segunda-feira, 30 de maio de 2011

FHC em entrevista sobre drogas

Mônica Bergamo

PEGA LEVE
FHC defende em filme a descriminalização de todas as drogas, o acesso controlado a entorpecentes leves e admite até a plantação caseira de maconha no Brasil como forma de combater o tráfico

Há três anos, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso se juntou a personalidades como os ex-presidentes César Gaviria, da Colômbia, e Ernesto Zedillo, do México, e aos escritores Paulo Coelho e Mario Vargas Lllosa na Comissão Latino-Americana sobre Drogas e Democracia. Passou a defender a descriminalização do consumo de entorpecentes. E transformou sua “saga” no filme “Quebrando o Tabu”, de Fernando Andrade, que estreia na sexta, 3. Visitou 18 cidades da América Latina, EUA e Europa, foi a bares que vendem maconha, viu pessoas se drogarem nas ruas.
Mostrou o documentário às netas de 25 anos -que estavam ansiosas para saber, segundo ele, como defenderiam o trabalho “do avô maluco”. FHC falou à coluna.
Abaixo, um resumo:

Folha - O senhor já tem um histórico com o tema: na campanha para prefeito de São Paulo, em 1985, foi acusado de defender o consumo da maconha.
Fernando Henrique Cardoso - Ali foi o uso, pela campanha do Jânio Quadros [que concorria com FHC], de uma entrevista que eu havia dado à revista “Playboy”, em que me perguntaram se eu já tinha provado maconha. Eu contei que a única vez que eu vi alguém com maconha foi no bar P. J. Clarke's, em NY. Eu estava com uns primos banqueiros, bastante compostos. Alguém puxou. Achei o cheiro horrível. Me perguntaram: o senhor tragou? Nem sei tragar, nunca traguei nem cigarro. [A resposta de FHC à “Playboy” foi: “Eu dei uma tragada, achei horrível, acho que é porque nem cigarro eu fumo”.]

E outras drogas?
No meu tempo, não tinha esse negócio. Era só lança-perfume no Carnaval.

E o senhor cheirou lança?
Mas muito pouco. Eu tinha horror dessas coisas. Eu nunca vi cocaína na minha vida. Eu sei que é um pozinho branco, e tal, mas nunca vi. Fui ver gente se drogar agora, na Holanda, fazendo o filme.

Claramente, qual é a sua posição sobre as drogas?
Eu sou a favor da descriminalização de todas as drogas.

Cocaína, heroína?
Todas, todas. Uma droga leve, tomada todo dia, faz mal. E uma droga pesada, tomada eventualmente, faz menos mal. Essa distinção é enganosa. Agora, quando eu digo descriminalizar, eu defendo que o consumo não seja mais considerado um crime, que o usuário não passe mais pela polícia, pelo Judiciário e pela cadeia. Mas a sociedade pode manter penas que induzam a pessoa a sair das drogas, frequentando o hospital durante um período, por exemplo, ou fazendo trabalho comunitário. Descriminalizar não é despenalizar. Nem legalizar, dar o direito de se consumir drogas.

Os manifestantes da Marcha da Maconha, por exemplo, defendem a legalização, o direito de cada um fumar ou não o seu baseado.
Eles defendem não só a legalização, como dizem: “Não faz mal”. Eu não digo isso, porque ela faz mal. Agora, não adianta botar o usuário na cadeia. Você vai condená-lo, estigmatizá-lo. E não resolve. O usuário contumaz é um doente. Precisa de tratamento e não de cadeia.

Eles podem argumentar: faz mal, mas eu tenho o direito de escolher.
Aí é a posição holandesa. Lá você tem o indivíduo como o centro das coisas. Mas a Holanda é um país de formação protestante, capitalista, individualista: “Eu posso decidir por mim. Se eu quiser me matar, eu me mato”. Lá, você não tem o nível de violência, de pobreza e de desinformação que tem no Brasil. Legalizar aqui pode significar realmente você alastrar enormemente o uso de drogas, de uma maneira descontrolada. Na Holanda, eles não tentam levar ninguém ao tratamento. Na cultura brasileira, funcionaria mais o modelo adotado por Portugal.

Como é em Portugal?
Eles descriminalizaram todas as drogas e deram imenso acesso ao tratamento. E como você não tem medo de ir para a cadeia, você procura o hospital. Eles fazem inclusive uma audiência de aconselhamento com o usuário. Portugal está hoje entre os países com a menor expansão do consumo de drogas na Europa Ocidental. Agora, eles combatem o tráfico.

