Luiz Inácio Lula da Silva entrará para a história das eleições presidenciais brasileiras sob o Estado Democrático de Direito pela desfaçatez sem paralelo com que se conduz. Ele não apenas colocou os recursos de poder próprios do cargo que exerce à disposição de sua candidata — escolhida, de resto, por um ato de vontade imperial —, como ainda assume ostensivamente o abuso e disso se jacta.
A demolição das leis e das instituições destinadas a separar Estado, governo e campanhas políticas não se fez em um dia. Lula começou a pensar no segundo mandato, e a se guiar rigorosamente por essa meta, mal tirou a faixa recebida do antecessor em 1.º de janeiro de 2003 — se não antes. E começou a pensar no nome do sucessor, e a subordinar a administração federal aos seus cálculos eleitorais, tão logo descartou definitivamente, decerto ao concluir que se tratava de uma aventura de desfecho incerto, a possibilidade de um terceiro período no Planalto.
Depois que os dois grandes escândalos do lulismo — o mensalão e a perseguição a um caseiro — excluíram da lista dos presidenciáveis do presidente os cabeças de seu governo, José Dirceu e Antonio Palocci, a solitária decisão de lançar a candidatura da ministra Dilma Rousseff, com experiência zero em competições pelo voto popular, embutia uma consequência que só o seu patrono poderia barrar. Desde que, bem entendido, tivesse ele um mínimo de apreço pelos valores republicanos dos quais fala de boca cheia.
A consequência, evidentemente, era a conversão do Estado e do governo em materiais de construção da campanha dilmista — numa escala e com uma intensidade que talvez fossem menos extremadas se o candidato se chamasse Dirceu ou Palocci. Diga-se o que se queira deles, um e outro têm bagagem partidária e milhagem na rota das urnas bastantes para não depender, tanto quanto Dilma, do sistemático abuso de poder do chefe (ou, no caso dela, chefe e criador). Em outras palavras, a fragilidade eleitoral intrínseca da ex-ministra clamava pelo vale-tudo para ser neutralizada — e não seria Lula quem deixaria de fazê-lo.
Assim que ele bateu o martelo em seu favor, aflorou no mundo político e na imprensa a questão da transferência de votos. Seria o mais popular dos presidentes brasileiros capaz de eleger a candidata tida como um poste? Seria o seu formidável carisma suficiente para impedir que ela naufragasse por seus próprios méritos, por assim dizer? Perguntas pertinentes — e enganadoras. Do modo como foram formuladas, tendem a fazer crer que os eventuais efeitos, em 3 de outubro, do poder de persuasão de Lula independem da sua gana de atrelar o comando do Executivo aos seus interesses eleitorais.
É bem verdade que Lula chegou lá da primeira vez (na quarta tentativa) concorrendo pela oposição. Mas, em 2002, o desejo de mudança que ele encarnava provavelmente prevaleceria ainda que o então presidente Fernando Henrique, com a mesma falta de escrúpulos que o sucessor exibiria, transformasse o seu gabinete em quartel-general da campanha do candidato José Serra. Agora, chega a ser intrigante, nas análises políticas, a dissociação entre o uso da popularidade de Lula e a sua desmesurada desenvoltura em entrelaçá-lo com o abuso de sua posição.
Não foi por falta de aviso. Já não bastassem as transgressões que cometia ao carregar Dilma nos ombros presidenciais para cima e para baixo, ele anunciou no congresso do PT, em maio passado, que a sua prioridade este ano — como presidente da República — era eleger a sua protegida. Para quem tem a caradura de escarnecer tão desbragadamente do decoro político elementar, nada mais natural do que proclamar que sabe que transgride a lei e nem por isso deixará de transgredi-la.
Foi o que fez anteontem em um evento oficial na sede temporária do governo, numa dependência do Banco do Brasil. “Eu nem poderia falar o nome dela (Dilma) porque tem um processo eleitoral”, reconheceu, “mas a história (da alegada atuação da ministra no projeto do trem-bala) a gente também não pode esconder por causa de eleição.” Sob medida para os telejornais e o horário de propaganda.
