quarta-feira, 29 de maio de 2013

Waldo Luís Viana: Entropia Nacional


“A impunidade é segura quando a cumplicidade é geral.” Marquês De Maricá (1773-1848)

O país apodrece a olhos vistos e ninguém tem peito de denunciar o fato. O Estado aparelhado, com a pletora de ministérios, cargos de confiança (22 mil) e pool de partidos corruptos dá os últimos vagidos. A falsa gerentona caminha claudicante sem plano de governo definido, tapando os buracos plenos que a era petista criou.

A inflação voltou e o país não pode entrar em recessão porque ela quer se reeleger, antecipando o pleito em todos os seus passos populistas. Todos sabem que medidas econômicas e políticas impopulares têm que ser aplicadas, mas não serão.

O Brasil precisa de reformas urgentes, política, administrativa, tributária e de gestão federativa, que obviamente serão adiadas, porque é importante confirmar a urna para os petistas. É um país rifado para garantir a próxima eleição.

Não importam as sucessivas tragédias vividas aqui, como a seca interminável, as chuvas poderosas derrubando encostas e ceifando vidas de pobres e mutimiseráveis, a insegurança nas cidades, as estradas destruídas, os portos ineptos, contanto que se garantam os delírios das empreiteiras. Afinal são elas que depositarão o numerário requerido para o próximo pleito, a gostosa “caixinha”...

Os empresários privados, acostumados a lotear o Estado para os seus interesses, não querem mais investir o próprio dinheiro sem a anuência do BNDES, a prostituta do capitalismo petista, sempre pronto a escamotear a desindustrialização flagrante, montada há dez anos.

A PETROBRÁS, joia da coroa no governo, caiu em prantos, em meio ao descalabro a que foi submetida. É uma empresa de petróleo em decadência, sofrendo de processos de acionistas menores em Nova Iorque e com estratégias de desmobilização de patrimônio para pagar dívidas e falsos projetos populistas que não deram certo. É uma empresa aparelhada pela pelegada vadia, que teima em destruir tudo na República. São os cupins do fracasso, esfrangalhando tudo, principalmente o orgulho dos brasileiros. Os petroleiros, outrora ufanistas, nem têm mais participação nos lucros, porque estes sumiram da sua genitora.

Para nos divertir, o governo Dilma acena com comissões da verdade, apologia dos gays, da prostituição midiática e outras prestidigitações gramcistas, capazes de destruir os valores cristãos, tutelares da nacionalidade, em nome de uma desestruturação da educação e da cultura por dentro, mediante apologia de cantores mortos sob overdose, duplas caipiras e funkeiros que amam a bandidagem. A mesma que assola as cidades, desfeiteando a polícia cúmplice e as autoridades que sempre dizem que vão trazer de volta a calma aos cidadãos sofridos.

Impostos escorchantes, que esmagam qualquer revolta contra a derrama civil, financiam cartões corporativos, verbas secretas e as mutretas em viagens ao exterior, com depósitos de dinheiro sonante em paraísos fiscais e mordomias principescas em viagens presidenciais.

Aqui dentro, temos hospitais sucateados, praticamente destruídos, estuprando a Constituição, que também não é obedecida quanto ao problema crônico da educação. Por que os políticos não educam seus filhos nas escolas públicas e não colocam parentes em hospitais do Estado? Você sabe bem a resposta...

Mas temos Copa do Mundo e Olimpíada, não é? Os empreiteiros vão cobrar suas taxas de urgência superfaturadas, sobrando aquela graninha, em mala preta, para os políticos se reelegerem. A máquina pública a mercê dos donos do país, que privatizam o Estado para distribuir benesses a seu ventríloquos no Congresso e na máquina executiva, sangra a olhos vistos e pede socorro. Aí surge a inflação e descontroles como uma dívida interna impagável e projetos mal gerenciados, como as ridículas iniciativas de crescimento, que todos sabem onde vão dar...

No orçamento público, porém, ficam congeladas as benesses para pagamento da dívida e superávit primário, que consomem 42% de toda a peça, demonstrando que um governo pretensamente esquerdista e nacionalista cumpre rigorosamente – e com habitual descaramento – todos os compromissos com as agências multilaterais do exterior. E quem não elogiaria um governo que remete 167 bilhões de dólares/ano para os agentes da finança internacional?

E o mais interessante é que se fala que a miséria se extinguiu, porque nossas agências estatísticas dizem que é classe média quem recebe mais de 271 reais por mês. Quer dizer, torna-se classe média quem fatura 130 dólares, enquanto para padrões norte-americanos é pobre quem recebe mensalmente cerca de 1.500 dólares! Vale dizer, tentamos nos nivelar por baixo, em padrões de economias de quarto mundo!

Essas distorções não são discutidas pela mídia toda comprada pelas verbas publicitárias e bônus de volume. Afinal, todos têm que sobreviver e é impossível discutir o país em universidades, centrais sindicais e organizações estudantis, caladas pelo vil metal que amamentam seus dirigentes “aliados”. Tal prodigalidade é garantida pelo que recolhe a Receita Federal, cuja sanha arrecadadora todos conhecem na pele.

