As gravações inéditas da reunião do Conselho de Segurança
Nacional que promulgou o ato contam a história do decreto que pôs o Brasil na
escuridão
Há dias que se transformam em marcos na cabeça das gerações
que os vivem. Nos Estados Unidos é comum as pessoas lembrarem onde estavam em
22 de novembro de 1963, quando o presidente John Kennedy foi assassinado. Os
portugueses transformaram o 25 de abril de 1974, a data da Revolução dos
Cravos, em substantivo próprio. Na História recente do Brasil, o 13 de dezembro
de 1968 é um desses dias que abraçam o mundo e um sentimento. Naquela data, o
governo militar do presidente Arthur da Costa e Silva decretou o AI-5 - o ato
institucional que deu plenos poderes ao chefe de Estado, pôs o Congresso
Nacional em recesso, suspendeu o recurso jurídico de habeas-corpus e iniciou
uma infindável leva de cassações políticas. O dia do AI-5 trouxe a treva ao
Brasil. A partir dele, e durante dez anos, os militares mandaram no país com
mão de ferro.
O AI-5 foi o instrumento responsável por tirar de cena uma
geração inteira de políticos, estabeleceu a censura e permitiu que a tortura
fosse usada como arma de combate àqueles que lutavam contra o regime das
fardas. Na definição do presidente Fernando Henrique Cardoso, foi uma noite
escura: "Foi uma noite escura porque houve repressão, censura e violência
de todo tipo, o que gerou o terrorismo e uma série de movimentos que tinham o objetivo
de mudar o regime autoritário mas que acabaram contribuindo, de alguma maneira,
para o contrário e foram esmagados violentamente, também por tortura e
morte".
Época teve acesso, com exclusividade, à íntegra das
gravações da sessão do Conselho de Segurança Nacional que, naquela tarde de 13
de dezembro de 1968, no Palácio Laranjeiras, no Rio de Janeiro, apagou a luz no
Brasil. Não se trata de grampo. É uma gravação legítima, aberta, feita por dois
aparelhos colocados na mesa de mogno à frente de Costa e Silva cujos microfones
circularam, de mão em mão, entre os 23 ministros. No livro 1968, O Ano que Não
Terminou, de 1988, o jornalista Zuenir Ventura já tinha relatado momentos
daquela reunião histórica. Pela primeira vez, agora, ela aparece em sua totalidade.
Nas páginas seguintes, nos quadros em verde, nas laterais, selecionamos os
principais trechos do voto dos ministros. Na Internet (www.epoca.com.br), estão
os pareceres completos e longas porções em áudio. É um documento impressionante
pelo ambiente tenso (há ruídos de sirene ao longo da reunião) e pelo contéudo.
Era o governo impondo, na marra, os rumos do país.
Nem todos os 24 homens sentados na biblioteca do Palácio das
Laranjeiras, no segundo andar do edifício, falavam a mesma língua. Os militares
queriam o AI-5 para calar a subversão à força. "Se não tomarmos neste
momento esta medida que está sendo aventada, amanhã vamos apanhar na
cara", disse o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, Orlando Geisel.
Para os ministros civis, tratava-se de uma decisão constrangedora mas
inevitável. Tornou-se célebre o trecho que vazou do depoimento do ministro do
Trabalho, Jarbas Passarinho, coronel da reserva, para quem a decisão era
"...ditatorial, mas às favas, senhor presidente, todos os escrúpulos de consciência".
O então ministro da Fazenda, Delfim Netto, disse o seguinte: "Estou
plenamente de acordo com a proposição, mas diria mesmo que creio que ela não é
suficiente. Eu acredito que deveríamos dar ao presidente da República a
possibilidade de realizar certas mudanças constitucionais que são absolutamente
necessárias...", afirmou.
O próprio Delfim explica, hoje, o que pretendia ao dizer que
a medida não era suficiente. Por que não era suficiente? "Queria fazer do
limão uma limonada, aproveitar o AI-5 para incluir nele emendas que permitissem
reformas tributárias vitais para o país, como a do ICMS", diz ele, hoje
deputado federal pelo PPB. O único voto contrário ao AI-5 foi o do
vice-presidente Pedro Aleixo, que preferia o estado de sítio. Ao chegar em
casa, na noite da reunião, ele disse à mulher: "Hoje fechei
definitivamente as portas do Palácio do Planalto para mim". Tinha razão.
Em agosto de 1969, com a doença de Costa e Silva e seu afastamento do poder, os
três ministros militares não deixaram que Aleixo assumisse o comando do país.
Era o AI-5 gerando outra vítima. Acompanhe, a seguir, o dramático desenrolar do
dia 13 de dezembro de 1968, uma sexta-feira quente, no relato dos homens que o
fizeram - de um lado e do outro da sociedade brasileira. Depois daquele dia, o
país nunca mais seria o mesmo.
