domingo, 26 de maio de 2013

Ferreira Gullar: De Mao a Xiao


Esta é a terceira crônica que escrevo tendo por referência o livro "Sobre a China", de Henry Kissinger. Será a última e terá como assunto as figuras de Mao Tse-tung e Deng Xiao Ping, os dois importantes líderes da China moderna, isto é, a nova China surgida da Revolução Comunista de 1949.

Se, nas crônicas anteriores, fui motivado pelas peculiaridades surpreendentes da antiga China, nesta vou me ater a alguns fatos que, na minha opinião, deram origem, de uma maneira ou de outra, à China de agora, tornada capitalista. Sim, mas por se tratar da China, um capitalismo muito peculiar.

A República Popular, que Mao implantou, por cima de uma história e uma cultura milenares, tinha por modelo a URSS de Josef Stálin e, por isso mesmo, projetos e decisões impostos à nação, de cima para baixo, por decisão e vontade do líder.

Por isso mesmo, quando, em 1956, Khruschov denunciou o stalinismo e propôs um modo menos autoritário de conduzir o processo revolucionário, Mao rompeu com ele e o acusou de trair o comunismo.

Certamente, Mao havia mudado a velha China, introduzindo nela medidas econômicas e educacionais que melhoraram sensivelmente a vida do povo chinês. Há, porém, quem ponha em dúvida o seu grau de sensatez, quando passou a tomar decisões delirantes como a de induzir os cidadãos a fabricarem aço em casa.

Milhões de chefes de família teriam montado minissiderúrgicas no quintal da casa para, ali, produzir aço. O resultado, como teria de ser, foi desastroso: toneladas de aço de péssima qualidade, que não servia para nada.

Há quem acredite estar nesse fracasso a origem da Revolução Cultural. Segundo eles, tamanho insucesso teria comprometido a autoridade e o prestígio, até então intocáveis, de Mao, gerando, dentro do Partido Comunista chinês, um movimento contra a sua liderança. Muitos dirigentes passaram a crer que o grande líder havia enlouquecido e que, para deter aquela rebelião, deflagrou a Revolução Cultural que, em última análise, visava a desmontar o aparelho partidário.

Kissinger afirma que Mao impeliu a China a uma década de frenesi ideológico, sectarismo feroz e quase a uma guerra civil. Nenhuma instituição foi poupada e, por todo o país, governos locais foram desfeitos, destituídos líderes do Partido Comunista e do Exército de Libertação Popular, incluindo comandantes da guerra revolucionária, vítimas de expurgo e submetidos a humilhação pública.

Figuras importantes do partido foram obrigadas a desfilar pelas ruas das cidades ostentando orelhas de burro. Os jovens foram instados a saírem às ruas de todo o país, atendendo à exortação de Mao, a fim de "aprenderem a revolução fazendo a revolução".

Dirigentes do partido eram enviados ao campo para aprender com os camponeses analfabetos a lição revolucionária. Adolescentes tornaram-se tropas de choque ideológicas. A nação chinesa virou de cabeça para baixo, com filhos se voltando contra os pais, alunos humilhando professores, queimando livros. Em Pequim, os ataques dos Guardas Vermelhos destruíram quase 5.000 locais de valor cultural e histórico.

Após a morte de Mao, Deng Xiao Ping, principal líder entre o fim dos anos 1970 e início dos 1990-- que fora perseguido por Mao-- afirmou ter a Revolução Cultural quase destruído o Partido Comunista como instituição e arruinara sua credibilidade.

Quando assumiu o governo, a China estava em situação pior do que quando Mao iniciara a transformação revolucionária da sociedade chinesa. Na verdade, o Estado planejado, longe de criar uma sociedade sem classes, terminara por estratificar as classes.

Os bens, em vez de serem comprados, eram distribuídos conforme as prerrogativas oficiais, o que levou ao favoritismo e à corrupção, uma vez que tudo passou a depender de influência partidária.

O programa de reforma que Deng implantara destinou-se a erradicar o maoismo. Ele e seus auxiliares mais próximos implantaram a economia de mercado, aberta ao exterior, confiando no espírito empreendedor do povo chinês.

Não resta dúvida de que nasceu então a China de hoje, de economia capitalista, no polo oposto às teses maoistas. Não obstante, fiel à sagacidade tradicional chinesa, manteve o culto a Mao Tse-tung, embora fizesse o contrário do que ele fez e faria.