Então o que nos sobra. Espernear, reclamar com o bispo ou utilizar a lentidão de tartaruga do Poder Judiciário? Não, o brasileiro não reclama, porque sempre espera que um otário dê a cara a tapa na frente do rebanho. O brasileiro é o espertinho do bolsa-família, sequioso pela espórtula da cachaça. E fazendo filho a torto e a direito para garantir as benesses cumulativas da preguiça. Nesse sentido, o governo constituiu o Macunaíma como símbolo nacional: sem nenhum caráter e não querendo fazer nada...

Eu menino ouvia de meus pais, que não me ensinaram a roubar, que Deus ajuda a quem cedo madruga. Na era petista temos, ao contrário, a entronização da segunda lei da termodinâmica: o país entra em entropia, em desorganização completa, rumo à energia zero, porque o universo é preguiçoso e o nosso governo também.

Pobre país, pobre povo, a espera do dilúvio fecal...

*Waldo Luís Viana é escritor, economista e poeta, esperando o conserto das coisas no desconcerto nacional

domingo, 26 de maio de 2013

Ferreira Gullar: De Mao a Xiao


Esta é a terceira crônica que escrevo tendo por referência o livro "Sobre a China", de Henry Kissinger. Será a última e terá como assunto as figuras de Mao Tse-tung e Deng Xiao Ping, os dois importantes líderes da China moderna, isto é, a nova China surgida da Revolução Comunista de 1949.

Se, nas crônicas anteriores, fui motivado pelas peculiaridades surpreendentes da antiga China, nesta vou me ater a alguns fatos que, na minha opinião, deram origem, de uma maneira ou de outra, à China de agora, tornada capitalista. Sim, mas por se tratar da China, um capitalismo muito peculiar.

A República Popular, que Mao implantou, por cima de uma história e uma cultura milenares, tinha por modelo a URSS de Josef Stálin e, por isso mesmo, projetos e decisões impostos à nação, de cima para baixo, por decisão e vontade do líder.

Por isso mesmo, quando, em 1956, Khruschov denunciou o stalinismo e propôs um modo menos autoritário de conduzir o processo revolucionário, Mao rompeu com ele e o acusou de trair o comunismo.

Certamente, Mao havia mudado a velha China, introduzindo nela medidas econômicas e educacionais que melhoraram sensivelmente a vida do povo chinês. Há, porém, quem ponha em dúvida o seu grau de sensatez, quando passou a tomar decisões delirantes como a de induzir os cidadãos a fabricarem aço em casa.

Milhões de chefes de família teriam montado minissiderúrgicas no quintal da casa para, ali, produzir aço. O resultado, como teria de ser, foi desastroso: toneladas de aço de péssima qualidade, que não servia para nada.

Há quem acredite estar nesse fracasso a origem da Revolução Cultural. Segundo eles, tamanho insucesso teria comprometido a autoridade e o prestígio, até então intocáveis, de Mao, gerando, dentro do Partido Comunista chinês, um movimento contra a sua liderança. Muitos dirigentes passaram a crer que o grande líder havia enlouquecido e que, para deter aquela rebelião, deflagrou a Revolução Cultural que, em última análise, visava a desmontar o aparelho partidário.

Kissinger afirma que Mao impeliu a China a uma década de frenesi ideológico, sectarismo feroz e quase a uma guerra civil. Nenhuma instituição foi poupada e, por todo o país, governos locais foram desfeitos, destituídos líderes do Partido Comunista e do Exército de Libertação Popular, incluindo comandantes da guerra revolucionária, vítimas de expurgo e submetidos a humilhação pública.

Figuras importantes do partido foram obrigadas a desfilar pelas ruas das cidades ostentando orelhas de burro. Os jovens foram instados a saírem às ruas de todo o país, atendendo à exortação de Mao, a fim de "aprenderem a revolução fazendo a revolução".

Dirigentes do partido eram enviados ao campo para aprender com os camponeses analfabetos a lição revolucionária. Adolescentes tornaram-se tropas de choque ideológicas. A nação chinesa virou de cabeça para baixo, com filhos se voltando contra os pais, alunos humilhando professores, queimando livros. Em Pequim, os ataques dos Guardas Vermelhos destruíram quase 5.000 locais de valor cultural e histórico.

Após a morte de Mao, Deng Xiao Ping, principal líder entre o fim dos anos 1970 e início dos 1990-- que fora perseguido por Mao-- afirmou ter a Revolução Cultural quase destruído o Partido Comunista como instituição e arruinara sua credibilidade.

Quando assumiu o governo, a China estava em situação pior do que quando Mao iniciara a transformação revolucionária da sociedade chinesa. Na verdade, o Estado planejado, longe de criar uma sociedade sem classes, terminara por estratificar as classes.

Os bens, em vez de serem comprados, eram distribuídos conforme as prerrogativas oficiais, o que levou ao favoritismo e à corrupção, uma vez que tudo passou a depender de influência partidária.

O programa de reforma que Deng implantara destinou-se a erradicar o maoismo. Ele e seus auxiliares mais próximos implantaram a economia de mercado, aberta ao exterior, confiando no espírito empreendedor do povo chinês.

