terça-feira, 19 de abril de 2011

Eduardo Mackenzie: O estranho Salvador

 Racismo, eugenia, planejamento de políticas de saúde pública baseadas na extinção de indivíduos “indesejáveis”, troca de apoio político com o assassino nazista Walter Rauff e a submissão ao tirano Fidel Castro: fatos comprovados da trajetória política do incensado Salvador Allende.

A imagem crística que os publicitários fabricaram de Salvador Allende, o grande campeão do “humanismo marxista” latino-americano, conhece atualmente uma reciclagem brutal e saudável graças a Víctor Farías, doutor em filosofia e professor da Universidad Andrés Bello de Santiago de Chile. Farías é conhecido internacionalmente por sua obra, “Heidegger e o nazismo”, escrito na época em que era investigador na Freie Universität de Berlim. Seu livro suscitou em 1987 uma forte polêmica.

Em “Allende, la cara oculta. Antisemitismo y eugenismo” (Edições Grancher, Paris, 2006), Víctor Farías ventila um dos aspectos mais obscuros da personalidade do falecido presidente do Chile, e revela as cumplicidades de Marmaduke Grove, o fundador do Partido Socialista Chileno, com a embaixada nazi de Santiago em 1938.

Não sem dificuldade, Farías desenterrou o primeiro escrito científico de Allende, “Higiene mental e delinqüência”, que preconiza, dentre outras coisas, o encarceramento definitivo de uma categoria de pacientes, pretendidamente “incuráveis”, e o tratamento autoritário dos toxicômanos e dos que sofrem de enfermidades mentais vinculadas a “desvios sexuais” como a homossexualidade. Apresentado em 1933 ante a faculdade de Medicina da Universidade do Chile, esse texto “obtuso e muito medíocre”, segundo Farías, explica que uma das causas naturais da delinqüência é a “raça”, o que predetermina geneticamente os judeus a um determinado tipo de delinqüência: “Os hebreus se caracterizam por formas determinadas de delito: estelionato, falsidade, calúnia e, sobretudo, usura (...). Estes dados permitem pensar que há uma influência da raça sobre a delinqüência”. O exame do conteúdo exato desse texto não se havia feito até hoje.

Em sua tese, Allende também diz que “os ciganos constituem habitualmente grupos delinqüenciais onde reinam a preguiça, a cólera e a vaidade. Os homicídios são muito freqüentes entre eles”. Os árabes são, segundo ele, “imprevisíveis, ociosos e inclinados ao roubo”. O racismo naturalista e discriminatório de Allende se estendia também a outros seres humanos, sob o pretexto dos chamados “fatores climáticos”: “Os italianos do sul, em oposição aos do norte, e também os espanhóis são” - dizia Allende - “propensos aos crimes passionais de maneira cruel e primitiva e são emocionalmente irresponsáveis”.

Graças a um intercâmbio com especialistas italianos em história da medicina, Farías descobriu que Allende, na redação de sua tese, havia copiado literalmente, sem citá-los ou citando-os parcialmente, autores italianos discutíveis como o frenólogo César Lombroso e o naturalista Nicolás Pende. Este último, um partidário das leis racistas de Mussolini, definia os judeus como “um corpúsculo exterior ao povo italiano, ario”.

Farías demonstra que José María Estampé, a outra fonte-chave de Salvador Allende, que trabalha sobre o tema dos povos “etnicamente predispostos ao delito social”, menciona em seus escritos somente os ciganos, os indianos e algumas tribos da Boêmia, enquanto que Allende “completa a lista acrescentando motu propio 'os judeus', fazendo assim o cientista uruguaio passar por anti-semita”. Estampé era, con efeito, um racista, porém não um anti-semita como Allende. Farías conclui que “fazer o leitor acreditar que essa frase procede do professor Estampé é uma falsificação do texto, com a intenção evidente de acrescentar um crédito científico à sua cruzada anti-semita”.

O anti-semitismo de Allende é, com efeito, extremo, já que os “argumentos” fixados em seu texto sobre os supostos defeitos dos “judeus” não são atribuíveis a um anti-semitismo “cultural”, senão fundados sobre uma análise, como o enfatiza Farías, sobre os “antecedentes provavelmente genéticos” como só o faziam nessa época os nazistas alemães.

Com esses preconceitos racistas Salvador Allende irá mais longe. Em 1939, como ministro da Saúde do governo da Frente Popular, anuncia que seu programa inclui a esterilização dos débeis mentais, quer dizer, de milhares de chilenos, muitos deles crianças. Esse dispositivo Allende o concebe como um instrumento “de defesa da raça com um dispositivo coercitivo composto por medidas eugênicas negativas” .

Farías conclui: “Como todos os racistas extremos, Allende designa 'à raça' um estatuto ontológico decisivo em todas as direções da atividade humana. A 'falsidade', o 'estelionato', a 'calúnia' e, para terminar, a 'usura', constituem um leque de deficiências explicadas pela imobilidade do destino genético. Nesse caso, nem o arrependimento, nem a proposição de mudança, são possíveis”.

Praticadas pela Alemanha nazista desde julho de 1933 e rechaçadas pela opinião pública internacional, as idéias eugenistas de Allende serão, entretanto, o objeto de um programa de saúde de inspiração totalitária, pois Salvador Allende propõe a esterilização maciça dos débeis mentais, não de maneira voluntária senão pela força: contra a sentença definitiva de esterilização, emitidas pelo Tribunal de Esterilização, “não se poderá interpor recurso algum”. (Artigo 18 do Projeto de Lei do ministro Allende).

As afirmações dos hagiógrafos sobre o compromisso de Allende com o marxismo em 1933 fazem-se apesar desses fatos graves. A querela de Allende com o grupo marxista “Avante”, do qual ele foi expulso, poderia ser a conseqüência das verdadeiras motivações de Allende nessa época. Ele não teria sido expulso “por ter-se negado a promover a formação de sovietes”, como diz sua biografia oficial, senão por seu anti-semitismo e sua interpretação reacionária da ciência psiquiátrica: com grande habilidade, Allende abordará esse tema em 1971 em sua entrevista com Regis Debray, dizendo-lhe que ele havia sido expulso por sua “inclinação reacionária”, aludindo, é claro, à sua “negação dos sovietes” e não às suas chocante teses universitárias.

Allende teve mais sorte com o Partido Socialista. Desde abril de 1933 foi membro fundador, chefe de célula e secretário de estudos sociais da seção de Valparaíso, e secretário da cidade de Antofagasta. “Se esses dados são certos”, considera Farías, “nem a veracidade de Allende nem a identidade política do Partido Socialista são firmes”.

Porém, o anti-semitismo, tara comum do marxismo e do fascismo , é um defeito bastante visível entre os socialistas chilenos. Farías lembra que Carlos Altamirano, o chefe histórico do Partido Socialista chileno, é o autor do “texto anti-semita mais selvagem que se tenha escrito no Chile”. Com efeito, Altamirano revela em 1968 a um jornalista, que “o pior de seus ódios se dirige contra Moisés, o criador do judaísmo e de quem a religião judaica recebe seu nome”.

Altamirano declarou:

“Moisés é um velho desgraçado, um velho impotente e amargo e a única coisa que fez foi traumatizar a humanidade durante um período de dois mil anos. Ele não tem perdão de Deus. É um velho impotente que não podia fazer nada, por isso, para se vingar, subiu em uma montanha onde refletiu durante alguns dias como sabemos e reapareceu em seguida com seus dez mandamentos. Não fornicar! Não desejar a mulher do próximo! Não mentir! Não matar! Não fazer isto, não fazer aquilo. Você já viu um velho mais miserável? Ele retirou de um golpe tudo o que a vida tem de bom! Teria que criar um grande movimento destinado a enviar Moisés ao diabo...!”

Há também o processo Walter Rauff. Este último, um dos grandes criminosos nazistas, responsável direito pelo assassinato de 100.000 judeus e criador, por ordem de Eichmann, do sistema dos caminhões de gás, com os quais foi exterminado meio milhão de seres humanos, vivia tranqüilamente no Chile. Allende havia se negado a entregá-lo à justiça internacional, apesar das mobilizações de Simon Wiesenthal neste sentido. Durante seu calamitoso governo de 1970-1973, Salvador Allende protegeu “direta e deliberadamente” Walter Rauff. Por que? Segundo Farías, pelas fortes contribuições de Rauff a Allende durante a campanha eleitoral de 1969.

Em uma obra anterior, intitulada “Los nazis en Chile” (Planeta, Santiago, 2003), Farías havia revelado os vínculos entre o governo da Frente Popular de Aguirre Cerda (1938-1941) com os ministros da Alemanha nazista, em particular a proposta apresentada por Marmaduke Grove ao III Reich de se comprometer a realizar a totalidade das importações do Estado chileno e das empresas controladas por este com a Alemanha nazista. Isso em troca da concessão de um crédito de 150 a 200 milhões de marcos para comprar na Alemanha produtos militares e industriais. Grove havia solicitado, ademais, a entrega de um suborno de 500 mil pesos para comprar as consciências dos ministros socialistas (dentre as quais a de Salvador Allende). Farías publica nos anexos de seu livro a cópia da respectiva mensagem do diplomata alemão, datada de 21 de novembro de 1938.

Outro elemento que contribuirá para uma inversão completa da imagem de Salvador Allende são os vínculos provados deste com o grande capital chileno (a sociedade de importações-exportações Pelegrino Cariola), e seu papel como acionista do diário “Ultima Hora”, do qual o líder socialista controlava uma parte do capital, por um valor de 70 mil dólares.

A obra de Víctor Farías não abarca a totalidade da trajetória política de Allende. A submissão deste ante as orientações extremistas de Fidel Castro, sobretudo durante a última fase do governo da Unidade Popular, na qual se preparava a retomada da iniciativa pela força, a destruição da economia, expropriações crescentes e a nacionalização sem indenização das minas de cobre, assim como a pobreza e a escassez alimentar impostas à população (o que os marxistas apresentavam como uma “política de redistribuição da riqueza”), tudo isso fará o allendismo perder muito rápido o controle do Congresso e a agudizar a ruptura do regime com os partidos de oposição, com as classes médias e com uma parte da classe operária (a qual não apoiará Allende no momento do golpe de Estado de Pinochet). Essa foi a falha principal da carreira de Salvador Allende. Porém, isso não era - desgraçadamente - o tema do livro de Farías, o que constitui, talvez, seu único defeito.

