A Folha de S. Paulo perguntou a quatro dos seus mais típicos
mentores por que é ainda importante ler Karl Marx. Nenhum deles deu a resposta
certa: porque ninguém pode ignorar, sem grave risco, as idéias que mataram mais
seres humanos do que todos os terremotos, furacões, epidemias e desastres
aéreos do último século, mais duas guerras mundiais. Infringindo a regra
elementar do próprio Karl Marx, de que a verdadeira substância de uma idéia é a
sua prática e não a sua mera formulação conceitual, três deles mostraram
enxergar o marxismo como pura teoria, separada da ação que exerceu no mundo, e
incorreram assim no delito de “formalismo burguês”, o mais abominável para um
cérebro marxista. Eu não tomaria aulas de marxismo com esses sujeitos nem se
eles me pagassem.
O quarto, prof. Delfim Neto, na ânsia de redimir-se ante a
intelectualidade esquerdista do pecado de ter servido à ditadura militar,
caprichou no hiperbolismo e atribuiu a Karl Marx o dom da eternidade, que numa
perspectiva marxista não faz o menor sentido.
O prof. José Arthur Gianotti recomendou reler Karl Marx
cuidadosamente, porque “sua concepção da história foi adulterada, por ter sido
colada, sem os cuidados necessários, a um darwinismo respingado de
religiosidade.” Adulterada? Colada? Nenhum dos continuadores de Karl Marx
revelou tanta dívida intelectual para com Charles Darwin quanto o próprio Karl
Marx, que declarou sua filosofia nada mais que a interpretação darwinista da
História e só não dedicou O Capital ao autor de A Origem das Espéciesporque
este não permitiu. Quanto à tonalidade religiosa, ou pseudo-religiosa, ela é
mais do que notável nosManuscritos de 1944 e ressoa em cada linha das
verberações proféticas anticapitalistas espalhadas ao longo de toda a obra de
Marx. O prof. Gianotti é que quer separar artificialmente aquilo que nasceu
junto. “Reler cuidadosamente”? Não é preciso. Bastaria ter lido.
Mas o mais cômico dos quatro foi o sr. Leandro Konder, que
intelectualmente já saiu do mundo dos vivos há três décadas e não precisaria
ter abandonado seu estado de animação suspensa para confirmar, na Folha, aquilo
que ele já provou centenas de vezes: sua prodigiosa incultura, seu total
desconhecimento dos assuntos em que opina.
Disse ele: “Os grandes pensadores são grandes porque abordam
problemas vastíssimos e o fazem com muita originalidade. A perspectiva
burguesa, conservadora, evita discuti-los. E é isso o que caracteriza seu
conservadorismo.”
Os conhecimentos que não só ele pessoalmente, mas toda a
corriola de mentecaptos marxistas deste país tem daquilo que ele chama
“perspectiva burguesa” podem ser avaliados pelo Dicionário Crítico do
Pensamento da Direita, em que 104 dessas criaturas ridículas se encheram de
dinheiro público para dar um show de ignorância como nunca se viu no mundo.
Leia em http://www.olavodecarvalho.org/textos/naosabendo.htm e depois volte
aqui.
Essa gente simplesmente não estuda os pensadores que parecem
antipáticos ao seu partido. Adivinha ou cria suas idéias à distância, partindo
de fofocas, piadas, fantasias preconcebidas e lendas urbanas que constituem, no
seu ambiente mental sufocantemente provinciano, a única bibliografia requerida
para quem deseje pontificar a respeito. Fazem isso até comigo, que tenho uma
obra publicada relativamente escassa, por que não o fariam com os autores de
muitas dezenas de volumes, como Leibniz, Husserl, Voegelin ou o nosso Mário
Ferreira dos Santos?
A um boboca que desconhece tudo aquilo que despreza, é
forçoso que o horizonte de problemas pensado por Karl Marx pareça, em
comparação com o nada, “vastíssimo”. Mas Karl Marx, em verdade, pensou num
único problema: a luta de classes. Todos os outros conceitos da sua filosofia
foram recebidos prontos, como os de dialética, de alienação ou de comunismo, ou
são apenas afirmados sem nenhuma discussão crítica, como o próprio
“materialismo dialético”, ou derivam da luta de classes por mero automatismo,
como os de ideologia, superestrutura etc. Longe de ampliar o horizonte dos
problemas filosóficos, o que Karl Marx fez foi restringi-lo com um dogmatismo
acachapante, instituindo aquilo que Eric Voegelin caracterizou como “proibição
de perguntar”. Já nem falo dos grandes problemas clássicos como o fundamento do
ser, o sentido da existência, o bem e o mal, etc. Nem o próprio conceito de
“valor”, essencial na sua economia, ele discute. Postula-o no começo de O
Capital e segue adiante, sem notar que disse uma tremenda asneira.
Comparado ao de Leibniz, de Aristóteles ou de Platão (ou
mesmo ao de um Eric Voegelin, de um Max Weber, de um Christopher Dawson ou de
um Pitirim Sorokin), o horizonte de problemas de Karl Marx é deploravelmente
pobre. Sua cultura literária é a de um professor de ginásio, seus conhecimentos
de história da pintura, da arquitetura e da música praticamente nulos, suas
noções de teologia não fazem inveja a nenhum seminarista. Pergunto-me, por
exemplo, qual a relevância do pensamento de Karl Marx para as ciências
biológicas, para a física, para as matemáticas. Zero. A breve incursão do seu
amigo Engels nesses domínios foi um vexame espetacular.
Em matéria de ética, então, o tratamento que Marx dá ao
problema da felicidade humana é decerto o mais besta, o mais grosseiro de todos
os tempos: tomemos o dinheiro da burguesia e todos serão felizes. Enfeitado o
quanto seja, o argumento é esse. Só por esse detalhe o homem já mereceria o
adjetivo com que o resumiu Eric Voegelin: “Vigarista”.