Quando, na noite de 30 de abril de 2011, o presidente americano Barack Obama foi à TV anunciar que um comando especial da Marinha havia matado o terrorista saudita Osama bin Laden, no Paquistão, o mundo suspirou aliviado por um instante. Um dos homens mais perigosos da História enfim estava fora de combate. De quebra, Obama neutralizava a acusação da direita de sua terra de que não era patriota, sequer era americano. Parecíamos salvos até 2016. Não de Bin Laden, mas de Sarah Palin.
Por definição, porém, um instante passa logo. E aquele foi extraordinariamente breve. Cutucada por uma frase tola do próprio presidente (“O mundo é um lugar melhor e mais seguro por causa da morte de Osama bin Laden”), a opinião pública mundial mudou de tom, do predominantemente festivo ao predominantemente acusatório. Obama nunca teve a menor chance. A falta de regras do jogo indicava que a vitória “moral” seria exclusividade de um dos lados, o de Osama bin Laden.
Argumentou-se que os EUA deveriam ter pedido autorização ao Paquistão para o ataque de 38 minutos em Abbottabad, de modo a não ferir a soberania de seu aliado e o Direito Internacional. Certo. Não se explicou como isso seria compatível com o sucesso da operação, diante da obviedade de que, para “se esconder” daquela maneira, a menos de um quilômetro da maior academia militar do Paquistão, Bin Laden contava com a guarida de gente graúda no governo local, gente que vazaria a informação.
Argumentou-se que os EUA deveriam ter capturado e julgado Bin Laden antes de, eventualmente, executá-lo de acordo com os procedimentos legais. Certo. Não se explicou como isso seria feito. O terrorista iria engrossar a lista dos presos talibãs e da Al-Qaeda em Guantánamo, aquele centro de tortura em solo cubano que Obama prometeu fechar? Ou teria o privilégio de uma prisão em solo americano? Receberia um julgamento justo? Militantes pró-vida protestariam contra a pena de morte?
Argumentou-se que, já que Bin Laden fora morto mesmo, os EUA ao menos deveriam ter divulgado as fotos do corpo. A maligna Sarah Palin chegou a dizer que não mostrá-las era “covardia”. Certo. Não se explicou como isso seria coerente com os protestos escutados em outras ocasiões, como na morte de Saddam Hussein e de seus filhos, protestos de que a exibição profanava os defuntos. Se fosse apenas para atestar o óbito de Bin Laden, a Al-Qaeda se apressou a fazer o reconhecimento.
Como se lê, não havia a menor possibilidade de Obama ganhar a parada contra Bin Laden. Qualquer atitude que o presidente tomasse estaria errada, assim como estaria errada também a atitude contrária. Talvez matar o terrorista nem fosse mais necessário, a não ser como mera vingança, como observou o sempre arguto Robert Fisk, num artigo para o “Independent”: Bin Laden e sua pregação por um único califado para todo o mundo islâmico já haviam sido aposentados pelo atual clamor árabe por democracia.
A guinada da percepção mundial dos acontecimentos de Abbottabad pode ser espantosa, não surpreendente. Parece-me haver três razões complementares para a proteção póstuma a Bin Laden: as próprias características de uma “guerra assimétrica”, travada entre um Estado legalmente constituído e um grupo de pessoas à margem das leis, para o bem ou (era o caso) para o mal; o velho antiamericanismo; e, mais interessante talvez, uma forma de autopreservação da opinião pública.
Ao declarar guerra ao terror, os EUA caíram numa armadilha das “guerras assimétricas”. Eles deveriam travá-la sem infringir as leis internacionais, ao passo que a Al-Qaeda nunca precisaria respeitar o que quer que fosse, nem mesmo certos preceitos do Corão que proclama defender. Ao infringir as leis, em Guantánamo, Abu Ghraib ou Abbottabad, os EUA se igualariam a seus inimigos (e a seus próprios fantasmas). Um aparente paradoxo, num tipo de conflito que se define por ser desigual.
Maniqueísmo herdado da Guerra Fria, o antiamericanismo continua, claro, a desempenhar um papel crucial na recepção às ações, hesitações ou omissões dos EUA. Se eles fazem algo, há de estar errado, sempre. Idem se não fazem. Soa como a “moral de escravo”, na acepção de Nietzsche, ou seja, como o conjunto de valores derivados da circunstância de se estar numa condição inferior. Bin Laden forneceu uma nova face a esse ressentimento, substituindo o “romântico” Che Guevara das camisetas.
Por fim, o assassinato de Bin Laden lembrou-me o episódio do ônibus 174, em 12 de junho de 2000. Durante as horas em que Sandro Barbosa do Nascimento manteve reféns, as pessoas em torno das TVs urravam para que um atirador lhe estourasse os miolos. Deu tudo errado. O policial matou a refém feita de escudo, e o sequestrador foi asfixiado no camburão. Então, as mesmas pessoas lincharam a PM. É como se houvesse um modo “certo” de matar, em que pessoas “de bem” saciassem os próprios instintos assassinos. Ou isso ou acaba o transe, e o agressor se torna vítima. Seria este o caso de Bin Laden, envelhecido, desarmado, ao arrepio da soberania paquistanesa, tadinho.