Entretanto, o autor aborda, no final de sua investigação, o ponto da morte do chefe de Estado chileno. Ele cita o testemunho pessoal do doutor Carlos Marambio, um dos médicos que praticaram a autópsia do cadáver de Allende.”Dada a complexidade da situação, preferimos informar verbalmente, sobretudo porque chegamos à certeza absoluta de que a morte não havia sido o resultado de um suicídio. Era indubitável que houve a intervenção de outras pessoas nos disparos mortais”, declarou Marambio. Porém, como os militares dizem que serão acusados de haver cometido esse crime, “produziram um segundo informe” que será assinado somente por Tobar, o outro médico, onde se menciona o “suicídio” de Salvador Allende.

Sem fazer alusão às recentes afirmações de alguns ex-agentes castristas , hoje exilados na Europa, sobre o assassinato de Allende no Palacio de la Moneda em 11 de setembro de 1973, por um de seus guarda-costas cubanos, Víctor Farías soma-se ao grupo dos que pedem que se traga toda a verdade sobre este episódio da biografia de Allende. No mais, o livro de Víctor Farías merece ser lido com a maior atenção. Sobretudo por parte dos políticos que deverão decidir um dia se os numerosos lugares e ruas francesas, européias e latino-americanas batizadas de “Salvador Allende”, merecem seguir sob tal denominação.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Estadão: O VAR-Palmares de Dilma e seus “justiçamentos”

BRASÍLIA - Documento da Aeronáutica que foi tornado público nesta quarta-feira, 13, pelo Arquivo Nacional, após ter sido mantido em segredo durante três décadas, revela que a organização guerrilheira VAR-Palmares, que contou em suas fileiras com a hoje presidente Dilma Rousseff, determinou o “justiçamento”, isto é, o assassinato de oficiais do Exército e de agentes de outras forças considerados reacionários nos anos da ditadura militar.

Com cinco páginas, o relatório A Campanha de Propaganda Militar, redigido por líderes do grupo, avalia que a eliminação de agentes da repressão seria uma forma de sair do isolamento. O texto foi apreendido em um esconderijo da organização, o chamado aparelho, e encaminhado em caráter confidencial ao então Ministério da Aeronáutica.

O arquivo inédito, revelado pelo Estado no ano passado e aberto à consulta pública anteontem, faz parte do acervo do Centro de Segurança e Informação da Aeronáutica (CISA). No Arquivo Nacional, em Brasília, novo endereço do acervo que estava em poder do serviço de inteligência da Aeronáutica, há um conjunto de documentos que tratam da VAR-Palmares. Mostram, entre outras coisas, a participação de militares da ativa e a queda de líderes do grupo em Minas Gerais, Rio de Janeiro, Espírito Santo e São Paulo.

Os nomes dos integrantes do grupo receberam uma tarja preta, o que impede estabelecer relações diretas entre eles e as ações relatadas. É possível saber, por exemplo, que militantes de Belo Horizonte receberam em certa ocasião dez revólveres calibre 38 e munição, mas não os nomes desses militantes.

Na primeira página, o relatório de cinco páginas destaca que o grupo não tem “nenhuma possibilidade” de enfrentar os soldados nas cidades. Sobre o justiçamento de militares observa: “Deve ser feito em função de escolha cuidadosa (trecho incompreensível) elementos mais reacionários do Exército.”

Extermínio. Na época da redação do texto, entre 1969 e 1970, a ditadura tinha recrudescido o combate aos adversários do regime. Falava-se em setores das forças de completo extermínio dos subversivos. Em dezembro de 1968, o regime havia instituído o AI-5, que suprimia direitos civis e coincidia com o início de uma política de Estado para eliminar grupos de esquerda.

A VAR-Palmares surgiu em 1969 com a fusão do grupo Colina (Comando de Libertação Nacional), em que Dilma militava, com a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), do capitão Carlos Lamarca. Dilma, à época com 22 anos, foi presa em janeiro de 1970 em São Paulo. Ela só foi libertada em 1972, após passar por uma série de sessões de tortura. Sempre que fala sobre seu envolvimento com a resistência ao regime militar, Dilma costuma ressaltar que sua visão atual da vida não tem “similaridade” com o que pensava durante o tempo de guerrilha.

O documento tornado público classifica as ordens como contraofensiva. Seria uma resposta aos “crimes” do regime militar contra a esquerda: “O justiçamento punitivo visa especialmente paralisar o inimigo, eliminando sistematicamente os cdf da repressão, os fascistas ideologicamente motivados que pressionam os outros.”

O texto também dá orientações sobre como definir e vigiar possíveis alvos. A ideia era uma fazer uma lista dos oficiais “reacionários” e de pessoas ligadas à CIA, a agência central de inteligência dos Estados Unidos.

A VAR-Palmares tinha definido como alvos prioritários o delegado Sérgio Paranhos Fleury, do DOPS, e seu subordinado Raul Careca, acusados de comandarem a máquina da tortura nos porões de São Paulo: “Careca, Fleury são assassinos diretos de companheiros também. Trata-se de represália clara. Já outros investigados serão eliminados sob condição, conforme vimos acima.”

terça-feira, 12 de abril de 2011

Fernando Henrique Cardoso: O Papel da Oposição

Há muitos anos, na década de 1970, escrevi um artigo com o título acima no jornal Opinião, que pertencia à chamada imprensa “nanica”, mas era influente. Referia-me ao papel do MDB e das oposições não institucionais. Na época, me parecia ser necessário reforçar a frente única antiautoritária e eu conclamava as esquerdas não armadas, sobretudo as universitárias, a se unirem com um objetivo claro: apoiar a luta do MDB no Congresso e mobilizar a sociedade pela democracia.

Só dez anos depois a sociedade passou a atuar mais diretamente em favor dos objetivos pregados pela oposição, aos quais se somaram também palavras de ordem econômicas, como o fim do “arrocho” salarial.

No entretempo, vivia-se no embalo do crescimento econômico e da aceitação popular dos generais presidentes, sendo que o mais criticado pelas oposições, em função do aumento de práticas repressivas, o general Médici, foi o mais popular: 75% de aprovação.

Não obstante, não desanimávamos. Graças à persistência de algumas vozes, como a de Ulisses Guimarães, às inquietações sociais manifestadas pelas greves do final da década e ao aproveitamento pelos opositores de toda brecha que os atropelos do exercício do governo, ou as dificuldades da economia proporcionaram (como as crises do petróleo, o aumento da dívida externa e a inflação), as oposições não calavam. Em 1974, o MDB até alcançou expressiva vitória eleitoral em pleno regime autoritário.

Por que escrevo isso novamente, 35 anos depois?

Para recordar que cabe às oposições, como é óbvio e quase ridículo de escrever, se oporem ao governo. Mas para tal precisam afirmar posições, pois, se não falam em nome de alguma causa, alguma política e alguns valores, as vozes se perdem no burburinho das maledicências diárias sem chegar aos ouvidos do povo. Todas as vozes se confundem e não faltará quem diga – pois dizem mesmo sem ser certo – que todos, governo e oposição, são farinhas do mesmo saco, no fundo “políticos”. E o que se pode esperar dos políticos, pensa o povo, senão a busca de vantagens pessoais, quando não clientelismo e corrupção?

Diante do autoritarismo era mais fácil fincar estacas em um terreno político e alvejar o outro lado. Na situação presente, as dificuldades são maiores. Isso graças à convergência entre dois processos não totalmente independentes: o “triunfo do capitalismo” entre nós (sob sua forma global, diga-se) e a adesão progressiva – no começo envergonhada e por fim mais deslavada – do petismo lulista à nova ordem e a suas ideologias.

Se a estes processos somarmos o efeito dissolvente que o carisma de Lula produziu nas instituições, as oposições têm de se situar politicamente em um quadro complexo.

Complexidade crescente a partir dos primeiros passos do governo Dilma que, com estilo até agora contrastante com o do antecessor, pode envolver parte das classes médias. Estas, a despeito dos êxitos econômicos e da publicidade desbragada do governo anterior, mantiveram certa reserva diante de Lula. Esta reserva pode diminuir com relação ao governo atual se ele, seja por que razão for, comportar-se de maneira distinta do governo anterior.

É cedo para avaliar a consistência de mudanças no estilo de governar da presidente Dilma. Estamos no início do mandato e os sinais de novos rumos dados até agora são insuficientes para avaliar o percurso futuro.

É preciso refazer caminhos

Antes de especificar estes argumentos, esclareço que a maior complexidade para as oposições se firmarem no quadro atual – comparando com o que ocorreu no regime autoritário, e mesmo com o petismo durante meu governo, pois o PT mantinha uma retórica semianticapitalista – não diminui a importância de fincar a oposição no terreno político e dos valores, para que não se perca no oportunismo nem perca eficácia e sentido, aumentando o desânimo que leva à inação.

É preciso, portanto, refazer caminhos, a começar pelo reconhecimento da derrota: uma oposição que perde três disputas presidenciais não pode se acomodar com a falta de autocrítica e insistir em escusas que jogam a responsabilidade pelos fracassos no terreno “do outro”. Não estou, portanto, utilizando o que disse acima para justificar certa perplexidade das oposições, mas para situar melhor o campo no qual se devem mover.

Se as forças governistas foram capazes de mudar camaleonicamente a ponto de reivindicarem o terem construído a estabilidade financeira e a abertura da economia, formando os “campeões nacionais” – as empresas que se globalizam – isso se deu porque as oposições minimizaram a capacidade de contorcionismo do PT, que começou com a Carta aos Brasileiros de junho de 1994 e se desnudou quando Lula foi simultaneamente ao Fórum Social de Porto Alegre e a Davos.

Era o sinal de “adeus às armas”: socialismo só para enganar trouxas, nacional--desenvolvimentismo só como “etapa”. Uma tendência, contudo, não mudou, a do hegemonismo, ainda assim, aceitando aliados de cabresto.

Segmentos numerosos das oposições de hoje, mesmo no PSDB, aceitaram a modernização representada pelo governo FHC com dor de consciência, pois sentiam bater no coração as mensagens atrasadas do esquerdismo petista ou de sua leniência com o empreguismo estatal.

Não reivindicaram com força, por isso mesmo, os feitos da modernização econômica e do fortalecimento das instituições, fato muito bem exemplificado pela displicência em defender os êxitos da privatização ou as políticas saneadoras, ou de recusar com vigor a mentira repetida de que houve compra de votos pelo governo para a aprovação da emenda da reeleição, ou de denunciar atrasos institucionais, como a perda de autonomia e importância das agências reguladoras.