Perto disso, que diferença fará uma multa a mais?
A demolição das leis e das instituições destinadas a separar Estado, governo e campanhas políticas não se fez em um dia. Lula começou a pensar no segundo mandato, e a se guiar rigorosamente por essa meta, mal tirou a faixa recebida do antecessor em 1.º de janeiro de 2003 — se não antes. E começou a pensar no nome do sucessor, e a subordinar a administração federal aos seus cálculos eleitorais, tão logo descartou definitivamente, decerto ao concluir que se tratava de uma aventura de desfecho incerto, a possibilidade de um terceiro período no Planalto.
Depois que os dois grandes escândalos do lulismo — o mensalão e a perseguição a um caseiro — excluíram da lista dos presidenciáveis do presidente os cabeças de seu governo, José Dirceu e Antonio Palocci, a solitária decisão de lançar a candidatura da ministra Dilma Rousseff, com experiência zero em competições pelo voto popular, embutia uma consequência que só o seu patrono poderia barrar. Desde que, bem entendido, tivesse ele um mínimo de apreço pelos valores republicanos dos quais fala de boca cheia.
A consequência, evidentemente, era a conversão do Estado e do governo em materiais de construção da campanha dilmista — numa escala e com uma intensidade que talvez fossem menos extremadas se o candidato se chamasse Dirceu ou Palocci. Diga-se o que se queira deles, um e outro têm bagagem partidária e milhagem na rota das urnas bastantes para não depender, tanto quanto Dilma, do sistemático abuso de poder do chefe (ou, no caso dela, chefe e criador). Em outras palavras, a fragilidade eleitoral intrínseca da ex-ministra clamava pelo vale-tudo para ser neutralizada — e não seria Lula quem deixaria de fazê-lo.
Assim que ele bateu o martelo em seu favor, aflorou no mundo político e na imprensa a questão da transferência de votos. Seria o mais popular dos presidentes brasileiros capaz de eleger a candidata tida como um poste? Seria o seu formidável carisma suficiente para impedir que ela naufragasse por seus próprios méritos, por assim dizer? Perguntas pertinentes — e enganadoras. Do modo como foram formuladas, tendem a fazer crer que os eventuais efeitos, em 3 de outubro, do poder de persuasão de Lula independem da sua gana de atrelar o comando do Executivo aos seus interesses eleitorais.
É bem verdade que Lula chegou lá da primeira vez (na quarta tentativa) concorrendo pela oposição. Mas, em 2002, o desejo de mudança que ele encarnava provavelmente prevaleceria ainda que o então presidente Fernando Henrique, com a mesma falta de escrúpulos que o sucessor exibiria, transformasse o seu gabinete em quartel-general da campanha do candidato José Serra. Agora, chega a ser intrigante, nas análises políticas, a dissociação entre o uso da popularidade de Lula e a sua desmesurada desenvoltura em entrelaçá-lo com o abuso de sua posição.
Não foi por falta de aviso. Já não bastassem as transgressões que cometia ao carregar Dilma nos ombros presidenciais para cima e para baixo, ele anunciou no congresso do PT, em maio passado, que a sua prioridade este ano — como presidente da República — era eleger a sua protegida. Para quem tem a caradura de escarnecer tão desbragadamente do decoro político elementar, nada mais natural do que proclamar que sabe que transgride a lei e nem por isso deixará de transgredi-la.
Foi o que fez anteontem em um evento oficial na sede temporária do governo, numa dependência do Banco do Brasil. “Eu nem poderia falar o nome dela (Dilma) porque tem um processo eleitoral”, reconheceu, “mas a história (da alegada atuação da ministra no projeto do trem-bala) a gente também não pode esconder por causa de eleição.” Sob medida para os telejornais e o horário de propaganda.
Perto disso, que diferença fará uma multa a mais?