Num dos meus primeiro mandatos de deputado federal defendi
na tribuna da Câmara Os Paralamas do Sucesso, acusados de caluniar o Congresso
Nacional com a música Luís Inácio (300 picaretas’). Os primeiros versos diziam:
“Luís Inácio falou, Luís Inácio avisou/ são trezentos picaretas com anel de
doutor!”.
Defendi-os em nome da liberdade de expressão. Não concordava
inteiramente com Lula. Talvez fossem 312 ou 417. Reconheço que 300 é um número
redondo, mais fácil de inserir nos versos de uma canção popular. Além do mais,
nem todos têm anel de doutor. Mas isso são detalhes. O mais importante é
registrar que estávamos na véspera da chegada do PT ao governo federal, início
da era do “nunca antes neste país”. E aonde chegamos, agora, uma década depois?
Renan Calheiros deve assumir a presidência do Senado,
Henrique Eduardo Alves, a da Câmara e o deputado Eduardo Cunha, a liderança do
PMDB. Caso se concretizem, esses eventos representam um marco na História do
Congresso. Significa que, para muitas pessoas informadas, o Congresso deixa de
existir. É o fim da picada…
Conheço os passos dessa estrada porque transitei nela 16
anos. O mensalão significa o ato inaugural, a escolha do tipo e da natureza de
alianças políticas do novo governo. O mensalão significa a compra de votos dos
partidos, uma forma de reduzir o Congresso a um balcão de negócios. Em seguida
vieram as medidas provisórias (MPs). Governar com elas é roubar do Congresso
tempo e energia para seus projetos. A liberação das emendas parlamentares era a
principal compensação pelo espaço perdido.
Mas deputados e senadores não cedem o espaço porque são
bonzinhos ou temem o governo. As MPs são uma forma simplificada de o governo
realizar seu objetivo. Os parlamentares tomaram carona nesse veículo
autoritário. E inserem as propostas mais estapafúrdias no texto das MPs. Com
isso querem aprovar suas ideias sem o caminho democrático que passa por debates
em comissão, audiências públicas, etc.
Na Câmara essas inserções oportunistas são chamadas de
jabuti O nome vem da frase “jabuti não sobe em árvore, alguém o coloca-lá”. O
nome jabuti pressupõe que há interesses econômicos diretos por trás de cada uma
dessas emendas.
A perda de espaço para o governo não é o problema, desde que
todos os negócios continuem fluindo, das MPs às emendas ao Orçamento. O espaço
não interessa, o que interessa é o dinheiro. Espaço por espaço, o Congresso já
abriu uma grande avenida para o Supremo Tribunal Federal julgar casos
polêmicos, como aborto e união gay.
Os negócios, como sempre, são o centro de tudo. Negócios,
trambiques, maracutaias e, como diziam Os Paralamas em 2003, “é lobby, é
conchavo, é propina e jeton”. Uma década depois, vendo o Congresso idêntico à
sua caricatura, pergunto quando é que nos vamos dar conta dessa perda, desse
membro amputado de nossa anatomia democrática.
A saída da minoria ─ chamada, com uma ponta de razão, de
Exército Brancaleone ─ foi pressionar por dentro e estabelecer uma tensão entre
ala e a opinião pública. Na definição do voto aberto para cassar deputados, vencemos
o primeiro turno porque a imprensa e eleitores estavam de olho. Vitória
esmagadora, contra apenas três abstenções. Agora até esse caminho está
bloqueado. Todos os dispositivos internos foram reforçados e passaram a impedir
tais votações. Com a cumplicidade do PT, os piores elementos foram ascendendo
aos postos estratégicos e agora o esquema chega ao auge, com a escolha de
Calheiros e Alves.
De um lado, interessa-me avaliar como será o futuro do País
sem um Congresso que possa realmente ser chamado por esse nome. De outro lado,
um olho na saída. Não sei se repetiria hoje a campanha contra Renan, os
cartazes com chapéu de cangaceiro e a frase: “Se entrega, Corisco”. Nem se
gostaria de ver de novo aqueles bois se deslocando pelos campos alagoanos para
as terras de Renan, para comprovar que era dono de muitas cabeças de gado. O
ideal, hoje, seria poupar os bois dessa nova viagem inútil. Passar o vídeo,
criar uma animação, substituir toneladas de carne de boi por milhões de pixels.
Henrique Alves destinou dinheiro a uma empresa fantasma de
um assessor dele. No lugar deserto onde a empresa funcionava havia apenas um
bode, chamado Galeguinho. O bode foi dispensado depois de sua estreia. Os bois
mereciam o mesmo. “Parabéns, coronéis, vocês venceram”, diz a letra de Luís
Inácio. Deixaram-nos monitorando bois de helicóptero e pedindo ao bode que nos
levasse ao gerente da empresa.
Luiz Inácio falou, Luiz Inácio avisou. Mas foi o primeiro a
passar para o lado deles e a contribuir com algumas novas espécies para a fauna
já diversa que encontramos em 2003.
A vitória dos cavaleiros do apocalipse recoloca a urgência
de salvar o Congresso dele mesmo. A maneira de potencializar o trabalho da
minúscula oposição é a maior transparência possível e uma ajuda da opinião
pública. A partir dessa vitória, Calheiros, Alves e seus eleitores no
Parlamento dizem apenas à sociedade: somos assim, e daí? Depois do descanso
merecido, o bode que é o porteiro da empresa favorecida por Alves deveria ser
colocado na porta do Congresso.
É impensável que 300, 312 ou 417 ─ não importa o número
exato ─ picaretas enfrentem o Brasil sem uma represália dura. O espírito do
“eles lá, nós aqui”, de distância enojada, no fundo, é bom para eles, que
querem total autonomia para seus negócios. Será preciso mostrar que toda essa
farsa é patrocinada pelo dinheiro público. E que sua performance será
amplamente divulgada agora e no período eleitoral. O instinto de sobrevivência
da instituição não existe. Mas o do político é muito grande. É preciso que ele
sinta o desgaste pessoal produzido por suas escolhas.
Muitas pessoas vão trabalhar nisso, cada uma no seu posto,
às vezes em manifestações. A eleição direta para presidente foi uma conquista.
A perda do Congresso para o ramo dos secos e molhados é uma dolorosa ferida em
nossa jovem democracia.
Nós demos um boi para não entrar nessa luta. Daremos um bode
para não sair dela.