A voz e o dono da voz
Alberto Curi, locutor oficial da Voz do Brasil, decidira
aproveitar a sexta-feira 13 para limpar o galinheiro do quintal de sua casa, no
bairro de Jacarepaguá, no Rio de Janeiro. Às 17 horas, um carro da Presidência
da República estacionou em frente à residência. "O presidente mandou
chamar o senhor", disse o ajudante-de-ordens. "Mas o que está
acontecendo?", perguntou Curi. "Não sei, mas o próprio presidente
Costa e Silva pediu para levá-lo ao palácio." O locutor tomou banho, fez a
barba, pôs terno e gravata e somente depois do asseio dirigiu-se ao Palácio
Laranjeiras. Chegou ali ao redor de 18h30. Enquanto esperava, lhe ofereceram
bife a cavalo com fritas. O presidente mandou convocá-lo ao gabinete, no andar
superior do palácio, apenas às 21h45. Era a primeira vez que o locutor oficial
e o chefe de Estado se encontravam pessoalmente. "O senhor parece mais
jovem do que na televisão", disse Costa e Silva, habituado a acompanhar
Curi pelos anúncios oficiais, na telinha em preto-e-branco, e também pela Voz
do Brasil e pela leitura do Diário de um Repórter, de David Nasser, ambos no
rádio (Curi, a rigor, servia a dois amos - às 7 e meia da noite dava as
notícias do governo para, logo em seguida, aparecer interpretando as violentas
críticas de Nasser, um jornalista que se aperfeiçoara em soltar disparos contra
o regime militar).
Costa e Silva fez o comentário sobre a boa aparência de
Alberto Curi, abriu uma pasta e lhe entregou 18 laudas batidas a máquina, em
tipologia maior que a normal, com anotações a lápis nas laterais. Era o Ato no
5. "Presidente, posso me preparar? Gostaria de lê-lo antes", pediu
Curi. "Não, senhor, não temos tempo - as câmeras de TV e os microfones das
rádios já estão a postos, vamos entrar ao vivo em cadeia nacional." Curi
foi imediatamente levado ao Grande Salão de Visitas, no andar térreo do Palácio
Laranjeiras. Ali o colocaram atrás de uma mesa de mármore. Às suas costas,
pontificava uma tela a óleo de Luís XIV, pintada pelo francês Hyacinthe Rigaud.
Eram 10 da noite quando o ministro da Justiça, Luiz Antonio Gama e Silva,
chegou à sala e sentou-se ao lado do locutor. O AI-5 seria finalmente anunciado
ao país inteiro. Gama e Silva fez uma rápida introdução de 5 minutos e passou a
palavra a Alberto Curi. Foram, então, 18 minutos sem um único erro, em tom
monocórdio e solene. Sem "boa-noite". À frente da mesa, na outra
ponta do salão amparado por colunas de ônix claro, estava o ministério inteiro,
em pé - os ministros militares à frente. "Os olhares me fuzilavam, a
tensão naquela sala era imensa", disse Curi a Época há um mês, dez dias
antes de morrer de infarto, aos 72 anos. Era a primeira vez, em 30 anos, que
ele voltava ao Salão de onde o Brasil viu e ouviu o Ato Institucional no 5.
"Enquanto lia, tomava conhecimento das medidas - no início, quando estava
nos 'considerando', achei normal, sereno. Quando começei a ler o ato
propriamente dito, com os 'decido', é que me dei conta do que se anunciava. Mas
não podia gaguejar. Ali eu era apenas uma voz com salário mensal de 300
cruzeiros. O dono da voz era o presidente da República."
"Um mar de milicos na pista do Galeão"
A voz encerrou a leitura do ato às 22h30. Não muito longe
das Laranjeiras, num apartamento da Rua Assis Brasil, 36, em Copacabana, o
deputado federal Raphael de Almeida Magalhães, da Arena, interrompia um jantar
para acompanhar pelo rádio o decreto do governo. Raphael festejaria 37 anos do
dia seguinte e aproveitara para reunir alguns amigos ao redor da mesa. Estavam
com ele na sexta-feira à noite seis pessoas - entre elas a economista Maria da
Conceição Tavares. Minutos depois do pronunciamento, tocou o telefone. Era o
então deputado Renato Archer. "Você vai ser preso, Raphael", anunciou
Archer. Ele mal havia colocado o fone negro no gancho quando ligaram o
ex-governador do Rio de Janeiro Carlos Lacerda e o deputado da Arena Daniel
Krieger. Ambos com a mesma informação. Estavam todos certos. A campainha do
apartamento tocou às 23 horas. O próprio Raphael abriu a porta e deu de cara
com dois agentes do Dops do Rio de Janeiro. "Estamos aqui com uma ordem do
I Exército. O senhor deve se apresentar na Polícia Central", disse um dos
delegados. O outro policial chegou a pedir desculpas pelo transtorno (Raphael tinha
sido secretário de Segurança Pública no governo de Carlos Lacerda e por isso
era bem-quisto na polícia). O deputado pegou uma pequena valise e, diante do
olhar dos amigos, disse que estava pronto para acompanhar a turma do Dops.
