Quando o ex-presidente Lula indicou o nome do procurador
Joaquim Barbosa para o Supremo Tribunal Federal, em 2003, aplaudiu a si mesmo
por mais esse lance da genialidade política que lhe é atribuída. Tornava-se,
com isso, “o primeiro presidente deste país” a levar um negro à mais alta corte
de Justiça do Brasil ─ o que não é bem assim, pois antes de Barbosa o STF teve
dois ministros mulatos, já esquecidos na bruma dos tempos. Mas o que vale nas
coisas da política, em geral, é o que se diz ─ e o que se disse é que havia ali
um plano magistral. O novo ministro, agradecido pela honra recebida, seria um
belo amigo do governo nas horas difíceis. Acontece que os melhores planos,
muitas vezes, não acabam em bons resultados; o que decide tudo, no fim das
contas, são os azares da vida. O grande problema para Lula foi que o único
negro disponível para ocupar o cargo era Joaquim Barbosa ─ e ali estava,
possivelmente, uma das pessoas menos indicadas para fazer o que esperavam dele.
Para começo de conversa, Barbosa dá a impressão de detestar,
positivamente, o rótulo de primeiro “ministro negro” do STF. Não quer que
pensem que está lá para preencher alguma espécie de “cota”; a única razão de
sua presença no STF, julga o ministro, são seus méritos de jurista, adquiridos
em anos de trabalho duríssimo e sem a ajuda de ninguém. Nunca precisou do apoio
da “comunidade negra”, nem da secretaria da igualdade racial, ou coisa que o
valha. Também não parece se impressionar, nem um pouco, com gente de origem
humilde. É filho de um pedreiro do interior de Minas Gerais, tornou-se arrimo
de família na adolescência e ao contrário de Lula, que não bate ponto desde que
virou líder sindical, em 1975, Barbosa começou a trabalhar aos 16 anos de idade
e não parou até hoje.
O ministro, além disso, é homem de personalidade
notoriamente difícil, sujeita a ásperas mudanças de humor e estoques
perigosamente baixos de paciência. É atormentado por uma hérnia de disco que
lhe causa dores cruéis e o obriga muitas vezes a ficar de pé durante as sessões
do STF. É, em suma, o tipo de pessoa que se deve tratar com cuidado. Lula e o
PT fizeram justamente o contrário. Quando Barbosa se tornou relator no processo
do mensalão, em 2006, continuaram apostando todas as fichas na histórica
impunidade com que são premiados no Brasil réus poderosos e capazes de pagar
advogados caros. Descobriram, agora, que o trabalho de Barbosa puxou as
condenações em massa no julgamento do mensalão ─ e jogou uma banana de dinamite
no sistema de corrupção que há dez anos envenena a vida pública no Brasil.
A primeira trovoada séria veio quando o ministro aceitou a
denúncia da procuradoria contra os quarenta do mensalão. Na época, o único
deles com cabeça foi o ex-secretário-geral do PT Silvio “Land Rover” Pereira;
não contestou a acusação, foi punido com prestação de “serviços comunitários” e
acabou resolvendo seu caso a preço de custo. Os demais, guiados pelo farol de
Lula, preferiram ficar debochando. Durante o tempo todo, ele sustentou que o
mensalão “nunca existiu”. Quando o julgamento começou, disse que não iria
acompanhar nada: “Tenho mais o que fazer”. Delúbio Soares, operador-mor do
guichê de pagamento do esquema, afirmou que tudo iria acabar em “piada de
salão”. O presidente nacional do PT, Rui Falcão, garantiu que o povo estava interessado,
mesmo, é na novela das 9. O que queriam com isso? Imaginavam que Joaquim
Barbosa, trabalhando como um burro de carga, com a tortura da dor nos quadris e
seu temperamento de porco-espinho, estava achando engraçado ouvir que o seu
esforço era uma palhaçada inútil? Lula e sua tropa tinham certeza de que o
processo iria se arrastar até o Dia do Juízo Final. O ministro Barbosa, hoje,
poderia dizer: “Não contavam com a minha astúcia”. No caso, sua astúcia foi
entender a diferença entre “muito tempo” e “nunca”. Tudo seria demorado, claro.
Mas ele tinha certeza de que terminaria o seu trabalho ─ e que os 80% de
popularidade de Lula, aí, não iriam servir para nada.
Em sua curta obra-prima Ratos e Homens, um dos clássicos da
literatura populista americana, John Steinbeck se inspira num antigo poema
escocês para nos dizer que os mais bem cuidados planos deste mundo, sejam
feitos por ratos ou por homens, são coisas frágeis; podem ser desfeitos pela
roda do acaso, que é indiferente tanto aos projetos mais humildes quanto aos
mais ambiciosos, e só acabam deixando mágoa e dor. Joaquim Barbosa talvez faça
com que os mensaleiros se lembrem disso por muito tempo.