Não resta dúvida de que nasceu então a China de hoje, de economia capitalista, no polo oposto às teses maoistas. Não obstante, fiel à sagacidade tradicional chinesa, manteve o culto a Mao Tse-tung, embora fizesse o contrário do que ele fez e faria.

sexta-feira, 24 de maio de 2013

Olavo de Carvalho: Devotos de um vigarista


A Folha de S. Paulo perguntou a quatro dos seus mais típicos mentores por que é ainda importante ler Karl Marx. Nenhum deles deu a resposta certa: porque ninguém pode ignorar, sem grave risco, as idéias que mataram mais seres humanos do que todos os terremotos, furacões, epidemias e desastres aéreos do último século, mais duas guerras mundiais. Infringindo a regra elementar do próprio Karl Marx, de que a verdadeira substância de uma idéia é a sua prática e não a sua mera formulação conceitual, três deles mostraram enxergar o marxismo como pura teoria, separada da ação que exerceu no mundo, e incorreram assim no delito de “formalismo burguês”, o mais abominável para um cérebro marxista. Eu não tomaria aulas de marxismo com esses sujeitos nem se eles me pagassem.

O quarto, prof. Delfim Neto, na ânsia de redimir-se ante a intelectualidade esquerdista do pecado de ter servido à ditadura militar, caprichou no hiperbolismo e atribuiu a Karl Marx o dom da eternidade, que numa perspectiva marxista não faz o menor sentido.

O prof. José Arthur Gianotti recomendou reler Karl Marx cuidadosamente, porque “sua concepção da história foi adulterada, por ter sido colada, sem os cuidados necessários, a um darwinismo respingado de religiosidade.” Adulterada? Colada? Nenhum dos continuadores de Karl Marx revelou tanta dívida intelectual para com Charles Darwin quanto o próprio Karl Marx, que declarou sua filosofia nada mais que a interpretação darwinista da História e só não dedicou O Capital ao autor de A Origem das Espéciesporque este não permitiu. Quanto à tonalidade religiosa, ou pseudo-religiosa, ela é mais do que notável nosManuscritos de 1944 e ressoa em cada linha das verberações proféticas anticapitalistas espalhadas ao longo de toda a obra de Marx. O prof. Gianotti é que quer separar artificialmente aquilo que nasceu junto. “Reler cuidadosamente”? Não é preciso. Bastaria ter lido.

Mas o mais cômico dos quatro foi o sr. Leandro Konder, que intelectualmente já saiu do mundo dos vivos há três décadas e não precisaria ter abandonado seu estado de animação suspensa para confirmar, na Folha, aquilo que ele já provou centenas de vezes: sua prodigiosa incultura, seu total desconhecimento dos assuntos em que opina.

Disse ele: “Os grandes pensadores são grandes porque abordam problemas vastíssimos e o fazem com muita originalidade. A perspectiva burguesa, conservadora, evita discuti-los. E é isso o que caracteriza seu conservadorismo.”

Os conhecimentos que não só ele pessoalmente, mas toda a corriola de mentecaptos marxistas deste país tem daquilo que ele chama “perspectiva burguesa” podem ser avaliados pelo Dicionário Crítico do Pensamento da Direita, em que 104 dessas criaturas ridículas se encheram de dinheiro público para dar um show de ignorância como nunca se viu no mundo. Leia em http://www.olavodecarvalho.org/textos/naosabendo.htm e depois volte aqui.

Essa gente simplesmente não estuda os pensadores que parecem antipáticos ao seu partido. Adivinha ou cria suas idéias à distância, partindo de fofocas, piadas, fantasias preconcebidas e lendas urbanas que constituem, no seu ambiente mental sufocantemente provinciano, a única bibliografia requerida para quem deseje pontificar a respeito. Fazem isso até comigo, que tenho uma obra publicada relativamente escassa, por que não o fariam com os autores de muitas dezenas de volumes, como Leibniz, Husserl, Voegelin ou o nosso Mário Ferreira dos Santos?

A um boboca que desconhece tudo aquilo que despreza, é forçoso que o horizonte de problemas pensado por Karl Marx pareça, em comparação com o nada, “vastíssimo”. Mas Karl Marx, em verdade, pensou num único problema: a luta de classes. Todos os outros conceitos da sua filosofia foram recebidos prontos, como os de dialética, de alienação ou de comunismo, ou são apenas afirmados sem nenhuma discussão crítica, como o próprio “materialismo dialético”, ou derivam da luta de classes por mero automatismo, como os de ideologia, superestrutura etc. Longe de ampliar o horizonte dos problemas filosóficos, o que Karl Marx fez foi restringi-lo com um dogmatismo acachapante, instituindo aquilo que Eric Voegelin caracterizou como “proibição de perguntar”. Já nem falo dos grandes problemas clássicos como o fundamento do ser, o sentido da existência, o bem e o mal, etc. Nem o próprio conceito de “valor”, essencial na sua economia, ele discute. Postula-o no começo de O Capital e segue adiante, sem notar que disse uma tremenda asneira.

Comparado ao de Leibniz, de Aristóteles ou de Platão (ou mesmo ao de um Eric Voegelin, de um Max Weber, de um Christopher Dawson ou de um Pitirim Sorokin), o horizonte de problemas de Karl Marx é deploravelmente pobre. Sua cultura literária é a de um professor de ginásio, seus conhecimentos de história da pintura, da arquitetura e da música praticamente nulos, suas noções de teologia não fazem inveja a nenhum seminarista. Pergunto-me, por exemplo, qual a relevância do pensamento de Karl Marx para as ciências biológicas, para a física, para as matemáticas. Zero. A breve incursão do seu amigo Engels nesses domínios foi um vexame espetacular.