"Mas o senhor vai levar só isso?", perguntou um dos agentes. "É
que não pretendo ficar muito tempo preso", respondeu Raphael (ele ficaria
cinco dias detido na Vila Militar, no bairro de Realengo).
Raphael de Almeida Magalhães tinha deixado a vice-liderança
da Arena, o partido governista, no início do ano. Durante os três meses de
crise entre o discurso de Márcio Moreira Alves que ofendera as Forças Armadas,
em setembro, e a votação da véspera, em que o governo perdera por 216 votos
contra 141, na qual se recusou a licença para processar Márcio Alves, Raphael
liderara a manobra da Arena contra o próprio governo. Por isso ele foi um dos
primeiros nomes da lista de prisões preparada pelo chefe do Gabinete Militar de
Costa e Silva, o coronel Jayme Portella - os outros eram os deputados David
Lerer e Hermano Alves, ambos do MDB, o ex-presidente Juscelino Kubitschek e
Carlos Lacerda. Na Vila Militar, Raphael dormiu sozinho, em meio a um mar de
beliches. Na manhã seguinte, dia de seu aniversário, foi procurado por um dos
soldados que se preparavam para o campeonato de futebol de salão do quartel.
"O senhor gostaria de jogar no nosso time?" Raphael era excelente
jogador de futebol, e essa fama corria o Rio de Janeiro. Ele aceitou o convite,
entrou em campo e fez um dos gols antes de se contundir e sair da quadra.
No dia 12 de dezembro, ele desembarcara no Rio de Janeiro a
bordo de um avião Caravelle, num vôo da Cruzeiro do Sul, proveniente de
Brasília. Deixara a capital no fim da tarde, logo depois da votação do
Congresso, que decidira não permitir a licença para Márcio Moreira Alves ser
processado por seus pares. Naquela ocasião, o Congresso trabalhava ao ritmo
desse vôo da Cruzeiro do Sul - fazia Rio-Brasília às terças e retornava às
quintas. O líder da Arena rebelde entrou no vôo com Renato Archer, Daniel Krieger,
Ney Braga e Teotônio Vilela. Subiram a escada e, logo na primeira fileira,
deram com o ministro da Justiça, Gama e Silva, e com o coronel Sizeno Sarmento,
comandante do I Exército. Estavam os dois com o semblante fechado. Gama e Silva
já levava em sua pasta o rascunho de uma versão do AI-5. "Quando a porta
do avião se abriu, havia um mar de milicos esperando o Gama e o Sizeno na pista
do Galeão", lembra Raphael de Almeida Magalhães. "Tivemos certeza,
naquele fim de tarde do dia 12, que o governo se irritara profundamente com o
desfecho do episódio Márcio Moreira Alves - e que alguma reação estava sendo
preparada."
Em cima da jabuticabeira
Márcio Moreira Alves não esperou a reação do governo - na
verdade, nem esperou o fim da votação na Câmara dos Deputados, em Brasília. Na
manhã de 12 de dezembro ele pronunciara seu derradeiro discurso, escrito a
quatro mãos com o jurista Oscar Pedroso Horta, em que defendia seu mandato e a
honra do Parlamento. À tarde, ao fim da sessão, os deputados vitoriosos (entre
eles 76 da Arena) começaram a entoar o Hino Nacional. Nas últimas estrofes,
Márcio Moreira Alves já corria pelos corredores do Congresso em companhia do
deputado Martins Rodrigues, também do MDB. Os dois foram até o aeroporto de
Brasília. Ali, ele tomou um monomotor e seguiu para Ribeirão Preto, no interior
do estado de São Paulo. "Naquele momento, era questão de vida ou
morte", diz. "Sabia que, tendo sido escolhido como bode expiatório
pelo regime, seria uma das primeiras vítimas dele." O último político a deixar
a Câmara dos Deputados, naquele dia 12, foi o então líder do MDB, Mário Covas,
que deixou o prédio apenas depois de rasgar e atear fogo aos documentos que
tinha na gaveta.
De Ribeirão Preto, Márcio Moreira Alves foi levado num Fusca
68 para uma fazenda em Campinas, de propriedade do conselheiro Antônio Prado,
com quem tinha parentesco distante. Na manhã de 13 de dezembro, Márcio Moreira
Alves foi resgatado na fazenda pelo deputado Francisco Amaral. É o próprio
Moreira Alves quem descreve a cena em seu livro 68 Mudou o Mundo, publicado em
1993: "Encontrou-me trepado em uma jabuticabeira na beira da piscina,
tranqüilo, na certeza de que os entrelaçamentos das relações de parentesco da
classe dominante brasileira, que eu aproveitara, eram impenetrável mistério
para a polícia política". Márcio Alves assistiu à apresentação do AI-5, na
voz de Alberto Curi, num televisor na casa de Francisco Amaral, tomando cerveja
quente e comendo sanduíche.
