoteose mental. Ele realmente passou a acreditar no que diz a propagnda do seu governo e nos elogios dos seus áulicos. O curioso é que ele sempre me acusou de ser um sujeito demasiado vaidoso, arrogante, narcisista. Mas é o contrário. Comparado a ele, sou Gandhi.
Que conselho o senhor daria ao próximo presidente?
Para não viver sob o impulso do passado. O Brasil precisa urgentemente de uma visão estratégica. Precisamos pensar sobre o papel que teremos num mundo em que o eixo do poder se desloca velozmente para a China. Outro exemplo: qual será a nossa matriz energética? Vamos mesmo apostar tudo no pré-sal? E quanto à justiça, à segurança, à educação: o que podemos fazer de fato, e rápido? As nossas questões não são mais econômicas, isso já está resolvido. Aprendemos a trabalhar bem nessa área. Nossa agenda, agora, é outra. Ou deveria ser.
O senhor, tão demonizado pelo PT, sente-se injustiçado?
Injustiçado, não, porque sou bem tratado de forma geral, como disse no início desta entrevista. Mas a minha figura acabou distorcida na imprensa, em certos meios intelectuais e, é triste dizer, contaminou até mesmo setores do partido que fundei. De vez em quando, os absurdos que os inimigos dizem a meu respeito são tamanhos que me sinto obrigado a me defender. Mas, em geral, como estou fora da rinha, lido bem com essa distorção e deixo para lá. Penso é no julgamento da História.
E como a História o julgará?
A História é uma contínua reinterpretação e será assim tanto em relação a mim como em relação ao Lula. Mas isso não me abala. Ora vão me exaltar, ora me esculhambar, dependendo da visão ideológica que se tenha no momento. Não é assim em relação até mesmo a grandes nomes como Napoleão e Bismarck? Por que não seria comigo? Esse é o ônus dos políticos que fizeram algo de relevante, deixaram uma marca pública e não permitiram que sua vida passasse em branco. É o meu caso e também o do Lula.
Qual seria a frase com a qual o senhor gostaria de passar á história?
Fernando Henrique Cardoso foi um democrata que teve a coragem de fazer o que deveria ser felto. Trata-se de uma frase, enfim, que deveria definir todos os ex-presidentes brasileiros daqui por diante.