Da mesma maneira, só para dar mais alguns exemplos, o Proer e o Proes, graças aos quais o sistema financeiro se tornou mais sólido, foram solenemente ignorados, quando não estigmatizados. Os efeitos positivos da quebra dos monopólios, o do petróleo mais que qualquer outro, levando a Petrobras a competir e a atuar como empresa global e não como repartição pública, não foram reivindicados como êxitos do PSDB.

O estupendo sucesso da Vale, da Embraer ou das teles e da Rede Ferroviária sucumbiu no murmúrio maledicente de “privatarias” que não existiram. A política de valorização do salário mínimo, que se iniciou no governo Itamar Franco e se firmou no do PSDB, virou glória do petismo.

As políticas compensatórias iniciadas no governo do PSDB – as bolsas – que o próprio Lula acusava de serem esmolas e quase naufragaram no natimorto Fome Zero – voltaram a brilhar na boca de Lula, pai dos pobres, diante do silêncio da oposição e deslumbramento do país e… do mundo!

Não escrevo isso como lamúria, nem com a vã pretensão de imaginar que é hora de reivindicar feitos do governo peessedebista. Inês é morta, o passado… passou. Nem seria justo dizer que não houve nas oposições quem mencionasse com coragem muito do que fizemos e criticasse o lulismo.

As vozes dos setores mais vigorosos da oposição se estiolaram, entretanto, nos muros do Congresso e este perdeu força política e capacidade de ressonância. Os partidos se transformaram em clubes congressuais, abandonando as ruas; muitos parlamentares trocaram o exercício do poder no Congresso por um prato de lentilhas: a cada nova negociação para assegurar a “governabilidade”, mais vantagens recebem os congressistas e menos força político-transformadora tem o Congresso.

Na medida em que a maioria dos partidos e dos parlamentares foi entrando no jogo de fazer emendas ao orçamento (para beneficiar suas regiões, interesses – legítimos ou não – de entidades e, por fim, sua reeleição), o Congresso foi perdendo relevância e poder.

Consequentemente, as vozes parlamentares, em especial as de oposição, que são as que mais precisam da instituição parlamentar para que seu brado seja escutado, perderam ressonância na sociedade.

Com a aceitação sem protesto do “modo lulista de governar” por meio de medidas provisórias, para que serve o Congresso senão para chancelar decisões do Executivo e receber benesses? Principalmente, quando muitos congressistas estão dispostos a fazer o papel de maioria obediente a troco da liberação pelo Executivo das verbas de suas emendas, sem esquecer que alguns oposicionistas embarcam na mesma canoa.

Ironicamente, uma importante modificação institucional, a descentralização da ação executiva federal, estabelecida na Constituição de 1988 e consubstanciada desde os governos Itamar Franco e FHC, diluiu sua efetividade técnico--administrativa em uma pletora de recursos orçamentários “carimbados”, isto é, de orientação político-clientelista definida, acarretando sujeição ao Poder Central, ou, melhor, a quem o simboliza pessoalmente e ao partido hegemônico.

Neste sentido, diminuiu o papel político dos governadores, bastião do oposicionismo em estados importantes, pois a relação entre prefeituras e governo federal saltou os governos estaduais e passou a se dar mais diretamente com a presidência da República, por meio de uma secretaria especial colada ao gabinete presidencial.

Como, por outra parte, existe – ou existiu até a pouco – certa folga fiscal e a sociedade passa por período de intensa mobilidade social movida pelo dinamismo da economia internacional e pelas políticas de expansão do mercado interno que geram emprego, o desfazimento institucional produzido pelo lulismo e a difusão de práticas clientelísticas e corruptoras foram sendo absorvidos, diante da indiferença da sociedade.

Na época do mensalão, houve um início de desvendamento do novo Sistema (com S maiúsculo, como se escrevia para descrever o modelo político criado pelos governos militares).

Então, ainda havia indignação diante das denúncias que a mídia fazia e os partidos ecoavam no Parlamento. Pouco a pouco, embora a mídia continue a fazer denúncias, a própria opinião pública, isto é, os setores da opinião nacional que recebem informações, como que se anestesiou. Os cidadãos cansaram de ouvir tanto horror perante os céus sem que nada mude. Diante deste quadro, o que podem fazer as oposições?

Definir o público a ser alcançado

Em primeiro lugar, não manter ilusões: é pouco o que os partidos podem fazer para que a voz de seus parlamentares alcance a sociedade.

É preciso que as oposições se deem conta de que existe um público distinto do que se prende ao jogo político tradicional e ao que é mais atingido pelos mecanismos governamentais de difusão televisiva e midiática em geral.

As oposições se baseiam em partidos não propriamente mobilizadores de massas. A definição de qual é o outro público a ser alcançado pelas oposições e como fazer para chegar até ele e ampliar a audiência crítica é fundamental.

Enquanto o PSDB e seus aliados persistirem em disputar com o PT influência sobre os “movimentos sociais” ou o “povão”, isto é, sobre as massas carentes e pouco informadas, falarão sozinhos. Isto porque o governo “aparelhou”, cooptou com benesses e recursos as principais centrais sindicais e os movimentos organizados da sociedade civil e dispõe de mecanismos de concessão de benesses às massas carentes mais eficazes do que a palavra dos oposicionistas, além da influência que exerce na mídia com as verbas publicitárias.

Sendo assim, dirão os céticos, as oposições estão perdidas, pois não atingem a maioria. Só que a realidade não é bem essa. Existe toda uma gama de classes médias, de novas classes possuidoras (empresários de novo tipo e mais jovens), de profissionais das atividades contemporâneas ligadas à ti (tecnologia da informação) e ao entretenimento, aos novos serviços espalhados pelo Brasil afora, às quais se soma o que vem sendo chamado sem muita precisão de “classe c” ou de nova classe média.

Digo imprecisamente porque a definição de classe social não se limita às categorias de renda (a elas se somam educação, redes sociais de conexão, prestígio social, etc.), mas não para negar a extensão e a importância do fenômeno. Pois bem, a imensa maioria destes grupos – sem excluir as camadas de trabalhadores urbanos já integrados ao mercado capitalista – está ausente do jogo político-partidário, mas não desconectada das redes de internet, Facebook, YouTube, Twitter, etc.

É a estes que as oposições devem dirigir suas mensagens prioritariamente, sobretudo no período entre as eleições, quando os partidos falam para si mesmo, no Congresso e nos governos. Se houver ousadia, os partidos de oposição podem organizar-se pelos meios eletrônicos, dando vida não a diretórios burocráticos, mas a debates verdadeiros sobre os temas de interesse dessas camadas.

Mas não é só isso: as oposições precisam voltar às salas universitárias, às inúmeras redes de palestras e que se propagam pelo país afora e não devem, obviamente, desacreditar do papel da mídia tradicional: com toda a modernização tecnológica, sem a sanção derivada da confiabilidade, que só a tradição da grande mídia assegura, tampouco as mensagens, mesmo que difundidas, se transformam em marcas reconhecidas.

Além da persistência e ampliação destas práticas, é preciso buscar novas formas de atuação para que a oposição esteja presente, ou pelo menos para que entenda e repercuta o que ocorre na sociedade. Há inúmeras organizações de bairro, um sem-número de grupos musicais e culturais nas periferias das grandes cidades, etc., organizações voluntárias de solidariedade e de protesto, redes de consumidores, ativistas do meio ambiente, e por aí vai, que atuam por conta própria.

Dado o anacronismo das instituições político-partidárias, seria talvez pedir muito aos partidos que mergulhem na vida cotidiana e tenham ligações orgânicas com grupos que expressam as dificuldades e anseios do homem comum. Mas que pelo menos ouçam suas vozes e atuem em consonância com elas.

Não deve existir uma separação radical entre o mundo da política e a vida cotidiana, nem muito menos entre valores e interesses práticos.

No mundo interconectado de hoje, vê-se, por exemplo, o que ocorre com as revoluções no meio islâmico, movimentos protestatórios irrompem sem uma ligação formal com a política tradicional. Talvez as discussões sobre os meandros do poder não interessem ao povo no dia-a-dia tanto quanto os efeitos devastadores das enchentes ou o sufoco de um trânsito que não anda nas grandes cidades. Mas, de repente, se dá um “curto-circuito” e o que parecia não ser “política” se politiza. Não foi o que ocorreu nas eleições de 1974 ou na campanha das “diretas já”?

Nestes momentos, o pragmatismo de quem luta para sobreviver no dia-a-dia lidando com questões “concretas” se empolga com crenças e valores. O discurso, noutros termos, não pode ser apenas o institucional, tem de ser o do cotidiano, mas não desligado de valores. Obviamente em nosso caso, o de uma democracia, não estou pensando em movimentos contra a ordem política global, mas em aspirações que a própria sociedade gera e que os partidos precisam estar preparados para que, se não os tiverem suscitado por sua desconexão, possam senti-los e encaminhá-los na direção política desejada.

Seria erro fatal imaginar, por exemplo, que o discurso “moralista” é coisa de elite à moda da antiga UDN. A corrupção continua a ter o repúdio não só das classes médias como de boa parte da população. Na última campanha eleitoral, o momento de maior crescimento da candidatura Serra e de aproximação aos resultados obtidos pela candidata governista foi quando veio à tona o “episódio Erenice”.

Mas é preciso ter coragem de dar o nome aos bois e vincular a “falha moral” a seus resultados práticos, negativos para a população. Mais ainda: é preciso persistir, repetir a crítica, ao estilo do “beba Coca Cola” dos publicitários. Não se trata de dar-nos por satisfeitos, à moda de demonstrar um teorema e escrever “cqd”, como queríamos demonstrar.

Seres humanos não atuam por motivos meramente racionais. Sem a teatralização que leve à emoção, a crítica – moralista ou outra qualquer– cai no vazio. Sem Roberto Jefferson não teria havido mensalão como fato político.

Qual é a mensagem?

Por certo, os oposicionistas para serem ouvidos precisam ter o que dizer. Não basta criar um público, uma audiência e um estilo, o conteúdo da mensagem é fundamental. Qual é a mensagem? O maior equívoco das oposições, especialmente do PSDB, foi o de haver posto à margem as mensagens de modernização, de aggiornamento do País, e de clara defesa de uma sociedade democrática comprometida com causas universais, como os direitos humanos e a luta contra a opressão, mesmo quando esta vem mascarada de progressismo, apoiada em políticas de distribuição de rendas e de identificação das massas com o Chefe.

Nas modernas sociedades democráticas, por outro lado, o Estado tanto mantém funções na regulação da economia como em sua indução, podendo chegar a exercer papel como investidor direto. Mas o que caracteriza o Estado em uma sociedade de massas madura é sua ação democratizadora.