Terminado o anúncio, virou-se para Amaral e disse: "É,
não dá mais". Imediatamente Amaral telefonou para um amigo dentista
militante do MDB, já falecido (José Roberto Teixeira, ex-prefeito de Campinas),
e pediu ajuda. Teixeira, conhecido como Grama, tinha uma garçonnière no centro
da cidade - Márcio Moreira Alves permaneceu ali uma semana e depois fugiu para
o exílio. Retornaria ao Brasil, já como jornalista (hoje escreve para O Globo),
apenas em setembro de 1979.
"Hoje eu quero a pressão alta"
Enquanto Márcio Moreira Alves descia da jabuticabeira, no
Palácio Laranjeiras o presidente Costa e Silva recebia o chefe do Serviço
Nacional de Informações (SNI), Emílio Garrastazu Médici. "O senhor não
caiu durante a noite porque é o senhor, outro no seu lugar teria caído",
disse Médici. Às 11 horas, vindo de uma cerimônia na Escola Naval, Costa e
Silva convocou uma reunião com Augusto Radmaker, ministro da Marinha, Lyra
Tavares, ministro do Exército, Márcio de Mello e Souza, ministro da
Aeronáutica, Médici, chefe do SNI, Jayme Portella, chefe da Casa Militar, e
Rondon Pacheco, chefe da Casa Civil. O ministro da Justiça, Gama e Silva,
também chamado para essa reunião, chegou com atraso de 15 minutos. Entrou no
gabinete do presidente da República esbaforido. Costa e Silva brincou com a
demora de Gama e Silva e pediu que ele apresentasse sua sugestão para o ato que
se preparava. Gama e Silva leu o esboço do texto que havia preparado. Lyra
Tavares argumentou: "Assim você desarruma a casa toda". Ato contínuo,
Costa e Silva pediu a cada uma das pessoas naquela sala a sua opinião sobre o
que Gama e Silva acabara de ler. Por 3 votos a 2 (Radmaker e Márcio Mello
aceitaram o projeto de Gama), o documento do ministro da Justiça foi rechaçado.
O presidente solicitou a seu chefe da Casa Civil, Rondon Pacheco, que ajudasse
Gama e Silva a preparar uma segunda versão - a definitiva.
O que havia na primeira versão do ato, chamada por Gama e
Silva de "ato adicional 2", que desarrumava a casa toda? É Rondon
Pacheco, hoje aposentado, quem diz: "Gama e Silva inspirou-se num ato
semelhante que existira na Argentina - ele propunha a dissolução do Congresso,
a intervenção direta em todos os estados e o recesso do Supremo Tribunal
Federal - era inaceitável". O AI-5 em sua versão final impunha o recesso
do Congresso (não sua dissolução) e, ainda que suspendesse o habeas-corpus,
mantinha em funcionamento o Supremo Tribunal Federal (mesmo que, na prática,
ele tenha se tornado inútil). Às 13 horas, terminada a reunião, Gama e Silva
juntou-se a Rondon Pacheco numa das salas do Palácio Laranjeiras para rascunhar
o AI-5. "Lembro-me de que o Gama e Silva atendia a inúmeros telefonemas
com sugestões de emendas ao ato", diz Rondon Pacheco. "Eram
telefonemas da área militar." O chefe da Casa Civil sugeriu que, no texto
do ato, se colocasse o prazo determinado de um ano para sua vigência. A
sugestão não foi acatada e se decidiu que ela seria discutida na reunião do
Conselho de Segurança Nacional convocada para as 17 horas na biblioteca em
estilo Luís XVI no pavimento superior.
Pouco antes, segundo relato de Jayme Portella, chefe da Casa
Militar de Costa e Silva, o capitão Elcio Simões, médico particular do chefe de
Estado, informou que o presidente estava com a pressão muito alta e que
precisava ser medicado. Costa e Silva disse, brincando: "Não quero remédios
para a pressão, hoje preciso dela bem alta". E foi ouvir música clássica e
terminar as palavras cruzadas, dois de seus hábitos, até o início da reunião do
AI-5.
A fuga do Opala preto
No exato instante em que Costa e Silva abria a reunião,
tendo o cuidado de colocar dois gravadores em cima da mesa de mogno, o AI-5,
que oficialmente não existia, já tinha feito sua primeira vítima. O jornalista
Rogério Monteiro, militante do Partido Comunista Brasileiro, assessorava os
deputados estaduais Fabiano Vilanova e Alberto Rajão, ambos do Partidão, na
ilegalidade, mas eleitos pelo MDB do Rio de Janeiro. Às 14h30 Monteiro
participaria de uma reunião na casa da deputada Yara Vargas, em Copacabana,
numa tentativa de convocar a Assembléia Legislativa extraordinariamente, já que
a casa estava em recesso de fim de ano. Ao meio-dia, Rogério Monteiro desceu as
escadarias da Assembléia Legislativa com o general Olympio Mourão Filho, que
rompera com a revolução de 1964 e tornara-se célebre com a frase "Em
matéria de política, sou uma vaca fardada". Mourão seguiu em direção à
Biblioteca Nacional. Monteiro foi para o lado do Teatro Municipal.