Em matéria de ética, então, o tratamento que Marx dá ao problema da felicidade humana é decerto o mais besta, o mais grosseiro de todos os tempos: tomemos o dinheiro da burguesia e todos serão felizes. Enfeitado o quanto seja, o argumento é esse. Só por esse detalhe o homem já mereceria o adjetivo com que o resumiu Eric Voegelin: “Vigarista”.

domingo, 19 de maio de 2013

Alexandre Paz: Revolução de 31 Março – Uma sucinta análise para a atual juventude


Gostaria de dizer algumas coisas sobre o que aconteceu no dia 31/03/1964 e nos anos que se seguiram. Porque concluo, diante do que ouço de pessoas em quem confio intelectualmente, que há algo muito errado na forma como a história é contada. Nada tão absurdo, considerando as balelas que ouvimos sobre o "descobrimento" do Brasil ou a forma como as pessoas fazem vistas grossas para as mortes e as torturas perpetradas pela Igreja Católica durante séculos. Mas, ainda assim, simplesmente não entendo como é possível que esse assunto seja tão parcial e levianamente abordado pelos que viveram aqueles tempos e, o que é pior, pelos que não viveram.

Nenhuma pessoa dotada de mediano senso crítico vai negar que houve excessos por parte do Governo Militar. Nesta seara, os fatos falam por si e por mais que se tente vislumbrar certos aspectos sob um prisma eufemístico, tortura e morte são realidades que emergem de maneira inegável.

Ocorre que é preciso contextualizar as coisas. Porque analisar fatos extirpados do substrato histórico-cultural em meio ao qual eles foram forjados é um equívoco dialético (para os ignorantes) e uma desonestidade intelectual (para os que conhecem os ditames do raciocínio lógico). E o que se faz com relação aos Governos Militares do Brasil é justamente ignorar o contexto histórico e analisar seus atos conforme o contexto que melhor serve ao propósito de denegri-los.

Poucos lembram da Guerra Fria, por exemplo. De como o mundo era polarizado e de quão real era a possibilidade de uma investida comunista em território nacional. Basta lembrar de Jango e Janio; da visita à China; da condecoração de Guevara, este, um assassino cuja empatia pessoal abafa sua natureza implacável diante dos inimigos.

Nada contra o Comunismo, diga-se de passagem, como filosofia. Mas creio que seja desnecessário tecer maiores comentários sobre o grau de autoritarismo e repressão vivido por aqueles que vivem sob este sistema. Porque algumas pessoas adoram Cuba, idolatram Guevara e celebram Chavez, até. Mas esquecem do rastro de sangue deixado por todos eles; esquecem as mazelas que afligem a todos os que ousam insurgir-se contra esse sistema tão "justo e igualitário". Tão belo e perfeito que milhares de retirantes aventuram-se todos os anos em balsas em meio a tempestades e tubarões na tentativa de conseguirem uma vida melhor.

A grande verdade é que o golpe ou revolução de 1964, chame como queira, talvez tenha livrado seus pais, avós, tios e até você mesmo e sua família de viver essa realidade. E digo talvez, porque jamais saberemos se isso, de fato, iria acontecer. Porém, na dúvida, respeito a todos os que não esperaram sentados para ver o Brasil virar uma Cuba.

Respeito, da mesma forma, quem pegou em armas para lutar contra o Governo Militar. Tendo a ver nobreza nos que renunciam ao conforto pessoal em nome de um ideal. Respeito, honestamente.

Mas não respeito a forma como esses "guerreiros" tratam o conflito. E respeito menos ainda quem os trata como heróis e os militares como vilões. É uma simplificação que as pessoas costumam fazer. Fruto da forma dual como somos educados a raciocinar desde pequenos. Ainda assim, equivocada e preconceituosa.

Numa guerra não há heróis. Menos ainda quando ela é travada entre irmãos. E uma coisa que se aprende na caserna é respeitar o inimigo. Respeitar o inimigo não é deixar, por vezes, de puxar o gatilho. Respeitar o inimigo é separar o guerreiro do homem. É tratar com nobreza e fidalguia os que tentam te matar, tão logo a luta esteja acabada. É saber que as ações tomadas em um contexto de guerra não obedecem à ética do dia-a-dia. Elas obedecem a uma lógica excepcional; do estado de necessidade, da missão acima do indivíduo, do evitar o mal maior.

Os grandes chefes militares não permanecem inimigos a vida inteira. Mesmo os que se enfrentam em sangrentas batalhas. E normalmente se encontram após o conflito, trocando suas espadas como sinal de respeito. São vários os exemplos nesse sentido ao longo da história. Aconteceu na Guerra de Secessão, na Segunda Guerra Mundial, no Vietnã, para pegar exemplos mais conhecidos. A verdade é que existe entre os grandes Generais uma relação de admiração.

A esquerda brasileira, por outro lado, adora tratar os seus guerrilheiros como heróis. Guerreiros que pegaram em armas contra a opressão; que sequestraram, explodiram e mataram em nome do seu ideal.