Os governos devem tornar claros, transparentes, e o quanto possível imunes à corrupção, os mecanismos econômicos que cria para apoiar o desenvolvimento da economia. Um Estado moderno será julgado por sua eficiência para ampliar o acesso à educação, à saúde e à previdência social, bem como pela qualidade da segurança que oferece às pessoas.Cabe às oposições serem a vanguarda nas lutas por estes objetivos.

Defender o papel crescente do Estado nas sociedades democráticas, inclusive em áreas produtivas, não é contraditório com a defesa da economia de mercado. Pelo contrário, é preciso que a oposição diga alto e bom som que os mecanismos de mercado, a competição, as regras jurídicas e a transparência das decisões são fundamentais para o Brasil se modernizar, crescer economicamente e se desenvolver como sociedade democrática.

Uma sociedade democrática amadurecida estará sempre comprometida com a defesa dos direitos humanos, com a ecologia e com o combate à miséria e às doenças, no país e em toda a parte. E compreende que a ação isolada do Estado, sem a participação da sociedade, inclusive dos setores produtivos privados, é insuficiente para gerar o bem-estar da população e oferecer bases sólidas para um desenvolvimento econômico sustentado.

Ao invés de se aferrarem a esses valores e políticas que lhes eram próprios como ideologia e como prática, as oposições abriram espaço para que o lulopetismo ocupasse a cena da modernização econômica e social. Só que eles têm os pés de barro: a cada instante proclamam que as privatizações “do PSDB” foram contra a economia do País, embora comecem a fazer descaradamente concessões de serviços públicos nas estradas e nos aeroportos, como se não estivessem fazendo na prática o mea-culpa.

Cabe às oposições não apenas desmascarar o cinismo, mas, sobretudo, cobrar o atraso do País: onde está a infraestrutura que ficou bloqueada em seus avanços pelo temor de apelar à participação da iniciativa privada nos portos, nos aeroportos, na geração de energia e assim por diante?

Quão caro já estamos pagando pela ineficiência de agências reguladoras entregues a sindicalistas “antiprivatizantes” ou a partidos clientelistas, como se tornou o PC d B, que além de vender benesses no ministério dos Esportes, embota a capacidade controladora da ANP, que deveria evitar que o monopólio voltasse por vias transversas e prejudicasse o futuro do País.

Oposição precisa vender o peixe

Dirão novamente os céticos que nada disso interessa diretamente ao povo. Ora, depende de como a oposição venda o peixe. Se tomarmos como alvo, por exemplo, o atraso nas obras necessárias para a realização da Copa e especializarmos três ou quatro parlamentares ou técnicos para martelar no dia-a-dia, nos discursos e na internet, o quanto não se avança nestas áreas por causa do burocratismo, do clientelismo, da corrupção ou simplesmente da viseira ideológica que impede a competição construtiva entre os setores privados e destes com os monopólios, e se mostrarmos à população como ela está sendo diretamente prejudicada pelo estilo petista de política, criticamos este estilo de governar, suscitamos o interesse popular e ao mesmo tempo oferecemos alternativas.

Na vida política tudo depende da capacidade de politizar o apelo e de dirigi-lo a quem possa ouvi-lo. Se gritarmos por todos os meios disponíveis que a dívida interna de R$ 1,69 trilhão (mostrando com exemplos ao que isto corresponde) é assustadora, que estamos pagando R$ 50 bilhões por ano para manter reservas elevadas em dólares, que pagamos a dívida (pequena) ao FMI sobre a qual incidiam juros moderados, trocando-a por dívidas em reais com juros enormes, se mostrarmos o quanto custa a cada contribuinte cada vez que o Tesouro transfere ao BNDES dinheiro que o governo não tem e por isso toma emprestado ao mercado pagando juros de 12% ao ano, para serem emprestados pelo BNDES a juros de 6% aos grandes empresários nacionais e estrangeiros, temos discurso para certas camadas da população.

Este discurso deve desvendar, ao mesmo tempo, o porquê do governo assim proceder: está criando um bloco de poder capitalista-burocrático que sufoca as empresas médias e pequenas e concentra renda.

Este tipo de política mostra descaso pelos interesses dos assalariados, dos pequenos produtores e profissionais liberais de tipo antigo e novo, setores que, em conjunto, custeiam as benesses concedidas ao grande capital com impostos que lhe são extraídos pelo governo.

O lulopetismo não está fortalecendo o capitalismo em uma sociedade democrática, mas sim o capitalismo monopolista e burocrático que fortalece privilégios e corporativismos.

Com argumentos muito mais fracos o petismo acusou o governo do PSDB quando, em fase de indispensável ajuste econômico, aumentou a dívida interna (ou, melhor, reconheceu os “esqueletos” compostos por dívidas passadas) e usou recursos da privatização – todos contabilizados – para reduzir seu crescimento. A dívida pública consolidada do governo lulista foi muito maior do que a herdada por este do governo passado e, no entanto, a opinião pública não tomou conhecimento do fato.

As oposições não foram capazes de politizar a questão. E o que está acontecendo agora quando o governo discute substituir o fator previdenciário, recurso de que o governo do PSDB lançou mão para mitigar os efeitos da derrota sofrida para estabelecer uma idade mínima de aposentadoria? Propondo a troca do fator previdenciário pela definição de… uma idade mínima de aposentadoria.

Petistas camaleões

Se os governistas são camaleões (ou, melhor, os petistas, pois boa parte dos governistas nem isso são: votavam com o governo no passado e continuam a votar hoje, como votarão amanhã, em vez de saudá-los porque se aproximam da racionalidade ou de votarmos contra esta mesma racionalidade, negando nossas crenças de ontem, devemos manter a coerência e denunciar as falsidades ideológicas e o estilo de política de mistificação dos fatos, tantas vezes sustentado pelo petismo.

São inumeráveis os exemplos sobre como manter princípios e atuar como uma oposição coerente. Mesmo na questão dos impostos, quando o PSDB e o DEM junto com o PPS ajudaram a derrubar a CPMF, mostraram que, coerentes, dispensaram aquele imposto porque ele já não era mais necessário, como ficou demonstrado pelo contínuo aumento da receita depois de sua supressão.

É preciso continuar a fazer oposição à continuidade do aumento de impostos para custear a máquina público-partidária e o capitalismo burocrático dos novos dinossauros. É possível mostrar o quanto pesa no bolso do povo cada despesa feita para custear a máquina público-partidária e manter o capitalismo burocrático dos novos dinossauros. E para ser coerente, a oposição deve lutar desde já pela redução drástica do número de cargos em comissão, nomeados discricionariamente, bem como pelo estabelecimento de um número máximo de ministérios e secretarias especiais, para conter a fúria de apadrinhamento e de conchavos partidários à custa do povo.

Em suma: não há oposição sem “lado”. Mais do que ser de um partido, é preciso “tomar partido”.

É isso que a sociedade civil faz nas mais distintas matérias. O que o PSDB pensa sobre liberdade e pluralidade religiosa? Como manter a independência do Estado laico e, ao mesmo tempo, prestigiar e respeitar as religiões que formam redes de coesão social, essenciais para a vida em sociedade? O que pensa o partido sobre o combate às drogas? É preciso ser claro e sincero: todas as drogas causam danos, embora de alcance diferente. Adianta botar na cadeia os drogados?

Sinceridade comove a população

Há casos nos quais a regulação vale mais que a proibição: veja-se o tabaco e o álcool, ambos extremadamente daninhos. São não apenas regulados em sua venda e uso (por exemplo, é proibido fumar em locais fechados ou beber depois de uma festa e guiar automóveis) como estigmatizados por campanhas publicitárias, pela ação de governos e das famílias.

Não seria o caso de fazer a mesma coisa com a maconha, embora não com as demais drogas muito mais danosas, e concentrar o fogo policial no combate aos traficantes das drogas pesadas e de armas? Se disso ainda não estivermos convencidos, pelo menos não fujamos à discussão, que já corre solta na sociedade. Sejamos sinceros: é a sinceridade que comove a população e não a hipocrisia que pretende não ver o óbvio.

Se a regra é ser sincero, por que temer ir fundo e avaliar o que nós próprios fizemos no passado, acreditando estar certos, e que continua sendo feito, mas que requer uma revisão?

Tome-se o exemplo da reforma agrária e dos programas de incentivo à economia familiar.

Fomos nós do PSDB que recriamos o Ministério da Reforma Agrária e, pela primeira vez, criamos um mecanismo de financiamento da agricultura familiar, o Pronaf. Nenhum governo fez mais em matéria de acesso à terra do que o do PSDB quando a pasta da Reforma era dirigida por um membro do PPS.

Não terá chegado a hora de avaliar os resultados? O Pronaf não estará se transformando em mecanismo de perpétua renovação de dívidas, como os grandes agricultores faziam no passado com suas dívidas no Banco do Brasil? Qual é o balanço dos resultados da reforma agrária? E as acusações de “aparelhamento” da burocracia pelo PT e pelo MST são de fato verdadeiras?

Sem que a oposição afirme precipitadamente que tudo isso vai mal – o que pode não ser correto – não pode temer buscar a verdade dos fatos, avaliar, julgar e criticar para corrigir.

Existe matéria em abundância para manter os princípios e para ir fundo nas críticas sem temer a acusação injusta de que se está defendendo “a elite”. Mas política não é tese universitária. É preciso estabelecer uma agenda. Geralmente esta é dada pelo governo. Ainda assim, usemo-la para concentrar esforços e dar foco, repetição e persistência à ação oposicionista.

Tomemos um exemplo, o da reforma política, tema que o governo afirma estar disposto a discutir. Pois bem, o PSDB tem posição firmada na matéria: é favorável ao voto distrital (misto ou puro, ainda é questão indefinida). Se é assim, por que não recusar de plano a proposta da “lista fechada”, que reforça a burocracia partidária, não diminui o personalismo (ou alguém duvida que se pedirão votos para a lista “do Lula”?) e separa mais ainda o eleitor dos representantes?

Compromisso com o voto digital

Não é preciso afincar uma posição de intransigência: mantenhamos o compromisso com o voto distrital, façamos a pregação.

Se não dispusermos de forças para que nossa tese ganhe, aceitemos apenas os melhoramentos óbvios no sistema atual: cláusula de desempenho (ou de barreira), proibição de coligações nas eleições proporcionais e regras de fidelidade partidária, ainda que para algumas destas medidas seja necessário mudança constitucional.