Na calçada da Rua 13 de Maio, ao lado do teatro, alguém
chamou o jornalista - Rogério Monteiro fingiu não ouvir e continuou a caminhar.
Dois agentes da polícia correram em sua direção. Exigiram que ele entrasse num
Opala preto. "Naquele instante imaginei: não posso entrar nesse carro. Já
que a prisão é inevitável, vou provocá-la na frente da Assembléia
Legislativa", lembra Monteiro. "Corri, comecei a gritar, falava meu
nome em voz alta. Todo mundo que estava por perto ouviu. Garanti minha
sobrevivência." Ele foi levado para o quartel Caetano de Farias, onde
permaneceu até as 23h30. Dali, foi transferido para as instalações do Dops. No
fim da noite, chegou à sua cela o também jornalista Oswaldo Peralva, diretor de
redação do Correio da Manhã. "Peralva, que prazer!", disse Monteiro.
Peralva irritou-se com o comentário até que Monteiro pudesse explicar o que
significava o "que prazer". "Era o prazer de saber que tinha
alguém para conversar na prisão, um fraternal amigo." Depois de Peralva
chegaram o jornalista Hélio Fernandes e Carlos Lacerda. No dia seguinte, à
noite, seria a vez de o ator Mário Lago ingressar no Caetano de Farias.
O abraço de Mário Lago e Lacerda
Mário Lago chegou à cadeia ainda maquiado e com a calça de
veludo de um de seus personagens. No sábado 14, seria a estréia da peça
Inspetor, Venha Correndo no Teatro Princesa Isabel, em Copacabana. Era uma
comédia em que Lago fazia o papel do inspetor. Não um, mas dois inspetores
foram buscá-lo no teatro antes do início do espetáculo. Mário Lago atravessou a
platéia, atônita, ao lado dos agentes policiais. Um deles era o censor que, na
véspera, assistira ao ensaio final para a censura. Ao chegar em casa, depois da
sessão para os censores, Mário Lago escutou ao lado da mulher, na TV, o anúncio
do AI-5. Comentou: "O caldo ferveu, vem chumbo grosso por aí". Na
manhã seguinte, ela o aconselhou a pedir o cancelamento do espetáculo alegando
não estar se sentindo bem. Lago não quis. Ao chegar ao quartel Caetano de
Farias, ele foi informado de que ali já se encontrava o ex-governador Carlos
Lacerda, seu inimigo há décadas. "Não falo com ele", disse Lago. Lá
dentro, na cela, Lacerda fazia a mesma promessa. "Não falo com ele."
Os dois trataram de descumprir a promessa vã. Ao se encontrarem, o que sobrou
foi um fraternal abraço e um comentário de Carlos Lacerda: "Estamos no
mesmo barco agora".
O dia dos cegos
No mesmo barco estava a redação do Jornal do Brasil, na Avenida
Rio Branco, 110. Às 22 horas, o editor-chefe do jornal, Alberto Dines,
reunira-se com alguns de seus editores mais próximos para ouvir o AI-5 no
alto-falante sintonizado na Rádio Jornal do Brasil. Ao final do anúncio, Dines
saiu da sala, uma das únicas da redação com ar-condicionado, e subiu para falar
com o dono do jornal, Manoel Francisco Nascimento Brito. "Vem censura aí,
e não será por poucos dias. Quero a autorização do senhor para alertar nossos
leitores de que estaremos sob censura", disse Dines. Nascimento Brito
limitou-se a responder: "Vá em frente, mas não quero bagunça". Quando
retornou à redação, já próximo das 23 horas, Dines foi recepcionado por dois
majores do Exército que ali estavam como censores. Os dois majores terminariam
a madrugada de 13 para 14 de dezembro humilhados por uma das mais inventivas
primeiras páginas da história do jornalismo no Brasil - foram driblados por
Alberto Dines como Garrincha entortava um joão qualquer. No canto superior
direito lia-se o seguinte: "Ontem foi o Dia dos Cegos". No canto
superior esquerdo, tradicional espaço da previsão do tempo, o leitor era
apresentado à seguinte situação climática: "Tempo negro. Temperatura
sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes ventos.
Máx.: 38 graus, em Brasília. Mín.: 5 graus, nas Laranjeiras".
Na manhã do dia 14 já não eram dois - e sim sete - os
censores do Jornal do Brasil. O chefe deles, um major gaúcho, entrou na redação
gritando: "Você me fez de palhaço". Dines gritou mais alto: "O
senhor saia da minha sala, comporte-se". Outro major ainda tentou pedir
calma. No domingo 15 o Jornal do Brasil não circulou porque um de seus
diretores, o diplomata José Sette Câmara, tinha sido procurado pela polícia - e
Nascimento Brito anunciara tirar o jornal de circulação caso isso acontecesse.
