segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Anthony Daniels: Entrevista

O senhor costuma dizer que a influência das teses do suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) prejudicou a noção de responsabilidade no mundo atual. Por quê?
Rousseau difundiu a idéia de que o ser humano é naturalmente bom, e que a sociedade o corrompe. Eu não sou religioso, mas considero a visão cristã de que o homem nasce com o pecado original mais realista. Isso não significa que o homem é inevitavelmente mau, mas que tem de lutar contra o mal dentro de si. Por influência de Rousseau, nossas sociedades relativizaram a responsabilidade dos indivíduos. O pensamento intelectual dominante procura explicar o comportamento das pessoas como uma conseqüência de seu passado, de suas circunstâncias psicológicas e de suas condições econômicas. Infelizmente, essas teses são absorvidas pela população de todos os estratos sociais. Quando trabalhava como médico em prisões inglesas, com freqüência ouvia detentos sem uma boa educação formal repetindo teorias sociológicas e psicológicas difundidas pelas universidades. Com isso, não apenas se sentiam menos culpados por seus atos criminosos, como de fato eram tratados dessa maneira. Trata-se de uma situação muito conveniente para os bandidos, pois permite manter a consciência tranqüila. Podem dizer que roubam porque não tiveram oportunidades de estudo, porque nasceram na pobreza ou porque sofreram algum trauma de infância, entre outras desculpas. "Enquanto a sociedade não mudar, não se pode esperar que eu me comporte de outra forma", tal é o discurso corrente entre os presos.

Por que os intelectuais incentivam esse pensamento?
Intelectuais são, em geral, pessoas muito desonestas. Eles não pensam em si mesmos como irresponsáveis, mas costumam atribuir essa ca-racterística a outras pessoas com grande facilidade. Ao criarem explicações sociológicas e psicológicas para desvios de comportamento, eles acabam por desumanizar os criminosos. Uni exemplo disso ocorreu na Inglaterra anos atrás, quando houve uma onda de furtos de carro. Os bandidos envolvidos nesses crimes, além de lucrar com isso, realmente gostavam da emoção de furtar muitos veículos em um curto período de tempo. Alguns criminologis- tas e psicólogos, ao analisar o fenômeno, começaram a dizer que furtar carros era uma forma de vício. Sobre essa teoria, produziram-se inúmeros estudos, alguns dos quais incluíam até exa-mes de ressonância magnética do cérebro dos bandidos, para provar que se tratava de uma doença neurológica. Em pouco tempo, os ladrões de carro começaram a me dizer na cadeia que eram viciados em furtar veículos. Eles obviamente não chegaram a essa conclusão sozinhos. Apenas estavam repetindo uma tese produzida por arrogantes intelectuais de classe média que desconsideravam o fato de os bandidos serem capazes de escolher entre o certo e o errado independentemente de fatores externos. Negar sua capacidade de discernimento é o mesmo que diminuir sua humanidade.

Isso também vale para criminosos com prováveis distúrbios mentais, como Anders Breivik, que matou 77 pessoas no mês passado na Noruega?
Sim. Breivik pode ser louco, mas nem por isso é menos responsável por seus atos. Na tradição legal anglo-saxônica, o mero fato de você ser doente mental não sig-nifica que não esteja apto a responder por um crime. Depende do tipo e do grau da loucura. Suponhamos que os médicos descubram que Breivik tem um tumor no lobo frontal do cérebro. Em casos como esse, o indivíduo pode, sim, ser menos responsável por seus atos. Da mesma forma, muitos idosos com Alzheimer perdem a inibição sexual e comportam-se de maneira ina- propriada. Há, portanto, algumas doenças neurológicas que atrapalham a capacidade da pessoa de ter consciência plena de seus atos criminosos ou antis- sociais. Não acho que Breivik se encaixe em nenhuma dessas categorias.

É possível arriscar um diagnóstico sobre Breivik?
O assassino norueguês é, obviamente, um homem muito estranho. Ele tentou justificar a matança com um manifesto de 1500 páginas. A leitura de algumas páginas é suficiente para notar características muito claras. A primeira é que ele acredita ter encontrado as respostas para todos os problemas do mundo. A segunda é que ele é paranoico, pois pensa que há uma grande conspiração destruindo seu país. Terceiro, ele é narcisista. Breivik tem uma idéia muito elevada e exagerada de sua própria aparência. À parte tudo isso, ele também tem inúmeros ressentimentos pessoais. Seu pai o abandonou quando ele era ainda muito jovem, por exemplo. A verdade, porém, é que nada disso serve para traçar o perfil de um assassino como ele. É possível encontrar muitas pessoas com as mesmas características e que nunca fizeram ou farão o que ele fez.

Em seu manifesto, a frieza de Breivik está expressa na convicção de uma verdade absoluta sobre o mundo. 0 senhor identificou frieza parecida, beirando a psicopatia, ao analisar a obra de ficção de Cesare Battisti, o terrorista de esquerda que foi condenado por quatro assassinatos na Itália e ganhou visto de permanência para viver no Brasil. O senhor vê semelhanças entre os dois?
Há semelhanças, sim. Ambos tinham certeza de que, com seus crimes, estavam fazendo o bem. Isso, evidentemente, demonstra que não tinham nenhum senso de proporção. Eles não conseguiam perceber que sua irritação em relação à sociedade, ao sistema político e ao governo de seu país era, na verdade, irrelevante e de uma dimensão muito inferior comparada a todos os outros problemas da humanidade. Sem esse freio psicológico ou moral, eles se consideraram no direito de dispor da vida de inocentes como bem entenderam.