E aí eu pergunto: os crimes deles são menos importantes que os praticados pelos militares? O sangue dos soldados que tombaram é menos vermelho do que o dos guerrilheiros? Ações equivocadas de um lado desnaturam o caráter nebuloso das ações praticadas pelo outro? Penso que não. E vou além.

A lei de Anistia é um perfeito exemplo da nobreza que me referi anteriormente. Porque o lado vencedor (sim, quem fica 20 anos no poder e sai porque quer, definitivamente é o lado vencedor) concedeu perdão amplo e irrestrito a todos os que participaram da luta armada. De lado a lado. Sem restrições. Como deve ser entre cavalheiros. E por pressão de Figueiredo, ressalto, desde já. Porque havia correntes pressionando por uma anistia mitigada.

Esse respeito, entretanto. Só existiu de um lado. Porque a esquerda, amargurada pela derrota e pela pequenez moral de seus líderes nada mais fez nos anos que se seguiram, do que pisar na memória de suas Forças Armadas. E assim seguem fazendo. Jogando na lama a honra dos que tombaram por este país nos campos de batalha. E contaminando a maneira de pensar daqueles que cresceram ouvindo as tolices ditas pelos nossos comunistas. Comunistas que amam Cuba e Fidel, mas que moram nas suas coberturas e dirigem seus carrões. Bem diferente dos nossos militares, diga-se de passagem.

Graças a eles, nossa juventude sente repulsa pela autoridade. Acha bonito jogar pedras na Polícia e acha que qualquer ato de disciplina encerra um viés repressivo e antilibertário. É uma total inversão de valores. O que explica, de qualquer forma, a maneira como tratamos os professores e os idosos no Brasil.

Então, neste 31 de março, celebrarei aqueles que se levantaram contra o mal iminente. Celebrarei os que serviram à Pátria com honra e abnegação. Celebrarei os que honraram suas estrelas e divisas e não deixaram nosso país cair nas mãos da escória moral que, anos depois, o povo brasileiro resolveu por bem colocar no Poder.

Bem feito. Cada povo tem os políticos que merece.

Se você não gosta das Forças Armadas porque elas torturaram e mataram, então, seja, pelo menos, coerente. E passe a nutrir o mesmo dissabor pela corja que explodiu sequestrou e justiçou, do outro lado. Mas tenha certeza que, se um dia for necessário sacrificar a vida para defender nosso território e nossas instituições, você só verá um desses lados ter honradez para fazê-lo.

quarta-feira, 15 de maio de 2013

terça-feira, 14 de maio de 2013

Fernando Gabeira: Vamos tocar caxirola, irmão


Na economia, a galinha pousou e ainda cacareja com estridência, sob o impulso do contato com o solo. Na política, o edifício dominante começa a mostrar suas rachaduras. O PSB, por meio de Eduardo Campos, parte para a carreira solo; dentro do governo, tremem os alicerces da fraternidade.

Alguns petistas acham que Dilma Rousseff, com os olhos verdes desenhados para a nova temporada, protege Erenice Guerra, seu ex-braço direito, e o ministro Fernando Pimentel. Em contrapartida, Dilma, segundo eles, persegue Rosemary Noronha e mantém certa frieza ante os condenados pelo mensalão. É um delicado tipo de fissura. Os acusados amigos de Lula são tratados com rigor, os acusados amigos de Dilma seguem sua trajetória milionária. Erenice é um pouco, no governo Dilma, o que foi José Dirceu no governo Lula: ela articula inúmeros negócios na área de eletricidade, representa poderosos grupos estrangeiros.

A essência dessa intrincada luta interna não é estranha à História do Brasil: ou todos se locupletam ou restaure-se a moralidade. O ideal é de que todos se locupletem, não exista nenhuma distinção entre trambiqueiros da cota de Lula e da cota de Dilma. São todos irmãos, bro.

Como se não bastassem os ácidos humores internos, a aliança do governo embarcou numa aventura contraditória. O PT quer se vingar do Supremo Tribunal Federal (STF). O PMDB pede paz. Por que tanta briga, se podemos continuar comendo de mansinho?

O embate contra o STF era previsível. E não só pelas tintas bolivarianas que ainda colorem os sonhos da esquerda no poder. A tese de que o mensalão nunca existiu não deixa margem de manobra. É preciso desarticular o Poder que escreveu a narrativa do episódio. O edifício está condenado pela Defesa Civil. No entanto, a experiência das andanças pelas áreas de risco mostra que um edifício condenado nem sempre cai ou é abandonado pelos ocupantes.

Surge aí o papel da oposição. Será capaz de se unir, apresentar uma alternativa, enfrentar a dura luta cotidiana contra um esquema que estendeu seus braços como um polvo, abraçando tudo o que lhe oferece ainda alguma resistência?

Vamos tocar caxirola, irmão. Chegamos aos grandes eventos esportivos, uma aventura do novo Brasil mostrando ao mundo sua capacidade de organização, sua pujança. O edifício vizinho, o da cúpula esportiva, está literalmente ruindo. João Havelange deixou a presidência da honra da Fifa, em segredo. Ricardo Teixeira gasta seus dólares em Miami. Sobrou apenas José Maria Marin, enrolado com gravações em que estigmatiza Vladimir Herzog e prega em defesa da família brasileira.

