segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Fernando Gabeira: Cedo demais para esquecer

Seria um prazer deixar de pensar em Dilma e Cunha, concentrar no árduo trabalho cotidiano. Não enquanto estiverem lá, dando as cartas

Circulou nas redes sociais um texto atribuído ao milionário Beto Sicupira no qual ele pedia aos empresários que não se discutisse mais a crise, nem se falasse de Dilma e Cunha. É preciso tocar os negócios, Dilma e Cunha não trabalham na empresa. Ouvido pela imprensa, Sucupira não confirmou nem desmentiu seu texto. Escrito por um milionário ou alguém mais pobre, o conselho para ignorar esta camada da realidade lembrou-me o caso dos nativos da Tasmânia, contado por John Gray em seu livro “Cachorros de palha”.

Os nativos da Tasmânia viviam mais simplesmente que os aborígenes da Austrália, dos quais se isolaram com a elevação do nível do mar cerca de 10 mil anos atrás.

Perderam a habilidade de tecer, pescar e fazer fogo. E quando os navios de colonos europeus chegaram, em 1772, incapazes de processar uma imagem para a qual nada os havia preparado, voltaram às suas vidas, como se nada tivesse acontecido.

Eles foram dizimados. Sua pele era vendida, e as mulheres eram obrigadas a carregar a cabeça cortada de seus maridos amarradas em seu pescoço.

“Quando morreu o último macho tasmaniano, a sepultura foi aberta pelo Dr. George Stockell, um membro da Sociedade Real da Tasmânia, que fez uma bolsa para fumo com sua pele”, conta John Gray.

Não corremos riscos tão dramáticos, se optarmos pelo distanciamento. No entanto, corremos risco. Nesse início de crise, o desemprego cresceu, três milhões de famílias foram ejetadas da classe média, e cresce a violência nas cidades.

Numa única semana ficamos sabendo que quatro estrelas do PT movimentaram R$ 300 milhões em suas contas, que o líder proletário sozinho recebeu uma fortuna em suas viagens, nas quais exigia um menu de travesseiros.

Estamos sendo investigados em, pelo menos três países. No Peru, José Dirceu teria comprado autoridades; em Portugal o PT teria levado € 50 milhões em propinas, e no Paraguai realizamos uma obra superfaturada ligada à Usina de Itaipu.

Entregue à máfia político-burocrática, o Brasil não vai apenas ser sugado até o último vintém. O país pode se tornar uma imensa plataforma para assaltos no exterior.

Sobreviveremos como as favelas dominadas pelo tráfico ou pela milícia. Deixaremos de ser conhecidos pelo futebol e o carnaval. A picaretagem será nossa modalidade, na olimpíada universal do crime.

Quem trabalha muito tem pouco tempo para se informar ou protestar. Nesse aspecto, o texto atribuído ao milionário até que faz sentido: é preciso continuar trabalhando, apesar de Dilma e Cunha.

No entanto, vivemos uma situação de emergência. Saquearam o país, arruinaram a Petrobras, vendem medidas provisórias no Planalto, vendem-se jabutis para medidas provisórias na Câmara, venderão, se puderem, a última árvore de nossa floresta, a última gota de nossas nascentes.

Não importa para eles que o país entre em parafuso. Muitos têm contas na Suíça, outros, como um deputado do PT, ganham apartamentos em Miami.

Para as grandes fortunas, esse vendaval é apenas uma brisa. No entanto, é devastador para os todos que vivem, modestamente, de seu trabalho.

Como deixar Dilma de lado, depois de utilizar o dinheiro público como quis, pedalando em nome dos pobres e canalizando o dinheiro para as grandes empresas? Como esquecer o maior escândalo da História e não relacioná-lo à milionária campanha do PT? Como acordar todas as manhãs sabendo que a Câmara é uma piscina cheia de ratos, cujo presidente é um gângster com contas na Suíça?

Assim como as pessoas, os países precisam de vez em quando se olhar no espelho. No momento, o Brasil não consegue fazer esse gesto. Quando há perigo de vida, como nas favelas dominadas por tráfico ou milícia, é prudente seguir trabalhando, conversar o mínimo possível, esperar que a mudança venha de cima.

Francamente, não há grande perigo em resistir à quadrilha política que domina o Brasil. Uma burocrata saiu espetando manifestantes com uma agulha, um professor ameaça levar os reacionários ao paredão e fuzilá-los com uma espingarda. Claro, sempre podem nos chamar de reacionários, vendidos, elite branca, fascistas. Quando criança, a gente simplesmente cruzava os dedos e isolava: tudo o que você falar está me ajudando. Uma agulha pelas costas, uma espingarda velha não são forte elementos de dissuasão. O obstáculo real está nas dúvidas sobre o futuro? O que virá depois? Se aparecer uma simples fresta no horizonte, a multidão passará por ela.

Os nativos da Tasmânia não tinham informações, sequer conseguiam processá-las. Nós sabemos de tudo, consumimos notícias instantâneas. De uma certa maneira, nossa pele está em jogo.

Seria um prazer deixar de pensar em Dilma e Cunha, concentrar no árduo trabalho cotidiano. Não enquanto estiverem lá, dando as cartas. Ainda que falsas, são as cartas do poder.