É velha a história: o peixe, como diz o ditado, começa a estragar pela cabeça. É o que acontece no Brasil de hoje, com os atos de má conduta, desvios e delitos praticados por pessoas que têm cargos em algum lugar da máquina pública. O estrago começa no ponto mais alto da escala, o gabinete da Presidência da República, onde nos últimos oito anos foi feito de tudo para proteger acusados, esconder erros e embaralhar a apuração de fatos. A pregação em favor da impunidade transformou-se numa bandeira política, ou num programa de governo ─ e o resultado é que um número cada vez maior de gente, no mundo das autoridades, se sente cada vez mais estimulado a migrar para o mundo da delinqüência. Por que não? O indivíduo que manda em alguma coisa acha que está autorizado a fazer o que bem entende, neste Brasil para todos, quando olha para cima e vê que ali acontece tudo e ninguém nunca é culpado de nada.
Quando a situação fica desse jeito, as coisas mais esquisitas começam a acontecer ─ como aconteceram, há pouco, nesta extraordinária história do delegado de polícia de São Paulo que conseguiu realizar o feito, aparentemente inédito, de bater num paralítico desarmado e preso a uma cadeira de rodas. Trata-se, claramente, de um caso de “rompimento de paradigmas”, ou de “superação dos próprios limites”, como se poderia ouvir numa palestra de autoajuda. Quem é que já viu uma coisa dessas? Mas aí está: acredite-se ou não, o fato é que o delegado Damasio Marino, da cidade de São José dos Campos, agrediu um paraplégico com dois tapas, segundo admite o seu próprio advogado; é acusado também de ter espancado a vítima com o cano do seu revólver. É certo que Damasio não estava a serviço, em diligência de combate ao crime, quando atacou o paralítico; estava à procura de uma reles vaga de estacionamento no pátio de um hospital da cidade e quis parar seu carro num dos espaços reservados aos deficientes físicos ─ o motivo, por sinal, de todo esse conflito. Não se pode dizer, enfim, que o delegado tenha agido em legítima defesa, ou que o paraplégico o estivesse ameaçando com uma arma; o único revólver presente à cena estava na mão do próprio Damasio. São os fatos.
Um episódio desses, em outros tempos, possivelmente tornaria Damasio um homem desprezado pelos colegas e condenado pelos superiores; ficaria marcado no meio policial como “o cara que bateu no aleijado” e poderia ter problemas sérios em sua carreira. Hoje em dia, com a doutrina segundo a qual a autoridade não erra, já não se sabe. Uma pesquisa de opinião na categoria poderia dar 85% de popularidade ao delegado. Pode-se esperar muita compreensão e apoio discreto, também, de quem está acima dele; até agora o governador do estado, o secretário de Segurança e outros peixes graúdos da hierarquia policial de São Paulo não foram capazes de dizer uma única palavra de reprovação ao que aconteceu. No momento não se pode afirmar, é claro, que o delegado Damasio seja culpado de alguma coisa, mesmo com a confissão de seu advogado. Ele foi suspenso das suas funções por trinta dias, enquanto se faz uma sindicância interna, e só ao fim desse período haverá, ou não, uma palavra oficial ─ que, naturalmente, será apenas o ponto de partida para um processo que só estará concluído no dia do Juízo Final. Quem pode estar com um problema, na verdade, é o rapaz da cadeira de rodas. Talvez acabe sendo processado por danos morais ─ isso sem falar no tratamento que deve esperar por parte dos muitos amigos do delegado na polícia.
A se repetir o resultado de quase 100% das investigações do poder público sobre delitos de seus integrantes, a história do delegado e do paralítico será mais um “caso superado”, como o governo gosta tanto de dizer. Damasio estará então liberado, caso lhe dê na telha, para em uma próxima visita ao hospital cobrir de pancadas um paciente na UTI, ou bater num velho de 70 anos por causa de outra vaga. Qual seria o problema? A sindicância da Presidência da República sobre a ex-ministra da Casa Civil Erenice Guerra, demitida porque membros da sua família faziam negócios na área comandada por ela, concluiu que não aconteceu nada de errado, apesar das mais chocantes evidências em contrário. Erenice recebeu um abraço em público da nova presidente na festa da posse ─ e o seu caso é apenas um, entre centenas de outros nestes últimos anos. Esperemos, agora, pela próxima aberração.