Alberto Dines seria preso no dia 22 de dezembro.
A resistência na mesa do bar
O dia 13 de dezembro de 1968 não era mesmo um bom dia para
festa. Mas houve, sim, quem tenha insistido em fazê-la. Naquela noite amarga,
de gatos pardos, foi fundado o Bar Bip-bip, em Copacabana, no Rio de Janeiro,
hoje reduto do melhor chorinho da cidade. Uma placa à entrada do bar informa:
"Bip-bip, fundado em 13-12-1968 em homenagem à Mocidade Brasileira".
O atual proprietário do botequim, Alfredo Melo, anos depois cruzaria sua vida
com a do bar e a do AI-5. Em 13 de dezembro de 30 anos atrás, Melo preparava-se
para estar na inauguração do recinto como mero freqüentador. Ao ouvir no rádio
o anúncio do Ato Institucional no 5, logo intuiu que não era boa idéia ir ao
rega-bofe. Pegou um táxi e foi para Bangu, bairro onde moravam seus pais e ele
mesmo passara toda a vida até alugar um apartamento em Copacabana. Em Bangu,
acionou o Fusca azul que costumava ficar parado na garagem e iniciou um
périplo: foi à casa dos amigos que, naquele ano de 1968, se meteram em política
e eram potenciais vítimas do AI-5. Um de seus amigos, assustado, chegou a
rasgar uma carta que o poeta Carlos Drummond de Andrade enviara celebrando a
criação de um centro acadêmico com seu nome. Em 1998 será a primeira vez que o
Bip-bip de Alfredo Melo comemorará sua inauguração no dia 13, cravado.
"Não festejávamos de raiva - era uma espécie de resistência
silenciosa."
O placar: 22 a 1
O voto de cada ministro nas anotações de Costa e Silva.
Apenas Pedro Aleixo disse não
1. Vice-presidente
(Pedro Aleixo): não; optou pelo estado de sítio
2. Ministro da
Marinha (Augusto Radmaker): sim, repressão do ato praticado pelo dep. M.M.
Alves
3. Ministro do
Exército (Lyra Tavares): sim
4. Min. Rel.
Ext. (Magalhães Pinto): sim
5. Min. da
Fazenda (Delfim Netto): sim
6. Min.
Transportes (Mário Andreazza): sim
7. Min.
Agricultura (Ivo Arzua): sim
8. Min.
Trabalho (Jarbas Passarinho): sim
9. Min. Saúde
(Leonel Miranda): sim
10. Min.
Aeronáutica (Márcio de Souza e Mello): sim
11. Min. Educ. e
Cultura (Tarso Dutra): sim, com modificação
12. Min. Minas e
Energia (Costa Cavalcante): sim
13. Min. Interior
(Afonso Albuquerque): sim
14. Min.
Planejamento (Hélio Beltrão): sim
15. Min.
Comunicações (Carlos Simas): sim
16. Chefe SNI
(Médici): sim
17. Chefe EMFA
(Orlando Geisel): sim
18. Chefe E.M.
Armada (Adalberto de Barros Nunes): sim
19. Chefe E.M.
Exército (Adalberto dos Santos): sim
20. Chefe E.M.
Aeronáutica (Carlos Alberto Huet): sim
21. Min. Justiça
(Gama e Silva): sim
22. Chefe Gab.
Civil (Rondon Pacheco): sim
23. Chefe Gab.
Militar (Jayme Portella): sim
A HERANÇA DAS TREVAS
A contabilidade dos dez anos de vigência do AI-5
Filmes proibidos -
500
Peças de teatro vetadas -
450
Livros censurados -
200
Revistas retiradas de circulação - 100
Letras de música cortadas -
50
Capítulos de novela cancelados - 12
Direitos políticos perdidos -
66
Cassações de mandatos -
313
Aposentadorias compulsórias -
348
Militares reformados -
139
Demissões de executivos do governo - 129
Fonte: Iuperj/Zuenir Ventura (1968 - O Ano que Não Terminou)
Os trechos mais fortes do Ato Institucional no 5
Uma seleção do que valeu no Brasil entre 13 de dezembro de
1968 e 31 de dezembro de 1978
Art. 2o - O presidente da República poderá decretar o
recesso do Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas e das Câmaras de
Vereadores, por ato complementar, em estado de sítio ou fora dele...
Art. 3o - O presidente da República, no interesse nacional,
poderá decretar a intervenção nos estados e municípios, sem as limitações
previstas na Constituição.
Art. 5o - A suspensão dos direitos políticos, com base neste
ato, importa simultaneamente em:
I - cessação de
privilégio de foro por prerrogativa de função;
II - suspensão do
direito de votar e de ser votado nas eleições sindicais;
III - proibição
de atividades ou manifestações sobre assunto de natureza política;
IV - aplicação,
quando necessário, das seguintes medidas de segurança:
a)
liberdade vigiada;
b)
proibição de freqüentar determinados lugares;
c)
domicílio determinado.