Deixemos para outra oportunidade a discussão sobre financiamento público das campanhas, pois sem a distritalização o custo para o contribuinte será enorme e não se impedirá o financiamento em “caixa preta” nem o abuso do poder econômico. Mas denunciemos o quanto de antidemocrático existe no voto em listas fechadas.

Em suma: não será esta uma boa agenda para a oposição firmar identidade, contrapor-se à tendência petista de tudo burocratizar e, ao mesmo tempo, não se encerrar em um puro negativismo aceitando modificações sensatas?

Por fim, retomando o que disse acima sobre o “triunfo do capitalismo”. O governo do PT e o próprio partido embarcaram, sem dizer, na adoração do bezerro de ouro. Mas, marcados pelos cacoetes do passado, não perceberam que o novo na fase contemporânea do capitalismo não é apenas a acumulação e o crescimento da economia.

Os grandes temas que se estão desenhando são outros e têm a ver com o interesse coletivo: como expandir a economia sem destroçar o meio ambiente, como assegurar direitos aos destituídos deles, não só pela obreza, mas pelas injustiças (desigualdades de gênero, de raça, de acesso à cultura)? Persistem preocupações antigas: como preservar a Paz em um mundo no qual há quem disponha da bomba nuclear?

A luta pela desnuclearização tem a ver com o sentido de um capitalismo cuja forma “selvagem” a sociedade democrática não aceita mais.

Esta nova postura é óbvia no caso da ecologia, pois o natural egoísmo dos Estados, na formulação clássica, se choca com a tese primeira, a da perpetuação da vida humana. O terror atômico e o aquecimento global põem por terra visões fincadas no terreno do nacional-estatismo arcaico.

Há um nacionalismo de novo tipo, democrático, aberto aos desafios do mundo e integrado nele, mas alerta aos interesses nacionais e populares. Convém redefinir, portanto, a noção do interesse nacional, mantendo-o persistente e alerta no que é próprio aos interesses do País, mas compatibilizando-o com os interesses da humanidade.

Estas formulações podem parecer abstratas, embora se traduzam no dia-a-dia: no Brasil, ninguém discute sobre qual o melhor modo de nossa presença no mundo: será pelo velho caminho armamentista, nuclearizando-nos, ou nossas imensas vantagens comparativas em outras áreas, entre elas as do chamado soft power, podem primar?

Por exemplo, nossa “plasticidade cultural mestiça”, a aceitação das diferenças raciais – sem que se neguem e combatam as desigualdades e preconceitos ainda existentes – não são um ganho em um mundo multipolar e multicultural? E a disponibilidade de uma matriz energética limpa, sem exageros de muitas usinas atômicas (sempre perigosas), bem como os avanços na tecnologia do etanol, não nos dão vantagens?

Por que não discutir, a partir daí, o ritmo em que exploraremos o pré-sal e as obscuras razões para a “estatização do risco e divisão do lucro” entre a Petrobras e as multinacionais por meio do sistema de partilha? São questões que não exploramos devidamente, ou cujas decisões estão longe de ser claramente compatíveis com o interesse nacional de longo prazo.

Falta de estratégia

Na verdade, falta-nos estratégia. Estratégia não é plano de ação: é o peso relativo que se dá às questões desafiadoras do futuro somado à definição de como as abordaremos. Que faremos neste novo mundo para competir com a China, com os Estados Unidos ou com quem mais seja? Como jogar com nossos recursos naturais (petróleo à frente) como fator de sucesso e poder sem sermos amanhã surpreendidos pelo predomínio de outras fontes de energia? E, acima de tudo, como transformar em políticas o anseio por uma “revolução educacional” que dê lugar à criatividade, à invenção e aos avanços das tecnologias do futuro?

A China, ao que parece, aprendeu as lições da última crise e está apostando na inovação, preparando-se para substituir as fontes tradicionais de energia, sobretudo o petróleo, de que não dispõe em quantidade suficiente para seu consumo crescente. E os próprios Estados Unidos, embora atônitos com os erros acumulados desde a gestão Bush, parecem capazes de continuar inovando, se conseguirem sair depressa da crise financeira que os engolfou.

De tudo isso o PT e seus governos falam, mas em ziguezague. As amarras a uma visão oposta, vinda de seu passado recente, os inibem para avançar mais. Não é hora das oposições serem mais afirmativas? E se por acaso, como insinuei no início deste artigo, houver divisões no próprio campo do petismo por causa da visão canhestra de muitos setores que apoiam o governo e de suas necessidades práticas o levarem a direções menos dogmáticas?

Neste caso, embora seja cedo para especular, terá a oposição inteireza e capacidade política para aproveitar as circunstâncias e acelerar a desagregação do antigo e apostar no novo, no fortalecimento de uma sociedade mais madura e democrática?

Engana-se quem pensar que basta manter a economia crescendo e oferecer ao povo a imagem de uma sociedade com mobilidade social.

Esta, ao ocorrer, aumenta as demandas tanto em termos práticos, de salários e condições de vida, como culturais. Em um mundo interconectado pelos modernos meios de comunicação o cidadão comum deseja saber mais, participar mais e avaliar por si se de fato as diferenças econômicas e sociais estão diminuindo.

Sem, entretanto, uma oposição que se oponha ao triunfalismo lulista, que coroa a alienação capitalista, desmistificando tudo o que seja mera justificativa publicitária do poder e chamando a atenção para os valores fundamentais da vida em uma sociedade democrática, só ocorrerão mudanças nas piores condições: quando a fagulha de alguma insatisfação produzir um curto-circuito. Mesmo este adiantará pouco se não houver à disposição uma alternativa viável de poder, um caminho preparado por lideranças nas quais a população confie.

No mundo contemporâneo este caminho não se constrói apenas por partidos políticos, nem se limita ao jogo institucional. Ele brota também da sociedade, de seus blogs, twitters, redes sociais, da mídia, das organizações da sociedade civil, enfim, é um processo coletivo. Não existe apenas uma oposição, a da arena institucional; existem vários focos de oposição, nas várias dimensões da sociedade.

Reitero: se as oposições institucionais não forem capazes de se ligar mais diretamente aos movimentos da vida, que pelo menos os ouçam e não tenham a pretensão de imaginar que pelo jogo congressual isolado alcançarão resultados significativos.

Os vários focos de insatisfação social, por sua vez, também podem se perder em demandas específicas a serem atendidas fragmentariamente pelo governo se não encontrarem canais institucionais que expressem sua vontade maior de transformação.

As oposições políticas, por fim, se nada ou pouco tiverem a ver com as múltiplas demandas do cotidiano, como acumularão forças para ganhar a sociedade?

Alvaro Dias: Discurso no Senado

Sr. Presidente, Srªs Senadoras, Srs. Senadores, a decisão do general romano Júlio César de atravessar o rio Rubicão com suas legiões mudou o rumo da história. A simbologia da expressão cunhada nesse fato histórico já foi usada como moldura em diversos contextos e análises conjunturais.

Nesse sentido, podemos afirmar que a gestão da Presidente Dilma até o momento não cruzou o seu Rubicão. A Presidente, desde sua posse, permaneceu um longo período enclausurada em uma espécie de zona verde, como se estivesse sendo mantida a distância da opinião pública.

O silêncio ruidoso de uma administração que parecia dirigida por um piloto automático somente foi rompido pela inocultável piora das contas do Governo.

A primeira manifestação concreta no vazio governamental foi o anúncio do corte de R$50 bilhões no Orçamento da União, montante, aliás, recentemente ampliado. A piora fiscal acentuada foi apresentada sob o manto eufemístico da consolidação fiscal.

A necessidade de um ajuste fiscal, tantas vezes negado e desdenhado durante a campanha eleitoral, não foi a única quebra do compromisso assumido com a população que a elegeu.

Por exemplo, o programa Minha Casa, Minha Vida, incluído no PAC, perdeu R$5,1 bilhões dos R$12,7 disponíveis para 2011. O programa sequer terá verbas suficientes para saldar os R$9,5 bilhões em despesas remanescentes da administração anterior. Por falta de recursos, nenhum projeto dirigido para famílias que recebem até três salários mínimos foi assinado com a Caixa Econômica Federal este ano.

A tentativa de escamotear o cenário real da economia adiou os cortes anunciados. O detalhamento do pacote de contenção de despesas ocorreu de forma atabalhoada, repleto de inconsistências e desmentidos posteriores.

A austeridade fiscal pretendida ainda é uma meta ficcional.

A fórmula encontrada para economizar R$50 bilhões inclui no cálculo medidas como o combate a fraudes do seguro desemprego e protelação do pagamento de sentenças judiciais. No primeiro bimestre, contudo, a despesa com os benefícios trabalhistas – seguro-desemprego e abono salarial – cresceu 24%.

A falta de consistência das medidas adotadas é agravada pelo frágil controle dos gastos do Governo, demonstrando que a austeridade implantada é duvidosa. Os gastos do Governo com diárias e passagens, nos dois primeiros meses do ano, cresceram 30% em relação ao mesmo período de 2010.

Estamos falando de R$158,7 milhões. É pertinente reproduzir a frase do jornalista Guilherme Fiúza: “Cortar intenções é mais ou menos como economizar sonhos. É sonhar com uma mansão em Beverly Hills e, ao acordar, tomar a drástica decisão de não comprá-la. Uma bela economia”.

Em passado recente, a então Ministra Dilma, instada a se posicionar sobre a evolução dos gastos de custeio, retrucou que “gasto corrente é vida”. Essa concepção explica, em alguma medida, o descontrole fiscal em curso.

No primeiro trimestre, os gastos com pessoal e custeio cresceram R$10 bilhões em comparação ao mesmo período do ano passado. Se forem computados os gastos com juros, o aumento chega a R$13,2 bilhões, montante suficiente para custear um ano do programa Bolsa Família. Os investimentos diminuíram R$317,2 milhões.

Sr. Presidente, o Governo acaba de completar os seus primeiros cem dias. A essência doutrinária ou mística dos primeiros cem dias, como prefiram, surgiu nos idos de 1930 para emoldurar o início do governo Roosevelt, governante que conquistou a Casa Branca em meio a uma profunda recessão nacional e obteve maciço apoio do parlamento para enfrentá-la.

Na verdade, os jornais norte-americanos da época importaram o termo da história da França, o retorno do exílio de Napoleão, a reconquista de poder e a derradeira batalha de Waterloo, no horizonte temporal de cem dias, respaldam o referido mote.

A presidente Dilma contou, nesses cem dias, com amplo e irrestrito apoio de sua base de sustentação no Congresso Nacional. Foi capaz de aprovar um salário mínimo que sequer repôs as perdas acumuladas e ainda receber o beneplácito de fixar, por decreto, os futuros valores.