Alguns patriotas que defendem a família costumam pintar os cabelos e beliscar a bunda das secretárias, em Brasília. Marin só pinta os cabelos e rouba medalhinhas em eventos esportivos. É inútil esperar que as tribos de cabelo acaju e negro como as asas da graúna entrem em conflito mortal, numa batalha que tinja a verde grama da Esplanada.

Vamos tocar caxirola! Soldados vestidos com capa de chuva protegerão nossa sinfonia na seca de Brasília, em estádio que nos custou os olhos da cara.

A aventura política parte do mito de que somos os melhores no futebol. Os alemães, entre outros, têm mostrado como o nosso esporte precisa de uma renovação de craques, técnicos e dirigentes. Quando o edifício da cúpula esportiva cair, e com ele o mito de que somos os maiorais, vamos jogar caxirola, irmão. O impacto se fará sentir no outro edifício condenado.

A caxirola é uma granada de plástico que explode no chão fazendo ploft. Toda uma tentativa de driblar a História, de transitar pelo atalho do consumo na economia, de trilhar os caminhos revoltantes do cinismo na política será reduzida à sua verdadeira dimensão.

O Rio de Janeiro tem três prédios conhecidos como “balança, mas não cai”. Estão ali para lembrar que as previsões só se podem cumprir se houver uma vontade ampla de achar outros rumos para o País. O edifício pode não cair no próximo teste. Nosso único consolo será ver a presidenta do Brasil tocando de novo sua caxirola, símbolo de uma visão de mundo, de povo, de festa: caxirola, cartolas, a base do governo, tudo com mordomos a R$ 18 mil e garçons a R$ 15 mil por mês. E concluir, resignadamente: venceram, mas da próxima não escapam.

A caxirola passa, o Brasil segue em frente. No momento, a política aparece como uma espetáculo distante e ridículo. Não por caso os programas humorísticos montaram tenda no Congresso. Mas o ano eleitoral necessariamente trará um debate sobre os rumos do País. Já devia ter começado, no momento surgem apenas alguns slogans.

Eleições podem ser uma armadilha. Cortinas de fumaça costumam dar mais votos do que argumentos sérios. Quase ninguém lê programa. Debates na TV, entrevistas ajudam a conhecer as perspectivas dos candidatos, mas ensinam um pouco também sobre o que as pessoas estão pensando sobre o País. Mas as eleições serão uma excelente oportunidade para tomarmos o pulso do Brasil, esperando constatar, como na canção, que o pulso ainda pulsa.

Vivemos grandes alianças ao longo do processo de democratização: a luta pelas diretas, o impeachment de Collor. Depois foi a vez dos dois grandes partidos experimentarem o poder. O governo Fernando Henrique Cardoso construiu as bases para a estabilidade econômica e a bonança internacional inspirou o PT a dinamizar o consumo.

Em 2008 a crise internacional instalou-se para lembrar que as coisas não seriam mais como antes. E nos colheu ainda com uma educação medíocre, uma infraestrutura tosca e uma gigantesca e dispendiosa máquina administrativa. Para agravar nossos custos, a imensa corrupção, vendida como um mal necessário, uma pequena taxa no banquete do consumo.

Isso já era realidade em 2010. Dilma Rousseff pegou o bonde andando e manteve o rumo, indiferente ao fim da linha. Ela troca com regularidade a cor dos olhos. Mas não consegue ver outro caminho.

terça-feira, 7 de maio de 2013

Mario Vargas Llosa: A morte lenta do chavismo


Um animal ferido é mais perigoso do que um que não está, isso porque a raiva e a impotência fazem com que ele provoque grandes destroços antes de morrer. Este é o caso do chavismo depois do tremendo revés sofrido nas eleições de 14 de abril em que, apesar da desproporção de recursos e o descarado nepotismo do Conselho Nacional Eleitoral – quatro de seus dirigentes são militantes governistas convictos e confessos – o herdeiro de Hugo Chávez, Nicolás Maduro, perdeu cerca de 800 mil votos e provavelmente só conseguiu vencer o opositor Henrique Capriles por meio de uma gigantesca fraude eleitoral. (A oposição documentou mais de 3.500 irregularidades em seu prejuízo durante a votação e a contagem de votos.)

O “socialismo do século 21″, como Chávez denominou seu programa para promover o regime, começou a perder apoio popular: a corrupção, o caos econômico, a escassez, a altíssima inflação e o aumento da criminalidade estão esvaziando a cada dia suas fileiras e engrossando as da oposição. Além disso, a incapacidade evidente de Nicolás Maduro para liderar um sistema abalado por discórdias e rivalidades internas, explica as manifestações exacerbadas e o nervosismo que nos últimos dias levaram os herdeiros de Chávez a mostrar a verdadeira cara do regime: sua intolerância, sua vocação antidemocrática e suas inclinações à bravata e à delinquência.