Art. 6o - O presidente da República poderá, mediante
decreto, demitir, remover, aposentar ou pôr em disponibilidade quaisquer
titulares das garantias referidas neste artigo...
Art. 10o - Fica suspensa a garantia de habeas-corpus, nos
casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e
social.
A carta inacabada de Passarinho
Minha mulher,
Meu filho Júnior 13
dez. 1968
"Estou sentado à mesa do Conselho de Segurança
decidindo o presente e o futuro imediato do Brasil.
Vocês sempre me viram defender a liberdade e a democracia.
Hoje, pode parecer a ambos que estou passando à História brasileira como um
liberticida, apoiando poderes ditatoriais conferidos, neste instante, ao senhor
presidente da República.
Vou referendar o novo ato institucional. No meu entender,
isso equivale a uma ditadura, ao menos em potencial.
Felizmente, o fiador de tudo será o marechal Costa e Silva,
que não usará abusivamente dos poderes que lhe damos neste momento. Deus assim
o permitirá.
Por outro lado, não são os artigos de uma Constituição que
garantem uma democracia. Na Rússia, o direito ao livre expressar do pensamento
é letra da Constituição. No entanto, é letra morta. De que vale..."
O que se disse no palácio
Quantas vezes foram citadas algumas palavras na reunião do
conselho
Revolução (de 1964) -
47
Ordem - 36
Subversão - 13
Ditadura - 13
Estado de sítio - 13
Repressão - 6
Democracia - 6
Contra-revolução -
6
Desagregação - 3
Moral - 3
Liberdade - 3
Desordem - 2
Escrúpulo(s) - 2
Caos - 1
Corrupção - 1
Censura - 0
Tortura - 0
Quatro anos de confronto
A escalada política de 1964 a 1968
1964
31 de março
A revolução depõe João Goulart. Castello Branco é o primeiro
presidente do regime militar.
1966
25 de junho
Três atentados são cometidos pela direita em Pernambuco. Um
dos alvos é o Aeroporto dos Guararapes.
19 de novembro
Juscelino Kubitschek e Carlos Lacerda lançam a Declaração de
Lisboa, o primeiro manifesto da Frente Ampla, de oposição ao governo.
1967
15 de março
Arthur da Costa e Silva é empossado na Presidência da
República. Seu vice é o deputado Pedro Aleixo.
24 de setembro
Carlos Lacerda e João Goulart assinam o Acordo de
Montevidéu, que defendia a volta do país ao regime democrático.
1968
28 de março
O estudante Edson Luis é morto no restaurante Calabouço, no
Rio de Janeiro.
21 de junho
Quatro mortos, 58 feridos e mil presos numa manifestação
estudantil, no centro do Rio. É a sexta-feira sangrenta.
26 de junho
Passeata dos 100 mil, no Rio.
29 de agosto
A polícia invade a Universidade de Brasília.
2 de setembro
O deputado Márcio Moreira Alves faz um discurso criticando a
invasão da UnB. O governo usaria esse pronunciamento como pretexto para o AI-5.
3 de outubro
Um estudante morre no confronto entre a direita do Mackenzie
e a esquerda da Faculdade de Filosofia, em São Paulo.
12 de outubro
Cai o Congresso da UNE, em Ibiúna.
Charles Chandler, capitão americano, acusado de pertencer à
CIA, é assassinado numa ação da VPR.
12 de dezembro
Por 216 votos contra 141, a Câmara rejeita o pedido de
licença para processar Márcio Moreira Alves.
13 de dezembro
AI-5
"Eu vi gente torturada"
Um depoimento exclusivo do presidente Fernando Henrique
sobre o AI-5
No dia 13 de dezembro de 1968, eu estava em São Paulo quando
ouvi, pelo rádio, a voz desagradável do ministro da Justiça, Gama e Silva, que
havia sido meu colega no Conselho Universitário da USP, a ler os artigos do Ato
Institucional no 5. Ele lia esbravejando e isso me dava uma reação muito
estranha porque eu o conhecera bem. Nunca o tive como um bravo.
Daí por diante, foi uma noite escura. Foi uma noite escura
porque houve repressão, censura e violências de todo tipo, o que gerou o
terrorismo e uma série de movimentos que tinham o objetivo de mudar o regime
autoritário mas que acabaram contribuindo, de alguma maneira, para o contrário
e foram esmagados violentamente, também por tortura e morte.