A propósito, em meio às ruas estreitas, pátios e arcos medievais de Coimbra, ela se queixou que “tem um problema sério de maioria” no Parlamento, o que força negociações “caso a caso”, como na votação do salário mínimo.

É o alto custo do modelo que persiste. As nomeações ocorrem como barganha, puxando para baixo a qualidade de gerenciamento do Poder Executivo.

A escalada da inflação, por sua vez, galgou muitos degraus nesses cem dias, obrigando a Presidente Dilma a romper seu isolamento e conceder entrevista exclusiva à jornalista Cláudia Safatle, oportunidade na qual selou um compromisso já bastante abalado, a exemplo de tantos outros, de não permitir que a inflação volte ao Brasil.

O aumento da inflação dos últimos meses inspira cuidados. Os mecanismos informais, indexação de preços, notadamente no campo dos serviços, foram ressuscitados. As promessas de campanha são abandonadas sem qualquer embaraço. A desoneração da folha de pagamento das empresas, carro-chefe de uma proposta de reforma tributária da então candidata, agora está condicionada a um ganho inesperado de arrecadação ou até mesmo ajuste na alíquota de outro imposto.

Até o momento, os cortes anunciados foram inócuos, a rigor, o propalado corte orçamentário de R$50 bilhões não decorreu da imperativa necessidade de ajuste das contas públicas; a gastança irresponsável de 2010, que assegurou a sua eleição, determinou a mágica geradora de superávits inexistentes.

Ao chegar ao poder, defrontou-se com a inflação dando consistentes saltos de crescimento. O Banco Central foi acionado e, no início de seu Governo, elevou por duas vezes as taxas de juros.

A administração de Dilma Roussef, nos seus cem dias vive situação surrealista. Herdeira dos erros e danos gerados pelo Governo anterior, encobertos pelo marketing propagandístico e ufanista, não pode enfrentar com transparência a verdadeira herança maldita recebida, primeiro porque foi responsável e ativa geradora, já que era considerada a administradora geral dos programas governamentais. Segundo, porque a sua eleição deveu-se à acachapante popularidade fabricada pelo festival de irresponsabilidades fiscais do Governo Lula.

É, portanto, herdeira sacramentada e fiel depositária do descontrole das contas públicas, que vem penalizando danosamente os seus cem dias de Governo.

Recolhida ao silêncio palaciano, ela é compelida a sorver os equívocos do seu antecessor. Em vez dos comícios públicos diários, da inauguração de obras inacabadas, de lançamento de projetos ilusórios, o seu Governo vem cultivando o mutismo, não por respeito à liturgia presidencial, mas para evitar confronto com o antecessor. Sua postura tem exibido inegavelmente um contraponto ao comportamento açodado e atropelador da liturgia do cargo do mandatário anterior.

No fundamental, o Governo Dilma falece de vida própria, a estrutura do seu Ministério opaco é a consagração do continuísmo, em que a competência não é ponto forte. O maior exemplo é o fato de que nos cem dias de Governo foi incapaz de formular qualquer projeto ou mesmo proposta exploratória que tivesse valor e importância para o desenvolvimento.

São inúmeras as vertentes trincadas desses cem dias da gestão da Presidente Dilma. Antes de elencá-las por tópicos, cito o crescimento consistente do déficit externo brasileiro em transações correntes. Em 2010 ficou próximo de R$50 bilhões; para 2011, especialistas em projeções econômicas asseguram que deverá ser superior a R$65 bilhões; e, para 2012, ultrapassará R$70 bilhões.

O ingresso de capitais externos vem cobrindo o déficit, todavia, são majoritariamente capitais especulativos atraídos pela mais elevada taxa de juros real do planeta.

Os investimentos produtivos são minoritários. Na outra ponta, a dívida pública federal atingiu em fevereiro o montante de R$1,670 trilhão. A projeção para o final do ano é que deve atingir R$1,9 trilhão de reais.

Abro parênteses para destacar: esses são números oficiais, divulgados pelo próprio Governo. Há outros números que levam em conta a mágica contábil adotada pelo Governo para escamotear os números reais da dívida pública interna para o País. Há estudos, análises que apontam estar a dívida pública interna brasileira além de R$2,4 trilhões, em razão das transferências internas que devem ser contabilizadas também como dívida pública bruta.

Ao contrário de seu antecessor, que se notabilizou pela retórica triunfalista e superficial, Dilma tem conhecimento e domínio dos temas econômicos. Nos seus cem dias de governo, as questões econômicas e financeiras, algumas aqui apontadas, não foram enfrentadas com a determinação que a sociedade brasileira esperava. Falta coragem política para reformar. Não há uma palavra sequer que sinalize a hipótese da reforma administrativa para reduzir gastos correntes e eliminar estruturas ociosas, superpostas e paralelas.

Não há nenhuma palavra sobre a hipótese do compromisso assumido durante a campanha eleitoral de se realizar uma reforma tributária que ofereça ao País um modelo compatível com as aspirações e modernidades da nossa sociedade.

Enumero algumas das vertentes trincadas: a máquina paquidérmica! A Presidente Dilma enviou ao Legislativo projeto que cria mais um ministério, micro e pequena empresa. O titular terá status, regalias e estrutura funcional de ministro de Estado. Com isto eleva-se o número para quarenta. Recentemente, foi criada por medida provisória a 39ª Pasta, a Secretaria de Aviação Civil.

As superposições e paralelismo das ações de uma estrutura administrativa rigorosamente inchada compromete a gestão governamental de forma irremediável. E não há a coragem política para a necessária reforma administrativa.

Sem reforma administrativa, os gastos continuarão crescentes, comprometendo a capacidade de investir produtivamente do Estado brasileiro. É um crime que se comete contra a economia nacional. É uma afronta contra os produtores e trabalhadores que pagam impostos e vêm os recursos, oriundos dos impostos pagos com sacrifício, vazando pelo ralo da incompetência de gerenciamento que há neste País, com a consagração da ineficiência administrativa.

Tivemos apagões. Embora dissessem “apagão é coisa do passado”, no início de fevereiro, um apagão de cinco horas atingiu oito Estados, deixando milhões de pessoas sem luz no Nordeste. O Governo afirmou que foi apenas uma falta de energia. As causas do apagão teriam sido falta de fiscalização, falta de manutenção e utilização de componentes de baixo custo.

O corte de R$50 bilhões anunciado pelo Governo mostra a contradição com a sua campanha eleitoral, quando destacou a necessidade de ajuste. O corte do Orçamento é uma demonstração de que a Presidente não está cumprindo o compromisso assumido com a população brasileira. Durante a campanha eleitoral, a candidata negou que houvesse motivos para preocupação quanto às contas do Governo, uma vez que o País vinha crescendo e a inflação estava sob controle. Durante a campanha eleitoral, montou-se um cenário ficcional, adotou-se o discurso otimista e o marketing trabalhou o imaginário popular. O País vivia um momento mágico. Agora, nesses cem dias, percebe-se que era uma farsa. O que há são dificuldades que devem ser superadas com a eficiência de gestão que está faltando, pelo menos nos cem dias iniciais.

Minha Casa, Minha Vida. Já disse: o programa, uma das prioridades do Governo, acumula fracassos seguidos. Ele perdeu R$5,1 bilhões e não há nenhuma providência nesses cem dias que sinalize reversão dessa expectativa. Ao contrário. Não se assinou nenhum contrato para atender, com o programa, o trabalhador de baixa renda.

Os concursos públicos. O Ministério comunicou a suspensão, por tempo indeterminado, das autorizações para realização de concurso públicos e de autorização para provimento de cargos públicos no âmbito da Administração Pública direta, autárquica e fundacional. Durante a campanha, a candidata afirmava que pretendia valorizar o funcionalismo e assumiu o compromisso da realização dos concursos públicos. Por outro lado, duas medidas provisórias e um projeto de lei editados no Governo Dilma propõem a criação de 411 cargos comissionados, de livre provimento, para atender aos aliados. São criados cargos comissionados, mas faltam recursos para empossar aqueles que foram aprovados em árduos concursos públicos. Os cargos comissionados significam a continuidade do aparelhamento do Estado, já de forma visceral aparelhado nos últimos oito anos.

Cartões corporativos. O total de pagamentos efetuados com cartões de pagamentos do Governo Federal até o final de março deste ano alcança R$12 milhões. Somente os gastos do gabinete da Presidência somaram R$1,607 milhão. Cerca de 99% dessas despesas aparecem no Portal da Transparência como informações protegidas pelo sigilo. Em 2011, os gastos da Presidência chegaram a média próxima de R$839 mil por mês. Em 2010, a média não ultrapassou R$515 mil, ou seja, houve um aumento nos gastos com cartão corporativo da Presidência próximo a 62%. O discurso é de economia, o discurso é de corte.

O caso Erenice. Por unanimidade, a Comissão de Ética Pública da Presidência da República decidiu aplicar censura ética à ex-Ministra Erenice Guerra pelas acusações de tráfico de influência. Em outras palavras, a impunidade vai prevalecer, muito embora a Controladoria-Geral União tenha divulgado um balanço da auditoria no qual afirma ter encontrado irregularidades graves em contratos firmados pelo Governo Federal com empresas privadas e entidades que teriam sido intermediados com a influência direta da ex-Ministra, inclusive em relação à Anatel.

A complacência é ostensiva. Até mesmo na cerimônia de posse, a ex-Ministra e braço direito da atual Presidente circulava com desenvoltura nos espaços palacianos. Isso é emblemático. Sinaliza que o Governo continuará sendo o da cumplicidade, da leniência, o Governo da complacência em relação aos desvios e à prática da corrupção.

O caso Vale. A intervenção do Governo é uma intervenção indevida com propósitos pouco republicanos. Usar a Vale para indicações política e abrigo de apaniguados – seria esse o objetivo do Governo? A interferência indevida do Governo compromete a imagem do País junto a investidores estrangeiros. Já é observada uma desvalorização considerável das ações da companhia. É a tentativa de expandir o aparelhamento da esfera pública para o setor privado.

Não bastasse o aparelhamento da máquina pública, deseja o Governo o aparelhamento também no setor privado.

Recursos federais, saúde e educação. Falta de fiscalização e transparência na aplicação e transferência de recursos federais na área de saúde e educação. Segundo admitiu o Ministro Chefe da Controladoria-Geral da União, esses setores têm a pior fiscalização. A pior fiscalização exatamente em setores essenciais para a vida dos brasileiros: saúde e educação.