Assim deve ser explicada a emboscada da qual foram vítimas na terça-feira deputados da oposição, membros da Mesa de Unidade Democrática, durante uma sessão presidida por Diosdado Cabello, ex-militar que acompanhou Chávez no seu frustrado golpe contra o governo de Carlos Andrés Pérez. O presidente do Congresso iniciou a sessão retirando o direito dos parlamentares de oposição de se manifestar sobre a fraude eleitoral e ordenou que seus microfones fossem desligados. Quando os deputados protestaram, levantando uma faixa que denunciava um “golpe contra o Parlamento”, membros oficialistas e seus guarda-costas lançaram-se contra eles com socos e pontapés que deixaram alguns deputados, como Julio Borges e María Corina Machado, com lesões e edemas. Para evitar provas da arbitrariedade, as câmaras da TV oficial foram direcionadas oportunamente para o teto da assembleia. Mas os celulares de muitos participantes filmaram o ocorrido e o mundo inteiro tomou conhecimento da selvageria cometida, assim como das gargalhadas de Diosdado Cabello com o fato de María Corina Machado ser arrastada pelos cabelos e espancada pelos valentes revolucionários chavistas.

Duas semanas antes ouvi María Corina falar sobre seu país na Fundación Libertad, em Rosario, Argentina. Foi um dos discursos políticos mais inteligentes e comovedores que escutei. Sem vestígios de demagogia, com argumentos sólidos e uma desenvoltura admirável, ela descreveu as condições heroicas em que a oposição venezuelana enfrentava o oficialismo. Para cada cinco minutos na TV de Henrique Capriles, Nicolás Maduro dispunha de 17 horas. Referiu-se à intimidação sistemática, as chantagens e violências sofridas pelos opositores do regime, reais ou imaginários, em todo o país, e o estado de calamidade em que o desgoverno e a anarquia deixaram a Venezuela depois de 14 anos de nacionalizações de empresas, expropriações, populismo desenfreado, coletivismo e incompetência burocrática. Mas ela também manifestou esperança, um amor contagiante pela liberdade, a convicção de que, por maiores que fossem os sacrifícios, a terra de Bolívar acabaria por recuperar a democracia e a paz num futuro muito próximo.

Todos os que a ouviram naquela manhã saíram convencidos de que María Corina Machado desempenhará um papel importante no futuro da Venezuela, salvo se a histeria que parece ter se apoderado do regime chavista, agora que se sente em pleno processo de decomposição interna e enfrentando uma impopularidade crescente, não lhe preparar um acidente, ou colocá-la na prisão e mesmo encomende sua morte. É o que pode ocorrer com qualquer oponente, a começar por Henrique Capriles, que a ministra de Assuntos Penitenciários já alertou publicamente que tem pronta a cela onde logo ele vai parar.

Não é mera retórica: o regime começou a dar golpes à direita e esquerda. Ao mesmo tempo em que o governo de Maduro transformou o Parlamento num sabá de brutalidade, a repressão nas ruas aumentou, com a detenção do general aposentado Antonio River e um grupo de oficiais não identificados acusados de conspiração. E também perseguições contra líderes universitários e a expulsão de centenas de funcionários públicos dos seus cargos pelo fato de terem votado na oposição nestas eleições.

Os desorientados herdeiros de Chávez não compreendem que estas medidas abusivas os delatam e, em vez de conter a perda de apoio na sociedade, elas só farão aumentar o repúdio popular contra o governo.

Leviandade. Talvez diante do que vem sucedendo atualmente na Venezuela os governos dos países sul-americanos (Unasul) se conscientizem da leviandade cometida ao se apressarem em legitimar a vergonhosa eleição venezuelana e de seus presidentes (com exceção do Chile) participarem, dando um ar de legalidade, da investidura de Nicolás Maduro na presidência da república. Já terão comprovado que a recontagem de votos a que o herdeiro de Chávez se comprometeu para conseguir seu apoio, foi uma mentira flagrante, pois o Conselho Nacional Eleitoral proclamou seu triunfo sem realizar nenhuma revisão. E agirá da mesma maneira com relação ao pedido do candidato da oposição para que seja revisto todo o processo eleitoral impugnado diante das inúmeras violações do regulamento cometidas durante a votação e na contagem das atas de apuração.

Na verdade, nada disso importa muito, pois somente contribui para acelerar o desprestígio de um regime que já sofre um processo de enfraquecimento sistemático que só agravará no futuro, em razão da situação catastrófica das finanças, a deterioração da economia e o triste espetáculo oferecido por seus principais dirigentes, a começar por Nicolás Maduro.

É triste ver o nível intelectual desse governo, cujo chefe de Estado assobia, ruge ou insulta porque não sabe falar.

Quando pensamos que este é o mesmo país que nos deu Rómulo Gallegos, Arturo Uslar Pietri, Vicente Gerbasi e Juan Liscano e, no campo político, Carlos Rangel e Rómulo Betancourt, presidente que propôs a seus colegas latino-americanos se comprometerem a romper relações diplomáticas e comerciais no ato com qualquer país vítima de um golpe de Estado (naturalmente nenhum deles aceitou a proposta).

O que importa é que depois de 14 de abril vemos uma luz no fim do túnel da noite autoritária que teve início com o chavismo. Setores populares importantes que foram seduzidos pela retórica do comandante e suas promessas messiânicas, estão aprendendo diante da dura realidade quotidiana como estavam enganados, vendo a distância crescente entre aquele sonho ideológico e a queda do nível de vida, a inflação que reduz a capacidade de consumo dos mais pobres, o nepotismo que é uma nova forma de injustiça, a corrupção e os privilégios da nomenclatura.