Antes disso, eu estava na França. Voltei ao Brasil em
outubro de 1968 para concorrer à cátedra na Universidade de São Paulo. Concorri
à cátedra de Ciência Política e ganhei. Mas, quando ouvi o AI-5 sendo lido, imaginei
logo que minha duração na USP seria curta. Efetivamente, em abril de 1969, esse
mesmo AI-5 fundamentou um ato que me aposentou compulsoriamente, afastando-me
da USP. Se fosse para levar ao pé da letra o AI-5, eu fiquei proibido até de
exercer certo tipo de atividade, como a pesquisa.
Não obstante, nós montamos um centro de pesquisa, que foi o
Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), e procuramos resistir com
dignidade, mantendo nosso pensamento altivo embora não na ação política direta,
a não ser mais tarde, quando passamos a apoiar o MDB e os movimentos
democráticos em geral, como o movimento pela anistia. Ainda assim, como
conseqüência do AI-5, em 1975, eu e meus companheiros do Cebrap fomos levados à
chamada Oban (Operação Bandeirantes), um órgão de repressão onde havia tortura,
e eu vi gente torturada. Embora isso não tivesse ocorrido comigo, aconteceu com
alguns companheiros de trabalho que tinham, como único pecado, o fato de ter a
cabeça livre. Eles não estavam de forma alguma metidos em organizações
clandestinas ou terroristas. Mas, naquele tempo, tudo era confundido. O que era
uma ação mais crítica era confundido com uma ação subversiva. Por sorte, o
Brasil foi capaz de superar, embora lentamente, esses anos de chumbo. Hoje, o AI-5
é apenas uma memória negativa de um momento triste da História do Brasil.
Vozes da ditadura
Exclusivo: as gravações da reunião do Conselho de Segurança
Nacional podem ser ouvidas no site da revista na Internet no endereço
www.epoca.com.br
ENTREVISTA
O legado do AI-5 para o Brasil
A diretora do Centro de Pesquisas da FGV diz por que é
crucial que o país não perca de vista o estrago provocado pelo ato
Época: O que o AI-5 deixou como herança para o país?
Maria Celina D'Araújo: O custo do AI-5 para o Brasil, hoje,
está muito presente. Na educação, por exemplo, a censura aos livros didáticos
formou uma geração que não tinha opções de escolha - e por isso não pôde
conhecer uma parcela fundamental da História deste país. Quando o regime abriu,
as pessoas descobriram, sim, o que lhes fora negado - e acharam fantástico.
Mas, de alguma forma, já era tarde demais. Era fundamental que muito do que foi
sonegado fosse lido num momento histórico preciso, que já passou. Hoje, os
fatos são tratados como mera lembrança. Aprendeu-se, também, a temer as
autoridades - e não a respeitá-las. Na farda não está o ser que protege, e sim
o que ameaça.
Época: E do ponto de vista político, o que aconteceu?
Maria Celina: Houve uma desqualificação da classe política.
O AI-5 impediu a formação de uma geração de novos parlamentares. Não é à toa
que antigas lideranças, como Miguel Arraes e Leonel Brizola, voltaram com força
tantos anos depois.
Época: Os militares, em especial os da chamada linha dura,
costumavam dizer que o AI-5 foi uma resposta do governo às ações da guerrilha
de esquerda. A senhora concorda com isso?
Maria Celina: Não. O AI-5 foi o ápice da radicalização
ideológica no Brasil - mas a iniciativa de levá-lo ao paroxismo foi da direita,
e não da esquerda, como apregoavam os militares. Tanto isso é verdade que as
ações da esquerda, sobretudo da guerrilha urbana, crescem justamente depois que
o governo decreta o AI-5, já em 1969.
Época: Se o presidente Costa e Silva não tivesse promulgado
o AI-5, o que poderia ter acontecido?
Maria Celina: É o chamado exercício contrafactual,
complicado de ser feito. Mas é possível que, sem o AI-5, houvesse algum tipo de
conciliação. Pela História brasileira se percebe a cínica capacidade da elite
de ser coesa, de se unir quando necessário. Dificilmente, portanto, teríamos
uma guerra civil. Agora, é uma balela dizer que o AI-5 foi necessário, que ele
significava um instrumento crucial, ainda que constrangedor, da manutenção da
ordem no Brasil. Não é verdade. O AI-5 foi uma escolha. Não foi uma fatalidade.
Havia, sim, outras saídas políticas.
Época: Há sempre muito barulho, de ambos os lados, quando um
personagem da repressão, do AI-5, conquista um cargo de importância na política
brasileira. O que essa reação significa?
Maria Celina: Os militares chamam a essa preocupação de não
oferecer posição de comando a atores da repressão, como foi o caso recente do
médico Fayad, que assinava laudos nos porões, de revanchismo. Eu chamo isso de
necessidade intrínseca de interpretar os fatos históricos, de criar mitos, de
tentar entender o que aconteceu. A questão é simples: fizemos a catarse? As
sociedades precisam chorar seus mortos, lamentar suas tragédias e seus dramas.
Maria Celina D'Araújo: responsável pelo Centro de Pesquisa e
Documentação de História Contemporânea do Brasil, órgão da Fundação Getúlio
Vargas