Falhas apontadas já haviam sido alertadas em 2009, mas o Governo não tomou as providências propostas pelo órgão. Mais de R$660 milhões foram desviados, de acordo com investigações da CGU. Investigação que alcançou apenas 2,5% das transferências efetuadas: R$660 milhões de um setor onde há um caos visível no País e que consagra, de forma absoluta, a incompetência do Governo: o setor de saúde pública. Isso nos levou há poucos dias a comparecer a esta tribuna e afirmar que quem rouba dinheiro na área da saúde pública não é apenas ladrão; é também assassino, porque pessoas morrem em razão da escassez alegada de recursos para oferecer-se um adequado serviço de saúde pública aos mais pobres do País.

Essa é a política que o Governo tem adotado. Isso demonstra a certeza da impunidade, a falta de compromisso, o descaso com a destinação e eficiência dos recursos. Por essa razão, vamos anunciar nesta semana a tentativa de instalação de uma CPI na área da saúde pública do País para a apresentação de um diagnóstico da realidade e certamente apresentação de sugestões.

Na Caixa Econômica Federal, no último dia 24 de março, foram anunciadas mudanças no comando que deveriam privilegiar aliados no Planalto. A Folha de S.Paulo noticiou que a entrada de políticos da base aliada na diretoria da Caixa preocupa executivos do setor bancário e até servidores de carreira do Governo Federal, que temem um loteamento político maior na área econômica do Governo e um atraso na expansão do crédito imobiliário brasileiro. A Caixa é detentora do fundo de garantia e responsável por quase 70% do crédito imobiliário do País.

Portanto, o aparelhamento prossegue, o aparelhamento se dá em todas as áreas, inclusive numa área de suscetibilidade e fundamental para o País que é a área financeira. O aparelhamento do Banco do Brasil já é conhecido. O mensalão, o “valerioduto”, buscava em contas do Visa Net, do Banco do Brasil, os recursos para a manutenção de sofisticado e complexo esquema de corrupção. Isso tudo possibilitado pelo aparelhamento que agora avança também na Caixa Econômica Federal.

PAC da senzala. As péssimas condições de trabalho nas obras do PAC resultaram na paralisação de construções. Reportagem do jornal Folha de S.Paulo mostrou que pelo menos cinco grandes obras de infraestrutura do PAC foram interrompidas em razão de protestos de trabalhadores.

O número de operários paralisados nos canteiros é de aproximadamente 80 mil. Manifestações atingiram, inclusive, obras do Minha Casa, Minha Vida, no Maranhão, que pararam durante 9 dias em janeiro. As manifestações e paralisações atingiram as usinas de Jirau e Santo Antônio, em Rondônia; as obras da refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco; a Petroquímica Suape, em Pernambuco; a termelétrica em Pecém, no Ceará; e o Porto de Açu, no Rio de Janeiro.

O SR. ALVARO DIAS (Bloco/PSDB – PR) – Peço a V. Exª mais um tempo para concluir o pronunciamento, já que temos apenas uma oradora presente no plenário para fazer uso da palavra.

O SR. PRESIDENTE (Wilson Santiago. Bloco/PMDB – PB) – V. Exª terá mais três minutos, Senador, se forem suficientes.

O SR. ALVARO DIAS (Bloco/PSDB – PR) – Três minutos é muito pouco, Sr. Presidente. Assisti aqui, na última semana...

O SR. PRESIDENTE (Wilson Santiago. Bloco/PMDB – PB) – Senador Alvaro Dias, pela importância do pronunciamento de V. Exª, V. Exª terá o tempo suficiente para concluir.

O SR. ALVARO DIAS (Bloco/PSDB – PR) – Eu agradeço, Senador Wilson Santiago, porque considero importante registrar nos Anais do Senado Federal, que são os Anais que fundamentam a história. E, nesses cem dias, é preciso que se escreva a história com os números da realidade. Não podemos admitir que a versão que se propale dos primeiros cem dias de Governo seja a versão da ficção. Nós queremos, neste momento, estabelecer o contraponto. Se há aqui uma maioria esmagadora que proclama os feitos do Governo que não conseguimos enxergar, é preciso que a oposição, minoritária, possa ter espaço para registrar, no contraponto próprio da democracia, os números divergentes da realidade.

Dívida pública federal. Sobre ela já me referi.

BNDES. Nos últimos dois anos, o Tesouro fez transferências elevadas de recursos para o BNDES. Foram R$100 bilhões em 2009, e R$104 bilhões em 2010. Agora, em 2011, o Governo edita medida provisória concedendo mais crédito ao BNDES no montante de R$55 bilhões, numa completa contradição com o anunciado corte de %$50 bilhões no Orçamento. Essa estratégia tem impacto relevante sobre a dívida bruta, devido ao custo fiscal do subsídio do Tesouro, e injeta, cada vez mais, liquidez no mercado, por meio do aumento da oferta de crédito.

É uma das mágicas contábeis do Governo para não inflar a dívida pública bruta interna e é a estratégia do favorecimento. Empresários privilegiados são favorecidos com juros subsidiados. Quem paga a conta do subsídio é o povo brasileiro que paga impostos, já que esses recursos são públicos e oriundos do Tesouro Nacional. Isso tudo num momento em que o Banco Central trabalha para frear o aquecimento da atividade econômica.

Um aporte no BNDES com essa magnitude pode anular, no longo prazo, o efeito do corte de gastos anunciado pelo Governo, que, na prática, também não está tendo qualquer efeito, tanto para questão fiscal quanto para o combate à inflação.

Aumento de arrecadação. Aqui se configura o chamado estelionato eleitoral. Na campanha, a promessa foi de redução da carga tributária no País. O que se verifica agora é exatamente o oposto. O Governo editou, no último dia 25 de março, dois decretos que visam a aumentar a arrecadação, com o objetivo de compensar a perda de receita decorrente da medida provisória que corrige a tabela do Imposto de Renda em 4,5%.

IOF e cartão de crédito. O primeiro deles altera de 2,38% para 6,38% o IOF incidente nas compras com cartão de crédito realizadas no exterior. O Governo espera não só arrecadar mais, como também que as pessoas comprem dólares antes de viajar, o que ajudaria a amenizar o desarranjo cambial em que o Governo se emaranhou.

Impostos de bebidas. O segundo Decreto, também com intenção arrecadatória, reajusta o IPI, o PIS/Pasep e a Cofins incidentes sobre refrigerantes, água, cerveja e energéticos. Os impostos sobre esses produtos vão ter um reajuste médio de 15%. A redução da carga tributária é substituída pelo aumento da carga tributária, contrariando as promessas da campanha eleitoral.

IOF sobre empréstimo. O Diário Oficial do dia 29 de março publicou mais uma medida com a intenção de conter a enxurrada de dólares no País e seu efeito na valorização do real. O Governo decidiu cobrar IOF de 6% sobre empréstimos com prazo médio mínimo de até 360 dias. Na última quarta-feira, porém, o Governo editou novo decreto, apertando ainda mais a medida e estendendo a incidência do IOF de 6% aos empréstimos externos com prazos de até 720 dias, assim como para operações de repactuação e assunção de dívidas no exterior por empresas e bancos. Como afirma o economista José Paulo Kupfer, “essa é mais uma volta no torniquete com o qual o Governo tenta estancar a chuva de dólares. Essa história ainda vai longe”.

IOF sobre o crédito. O Governo aumentou em 100% o IOF que incide sobre os empréstimos contraídos por pessoas físicas. A alíquota saltou de 1,5% para 3%. Vale inclusive para o crédito rotativo do cartão de crédito. O objetivo continua sendo de combater a inflação. A providência chegou no dia em que o IBGE divulgou a taxa de inflação do mês de março: 0,79%. No acumulado de doze meses, até março, o índice já alcança 6,30%. Isso sem falar que é mais uma medida que ajudará a aumentar a arrecadação do Governo.

Portanto, o Governo ainda não ousou em apresentar uma proposta para restabelecer a CPMF, mas há aqui mecanismos que substituem a CPMF, jogando no cofre do Governo mais do que com a CPMF ele arrecadava.

A carga tributária terá incentivo para crescer ainda mais com a tributação da água e demais bebidas, além da elevação do IOF, tanto para as compras no exterior com cartões de crédito quanto para empréstimos de prazo inferior a 360 dias.

Juros. Uma fatia considerável dos ingressos de dólares busca aqui o ganho fácil dos juros altamente convidativos. Não custa repetir que o Brasil é o país onde se praticam as mais altas taxas do mundo. Enquanto aqui se paga algo em torno de 6% de juros reais ao ano, a media mundial é de 0,9% negativo.

Medidas cambiais. O excesso de medidas cambiais tem tudo para não surtir qualquer efeito. Elas não devem inibir a entrada de dólares e muito menos frear as compras no exterior. Não devem ter efeito relevante sobre o cambio. A intenção é, realmente, aumentar a arrecadação.

Poupança doméstica. Isso sem considerar que essas medidas podem trazer problemas para um país que é dependente de financiamentos externos e que não consegue gerar poupança doméstica suficiente para atender sua demanda por investimentos. Ao invés de o Brasil aumentar a poupança pública, optou-se por aumentar a dívida pública para tentar controlar o valor da taxa de câmbio, uma política que tem um custo fiscal elevado.

A execução do Orçamento da União nos primeiros três meses do Governo Dilma ainda não reflete a recomendação da equipe econômica de reduzir fortemente os gastos do Executivo com diárias, passagens, locomoção e aquisição de imóveis este ano. De janeiro a março, os gastos com aquisição de imóveis, por exemplo, cresceram 62% em relação ao mesmo período de 2010. Passaram de R$37 milhões para R$61 milhões. Os gastos com passagens e locomoção subiram 10% no período, passando de R$110 milhões para R$121 milhões.

O SR. ALVARO DIAS (Bloco/PSDB – PR) – Sr. Presidente, mais cinco minutos.

Estou pedindo muito menos do que o PT ofereceu ao meu colega Aécio Neves na semana passada. E foi um oferecimento espontâneo do PT, pelo que nós agradecemos. Agora, hoje o PT não está aqui para o debate. Não vejo a presença das Lideranças do Governo e não vejo também o PT presente para comemorar os cem dias do Governo da Presidente Dilma. Mas nós temos uma obrigação. Eu estou excluindo alguns itens do pronunciamento para atender aos apelos de V. Exª de conclusão deste o mais rapidamente possível.

Neste momento, Sr. Presidente, quero abordar uma questão que considero essencial para o País antes de concluir o discurso. Trata-se da corrupção e da impunidade.