E também a delinquência que tornou Caracas a cidade mais insegura do mundo. E nada disso pode mudar, salvo para pior diante da cegueira ideológica do presidente Maduro, formado nas escolas de dirigentes da Revolução Cubana. Que, aliás, acaba de realizar sua visita habitual a Havana para renovar sua fidelidade à ditadura mais antiga do continente americano.

Assim, assistimos ao declínio deste período autoritário de quase 15 anos na história desse maltratado país. Esperemos que sua agonia não traga mais sofrimentos e desgraças além do que já foi infligido pelos delírios chavistas ao povo venezuelano.

sexta-feira, 3 de maio de 2013

Augusto Nunes: Os manuscritos de Getúlio e o prefácio que Lula não escreveu


Nunca antes neste país houve um presidente que incapaz de ler sequer orelhas de livro e de escrever pelo menos anotações em agendas. Lula foi o primeiro. Com tempo de sobra desde 1980, não estudou porque não quis. Jamais escondeu a aversão a leituras ─ ou porque dão azia, no caso dos jornais, ou porque são mais estafantes que exercício em esteira, se o texto passa de 10 centímetros. Ninguém jamais o viu empunhando uma caneta nem dedilhando um teclado de computador para produzir meia dúzia de linhas sobre o que quer que seja.

Há sete anos e meio em Brasília, ele não sabe se existe alguma estante na Granja do Torto, nem procurou saber onde fica a biblioteca do Palácio da Alvorada.  E sua letra foi vislumbrada pela primeira vez em 1982, zanzando sem bússola num recado tatibitate ao sobrinho que fazia aniversário. De lá para cá, não rabiscou lembretes em folhas de papel, nada registrou em algum diário, não mandou cartas, e-mails, nem mesmo bilhetes ordenando a Gilberto Carvalho que o acordasse mais tarde. Não escreveu coisa alguma.

Começou agora, anunciou o senador Aloízio Mercadante em 13 de Junho do Ano de Graça de 2010: “Entreguei um exemplar do meu novo livro ‘Brasil, a construção retomada’ ao presidente Lula, que fez o prefácio”, garantiu a mensagem transmitida pelo twitter do Herói da Rendição. A notícia embutia uma segunda descoberta igualmente assombrosa: como ninguém escreve o prefácio sem ter lido o livro, Lula ─ entre uma derrapagem no Oriente Médio e um fiasco no Irã ─ encontrara tempo para ler, com a atenção exigida de um prefaciador, outro filhote do prolífico Mercadante.

Desde novembro passado, os interessados na compreensão da saga republicana aguardam, justificadamente ansiosos, a divulgação de quase 700 bilhetes enviados por Getúlio Vargas a Lourival Fontes, chefe da Casa Civil do governo constitucional. Redigidos entre o começo de 1951 e agosto de 1954, deverão chegar às livrarias junto com o catatau do senador. Os manuscritos de Vargas podem jogar mais luz sobre uma tragédia. O prefácio pode ser jogado no lixo: é só outra farsa. Claro que Lula apenas garatujou a assinatura no palavrório que alguém escreveu.

Por ação ou omissão, os intelectuais companheiros se tornaram cúmplices da celebração da ignorância. O que houve com os brasileiros que estudaram ou estudam para engolirem sem engasgos alguém incapaz de desenhar um O com o fundo da garrafa?, pergunta a gente sensata. O que faz um país promover a inimputável um chefe de governo incapaz de produzir um único registro escrito sobre os anos vividos no coração no poder? Conversa de elitista, recita o ensaísta Antônio Cândido, que não fez outra coisa na vida além de lidar com palavras. Quem tem popularidade não precisa saber nada, ensinam cronistas federais e humoristas amestrados.

“Acho que os historiadores do futuro terão dificuldade em entender o contraste entre essa quase unânime reprovação do Lula pela grande imprensa e sua também descomunal aprovação popular”, escreveu Luis Fernando Verissimo. “O que vai se desgastar com isto é a ideia da grande imprensa como formadora de opinião”. É muito cinismo, estariam berrando os intelectuais independentes e os estudantes livres de cabrestos ideológicos ─ se ambas as espécies não estivessem em extinção no país cada vez mais parecido com um grande Clube dos Cafajestes. O que os historiadores do futuro custarão a entender é a vassalagem prestada por escritores estatizados ao chefe que encarna a Era da Mediocridade.

A julgar pela comédia ensaiada por Mercadante, o rebanho agora quer promover o pastor a homem de algumas letras. É tarde. O espaço reservado a Lula no Museu da República não terá nenhuma gaveta ocupada por cartas, diários, anotações, rascunhos, recados, mensagens, canetas, lápis, boletins escolares, composições à vista de uma gravura ─ nada. Se algum curador oportunista fizer de conta que prova de fraude é documento histórico, e expuser à visitação pública as páginas que abrem o livro de Mercadante, tomara que não fiquem ao lado dos bilhetes de Getúlio.

Os manuscritos permitirão que se contemple com mais nitidez o ocaso perturbador de um presidente que saiu da vida para entrar na História. O prefácio que Lula não escreveu desnuda a cabeça primitiva de um oportunista que caiu na vida sem entrar na História.