Como explicar a simpatia de intelec-tuais e políticos brasileiros por Battisti?
Acho que, na visão dessas pessoas, Battisti teve coragem de exibir uma brutalidade que elas gostariam de ter tido em algum momento da vida. Ao apoiá-lo, elas dão respaldo simbólico a um passado pessoal perdido. Além disso, os crimes perpetrados por estados e grupos totalitários de esquerda ainda encontram justificativa ideológica. Muita gente acredita piamente que os erros cometidos em nome do comunismo foram por uma causa nobre, o que é um absurdo. Em especial, os intelectuais que compactuavam com o marxismo. Dá para entender: eles eram levados a acreditar que tinham um papel de liderança na sociedade. Com o desmoronamento do Muro de Berlim, foram empurrados para a irre- levância. Tudo o que esses intelectuais mais odeiam é uma sociedade que não precisa deles. Por isso, protegem indivíduos como Battisti: para reviver um período idealizado.

O senhor é a favor de prender consumidores de drogas?
A maneira como vemos o vício de drogas é errada. Tratamos os viciados como vítimas, incapazes de ser responsabilizados por suas escolhas. Isso é falso. Eles não são vítimas de seu próprio comportamento. Não existe droga tão viciante a ponto de ser impossível livrar-se dela. Os drogados usam os entorpecentes por uma decisão pessoal. Isso não significa que eu não me solidarize com essas pessoas. O estado mental que as drogas induzem é muito atraente para elas, em comparação com sua realidade. Mas, quando cometessem algum crime, ainda que pequeno, sob efeito de drogas ou para comprá-las, os viciados deveriam ser forçados a entrar em uma clínica de reabilitação. Se não aceitassem o tratamento, deveriam ser mandados para a prisão. Isso lhes daria motivação para levar a sério o processo de reabilitação, pois o maior problema com o vício é que as pessoas não encontram razões para parar. O medo da prisão pode ser uma delas. A outra é a certeza de ter uma vida melhor livre das drogas.

A prisão pode ser eficiente mesmo com a facilidade de conseguir drogas atrás das grades?
Sim, porque o indivíduo não estará na rua, violando a lei. A prisão não é uma instituição terapêutica. Sua função principal é prevenir crimes que um condenado poderia cometer se estivesse solto. Há também evidências de que, quanto mais tempo uma pessoa fica na cadeia, menor a probabilidade de voltar à bandidagem depois de ser libertada.

Penas longas são mais eficientes?
Sim. Na Inglaterra, por exemplo, temos penas muito brandas e poucos detentos. Isso não é bom. A polícia inglesa, muito incompetente, prende apenas um em cada doze assaltantes de casas. Destes, um em cada treze recebe pena de prisão. Isso significa que apenas um em cada 156 assaltantes cumpre pena em presídio. A média para esse tipo de crime é de um ano de cadeia. Na Inglaterra, isso significa que o bandido é solto em apenas seis meses. Com uma punição tão leve, a pergunta não é por que ocorrem tantos assaltos, mas por que há tão poucos. Meu país deixou de ser uma sociedade ordeira para se tornar uma das mais afetadas pela criminalidade, quando comparada a outras da Europa. O número de presos caiu em proporção ao de crimes. Em 1900, para cada 6,5 crimes registrados, havia um detento. Em 2000, eram 114 crimes para cada preso. Claro que penas curtas são melhores do que nada. Um bandido reincidente comete, em média, 140 crimes por ano. Ou seja, se ele for mantido na prisão por seis meses, setenta crimes serão evitados, o que também é bom. Um dos argumentos contra as penas de prisão é que a maioria dos detentos é pobre, e que isso é injusto. Ocorre que a maior parte de suas vítimas também é pobre. E, como o número de vítimas é sempre muito maior do que o de bandidos, prendê-los não é uma punição aos pobres, mas um benefício a eles.

A Justiça brasileira passou a ter à sua disposição medidas alternativas à prisão preventiva, como monitoramento eletrônico e pagamento de fiança. Isso é bom?
Pela experiência britânica, tais medidas são um desastre. Um terço de todos os crimes da Escócia, inclusive estupros e assassinatos, é cometido por pessoas em liberdade condicional. Sou a favor desse recurso em algumas circunstâncias, como para crimes não violentos, mas para uso geral é uma tragédia. As tornozeleiras eletrônicas são uma temeridade em lugares onde a administração pública não é eficiente. Nem na Inglaterra a polícia consegue monitorar os criminosos com esses equipamentos. A pena de prestação de serviços comunitários também é um pesadelo. A taxa de reincidência para bandidos condenados a prestar serviços comunitários é a mesma dos que recebem pena de prisão: 70%. O problema é que a estatística conta apenas os crimes cometidos após o fim da pena. Nada garante que, enquanto estão soltos, prestando serviços comunitários, eles não cometam novos crimes. Por fim, em média, cada detento na Inglaterra já foi condenado outras dez vezes a penas alternativas. Ou seja, não adiantou nada. Basicamente, ao saber que cumprirão penas alternativas e ficarão soltos, os bandidos se convencem de que não têm nada a perder ao cometer um crime. É melhor mantê-los presos, e por bastante tempo.