O Governo da Presidente Dilma não demonstrou postura combativa à corrupção ao longo dos cem dias de gestão, mantendo a mesma postura de complacência que se consolida como marca indelével do governo petista. A presença de sua ex-auxiliar, Erenice Guerra, na cerimônia de posse, além de um acinte à opinião pública brasileira, demonstrou que o atual Governo banaliza e convive com os envolvidos em desmandos sem qualquer constrangimento.

No episódio das fraudes no Programa Farmácia Popular – apontado o desvio de R$$4 milhões –, o Ministério da Saúde divulgou nota, por meio de sua assessoria, negando que existam fragilidades nos mecanismos de controle do programa.

São as mesmas práticas da Administração anterior: nega o que é visível, o que é ostensivo. Na melhor das hipóteses, de quando em vez, admite-se a existência da corrupção - e, portanto, do crime -, mas não se admite a existência do criminoso, porque a impunidade prevalece sempre.

O exemplo da banalização da corrupção está estampado hoje, nesta segunda-feira, no jornal O Globo:

“Não há, por parte dos órgãos de fiscalização do Governo Federal, o menor controle sobre os mais de R$$7 bilhões que anualmente são repassados pela União a Estados e Municípios pelo Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb)”.

“Ninguém no Governo assume a responsabilidade do controle direto desse volume de recursos, e a falta de fiscalização dá margem a inúmeras irregularidades, que vão desde licitações fraudulentas e apresentação de notas frias até o desvio de dinheiro que deveria pagar os salários dos professores”.

O assalto às verbas da educação se tornaram uma regra, não mais exceção, a ponto de o Procurador Regional da República Fábio Jorge afirmar que “o Fundeb é um dos programas mais fraudados na região Nordeste”.
No tocante ao maior escândalo de corrupção da República, o Mensalão, mesmo diante das novas denúncias, nem mesmo uma nota retórica condenando a prática dos desvios e a promiscuidade estabelecida entre as esferas pública e privada foi emitida.

Com respeito às irregularidades nas concessões de rádios e TVs, empresas abertas em nome de laranjas para fraudar licitações públicas e as últimas denúncias envolvendo a Anatel, o atual Governo admitiu não ter dados oficiais atualizados sobre licitações disponíveis para consulta. Sem dúvida alguma, a constatação presente: o silêncio à sombra da impunidade.

Os fatos econômicos mencionados evidenciam uma herança funesta.

Sr. Presidente, eu repito, para finalizar, que falta coragem política para promover mudanças. Nem uma palavra sobre as principais reformas que possam desatrelar o País de estruturas retrógradas e superadas, que inibem seu processo de crescimento econômico.

A Presidente Dilma reúne todas as condições políticas para reverter a tendência e alçar a Administração Pública à categoria de competente. Em Coimbra, ela claudicou ao aceitar o receituário do antecessor oferecido às autoridades portuguesas: ajudar financeiramente os portugueses e, quiçá, comprar títulos da dívida dos nossos patrícios. Aqui, um exemplo emblemático dessa herança funesta.

Se sua gestão eleger austeridade, transparência e realismo como diretrizes de governança, destacando a responsabilidade como compromisso inarredável, certamente ela atravessará o Rubicão.

Para concluir, devo destacar a ausência do PT e das Lideranças do Governo neste plenário para debater os cem dias do Governo Dilma Rousseff. Por que será não compareceu o PT? Por que será não vieram aqui os Líderes do Governo?

Eu concluo, Sr. Presidente: já foi dito que “quem passa o Rubicão não pode voltar atrás”.

Muito obrigado pela condescendência do tempo.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

João Luiz Mauad: O não-problema da desigualdade de renda

No último dia 26 de março, o programa Manhattan Connection discutiu, num de seus blocos, o “problema” da concentração de renda. Com a exceção costumeira de Diogo Mainardi, foi um festival de abobrinhas, clichês e platitudes, principalmente acerca da distribuição de renda nos Estados Unidos. Para começar, o apresentador informou que, naquele país, os ricos estão cada vez mais ricos (o que é verdade), mas os pobres estão cada vez mais pobres (o que é uma rematada mentira). Depois de desfilar um monte de bobagens - inclusive criticando os americanos por não nutrirem inveja de seus compatriotas mais ricos (assista a partir dos 3:10 min) -, o senhor Caio Blinder encerrou o debate dizendo mais ou menos o seguinte: “Não é que o país esteja virando uma África”. Os EUA estão ficando mais produtivos e mais ricos, como um todo. O problema é que “quem está no topo está ficando cada vez mais rico”, o que, para ele, seria “gritante”, para usar as suas próprias palavras (assista a partir dos 5:20 min).

Para começar, alguém precisa explicar aos participantes do programa que existem dois tipos de pobreza: a pobreza relativa e pobreza absoluta. Pode-se definir a última como a falta de certos bens fundamentais para a sobrevivência digna de um ser humano, como, por exemplo, o consumo mínimo de 1.500 calorias por dia, abrigo para adequado para mantê-lo seco e sem frio, além de roupas apropriadas para o clima. Infelizmente, ainda há muita gente absolutamente pobre nesse mundo. A boa notícia, porém, é que é perfeitamente possível acabar com esse tipo de pobreza. Impossível é abolir a pobreza relativa, já que algumas pessoas sempre serão mais ricas do que outras, até mesmo em países comunistas.

Outro ponto fundamental dessa discussão é que existe um abismo enorme entre a preocupação genuína de alguns com os pobres e a revolta de muitos com a riqueza alheia. Por isso, sempre que alguém lamenta o famigerado gap entre ricos e pobres, pergunto se ele estaria disposto a admitir, de bom grado, que os muitos ricos se tornassem ainda mais ricos, desde que isso significasse uma melhoria substancial das condições de vida dos demais, principalmente dos mais pobres. Quando a resposta é "não", ela equivale à admissão, coberta pelo véu da hipocrisia, de que a verdadeira preocupação do meu interlocutor é com o que os mais ricos possuem, e não realmente com o que falta aos desvalidos. Se, por outro lado, a resposta for "sim", restará demonstrado que o tal gap é irrelevante.

Merece atenção também um dado dessa questão, normalmente encoberto pela frieza das estatísticas: riqueza e padrão de vida são coisas diferentes. Tomando emprestadas as palavras do economista Don Boudreaux, "A riqueza monetária de Bill Gates é cerca de 70.000 vezes maior que a minha. Entretanto, ele não ingere diariamente 70.000 vezes mais calorias do que eu. Também estou certo de que a comida que ele come não é 70.000 vezes mais saborosa do que a minha; que as suas muitas casas não são 70.000 vezes maiores ou melhores que a minha; que seus filhos não são 70.000 vezes mais bem educados que os meus; que ele não pode viajar para a Europa ou a Ásia 70.000 vezes mais rápido ou mais seguro do que eu; que ele não tem 70.000 vezes mais lazer do que eu e que ele não vai viver 70.000 vezes mais do que eu".

De acordo com Laurens Kraus, a maneira convencional de olhar a distribuição de riqueza mudaria muito se excluíssemos os bens de capital da equação. Por exemplo, nos EUA, 1% população é dona de 38% da riqueza (dados de 2001). Porém, tal distribuição mudaria drasticamente se os bens de capital fossem excluídos, pois é provável que 95% da riqueza do 1% mais rico estejam relacionadas à propriedade dos bens de capital. Não por acaso, os níveis de consumo das famílias americanas são muito menos desiguais do que mostram as estatísticas de distribuição de renda. Disso os arautos do igualitarismo não falam, mas quase 100% dos americanos têm acesso a água corrente e esgoto sanitário, telefones, comida farta, aquecimento e televisão. Só não vê quem não quer: hoje em dia, mesmo os indivíduos mais pobres dos Estados Unidos da América vivem melhor do que qualquer um no século 18. Afinal, não é isso que interessa em qualquer sociedade que se preza?

Não há como deixar de destacar ainda que a existência dos muito ricos, longe de ser algo a lamentar, é altamente benéfica para os mais pobres. A menos que nós estejamos falando de ladrões ou rent-seekers, a riqueza pessoal indica que alguém obteve lucros e/ou investiu recursos em empreendimentos rentáveis. Os lucros sinalizam a criação de valor, ou seja, que os recursos disponíveis foram bem utilizados, produzindo bens que são desejáveis para muitos. Pessoas ricas, em geral, criam um monte de valor para um monte de gente, além, é claro, de um monte de empregos. A ausência de pessoas ricas, na verdade, é um péssimo sinal para qualquer sociedade.

Ademais, a desigualdade de renda é um efeito. Sua causa é a diferença de produtividade das pessoas. Criticar a concentração de renda é como reclamar que um quilo de filé mignon vale mais que um quilo de acém. O preço reflete o valor de mercado de um objeto - e o rendimento de cada um reflete o valor de mercado do seu trabalho. Não há uma cesta fixa, pré-existente, de rendimentos que, de alguma forma injusta, escorre para os bolsos dos ricos em detrimento dos pobres. Numa economia capitalista, a maior parte da riqueza é criada, multiplicada e trocada de forma voluntária pelas pessoas.

Graças ao capitalismo, nos últimos 250 anos houve um aumento exponencial do padrão de bem-estar no mundo e, consequentemente, uma redução espetacular dos níveis de pobreza global absoluta. Só para se ter uma ideia desse milagre, em 1820, 85% da população mundial vivia com menos de um dólar por dia (a preços de hoje). Em 1950, essa proporção havia caído para 50%. Atualmente, são 20%. Em 1900, a expectativa média de vida nos países subdesenvolvidos era de apenas 30 anos. Em 1960, esse índice saltou para 46 anos. Em 1998, já era de 65 anos.

Desigualdade de renda, portanto, só é algo injusto quando o status de alguém é medido não pelo que ele tem, mas pelo que os outros têm. Infelizmente, esse é o padrão dos igualitaristas, como Caio Blinder e muitos outros, que sonham com uma inalcançável uniformidade da renda, independentemente da capacidade de cada um em gerar bens e serviços de valor para os demais. É o padrão da inveja, que denota um grande rancor pelo simples motivo de que alguns têm mais, de qualquer coisa, do que a maioria.

Proibir um Bill Gates de ser fabulosamente rico, de fato, reduz a desigualdade de renda, mas não faz mais ricos os pobres. No entanto, é isso que desejam os igualitários. Eles são motivados por aquilo que Ayn Rand chamou de "ódio dos bons": se lhes falta alguma coisa de valor, eles querem ter certeza de que ninguém mais a terá.