O filme diz que nunca existiu um mundo sem drogas.
Antropologicamente, é verdade. O que não quer dizer que o mundo seja drogado! Agora, droga zero... Crime zero vai existir? Não vai haver nunca mais adultério? Mesmo no Irã, em que jogam pedra? Mas isso não pode dar o sentido de “então, libera”.

Se nunca existirá um mundo sem drogas, de que adianta proibí-las e deixá-las, ilegais, sob controle de traficantes?
Posso te dizer com franqueza? Vai ter que diminuir o consumo. Como? Motivando, e não prendendo as pessoas. O cigarro foi transformado em um estigma. Não era assim há 20 anos. Tem que tirar o glamour da maconha. Ela pode trazer perturbações graves. Tem que haver campanhas sistemáticas, informação, educação.

Os críticos da descriminalização dizem que uma droga leva a outras mais pesadas.
Vamos falar sem hipocrisia: o acesso à maconha é fácil no Brasil. E o elo entre a droga leve e a droga pesada é o traficante. Se você não tem acesso regulado, vai para o traficante. E ele te leva da maconha para outras drogas.

E como seria esse acesso?
Em vários estados americanos, na Europa, há liberdade de produção em pequena quantidade, doméstica. Cada país tem que encontrar o seu caminho.

No Brasil, imagina liberar a plantação caseira?
Por exemplo. Descriminaliza e deixa alguma experimentação. Eventualmente, plantação caseira, por aí. Outra coisa: em alguns países da Europa, o governo fornece a droga para o dependente, para evitar o tráfico. Na Holanda, não é permitido se drogar na rua. Você tem locais específicos. Isso poderia acontecer no Brasil. Em SP, na cracolândia, o pessoal se droga na rua, à vontade. É melhor se drogar na rua ou ter um local específico? Isso não é liberar, é tratar como saúde pública.

Na Holanda “coffee shops” vendem maconha.
Eu fui lá.

E experimentou?
Não, não. Comigo não tem jeito. Eu não beijo sereia. Quer dizer, às vezes, sim. Mas não de drogas [risos]. A produção de maconha é ilegal na Holanda. Os “coffee shops” são solução meia-bomba. É uma coisa meio hipócrita.

Debates sobre costumes são sempre interditados no Brasil. A campanha de 2010 mostrou isso, com o aborto.
Eu fui contra aquilo. Esses assuntos não são de campanha eleitoral. E, se você não tiver coragem de ficar sozinho, não é um líder. Mas no Brasil tem uma vantagem: a proposta mais avançada no Congresso sobre drogas é do líder do PT, o deputado Paulo Teixeira. Ele esteve na minha casa, com o Tarso Genro [governador do Rio Grande do Sul], discutindo essa questão. Nossa posição é parecida. Uma parte da sociedade vai ser sempre contra, mas não estamos defendendo coisas irresponsáveis. A droga faz mal, eu sou contra o uso da droga, tem que fazer campanha para reduzir o consumo. Agora, a guerra contra ela fracassou. Tá aumentando o consumo, tá tendo um resultado negativo, tá danificando as pessoas e a sociedade. Vamos ver se tem outros caminhos. No filme, não estamos dando receitas, e sim abrindo os olhos.

O senhor vai enviar o filme para Dilma Rousseff. A presidente, no entanto, tem se mostrado fechada a discussões sobre o tema das drogas.
É o que dizem. Eu não sei. Não ouvi dela nada. Ela está saindo da campanha eleitoral e tal. Agora [rindo], precisa ver a posição do Lula. Álcool faz mais mal que marijuana.

As ideias que o senhor declara hoje jamais foram aplicadas ou mesmo defendidas em seu governo.
Naquela época, havia uma enorme pressão americana, sobretudo por causa de Colômbia, Peru e Bolívia, que exportavam pasta de coca. E houve uma certa militarização do problema. Os americanos fizeram a ONU aprovar uma convenção com o objetivo de acabar com as drogas. E fizeram muita pressão para o Brasil participar de um entendimento do ponto de vista militar. Nós nos recusamos.

Mas houve cooperação.
Nós tínhamos que mostrar que não deixamos de combater as drogas. Então criamos a Senad [Secretaria Nacional Antidrogas] com um duplo desafio: como é que diminuímos [as drogas] e como é que não nos amolam com essa questão. Fizemos esforços de erradicação de plantações no quadrilátero da maconha em Pernambuco, por exemplo.
Eu acreditava nisso. O problema não era tão violento. Não estava no radar como hoje está. Mas eu confesso que não tinha a posição que hoje eu tenho, porque eu não tinha informação. Meu governo foi isso: ambíguo.