Em 27 de junho de 2012, uma Comissão de Juristas entregou ao
presidente do Senado, José Sarney, o anteprojeto de reforma do Código Penal.
Seria de se esperar, que o texto fosse submetido à apreciação da sociedade para
receber críticas e sugestões[1]. Isso, porém, não ocorreu. Em 9 de julho de
2012, apenas 11 dias depois, o Senador José Sarney subscreveu o anteprojeto
convertendo-o em projeto de lei: o PLS 236/2012. Ao assinar o projeto, Sarney
agiu de modo semelhante a Pilatos.
Declarou-se, “por uma questão de consciência e religião”,
contrário à eutanásia, ao aborto, ao porte de drogas e seu plantio para uso,
mas não retirou nada disso do texto que subscreveu. Lavou as mãos, disse que
era inocente do sangue de Cristo, mas decretou a sentença injusta. Favoreceu a
presidente Dilma que, embora favorável ao aborto, havia prometido na campanha
eleitoral não enviar ao Congresso qualquer proposta abortista.
O anteprojeto – agora convertido em projeto – foi muito mais
audacioso que o de 1998. Pretendeu reformar não só a parte especial do Código
Penal, mas também a parte geral e a imensa legislação penal extravagante. E
tudo isso no curto prazo de seis meses![2] O resultado foi um conjunto de 544
artigos cheios de falhas graves.
Animais e pessoas
Segundo a linha ideológica do PLS 236/2012, o ser humano
vale menos que os animais. A omissão de socorro a uma pessoa (art. 132) é
punida com prisão, de um a seis meses, ou multa. A omissão de socorro a um
animal (art. 394) é punida com prisão, de um a quatro anos. Conduzir um veículo
sem habilitação, pondo em risco a segurança de pessoas (art. 204) é conduta
punida com prisão, de um a dois anos. Transportar um animal em condições
inadequadas, pondo em risco sua saúde ou integridade física (art. 392), é
conduta punida com prisão, de um a quatro anos. Os ovos, larvas ou espécimes da
fauna silvestre não podem ser vendidos, adquiridos, transportados nem
guardados, sob pena de prisão, de dois a quatro anos (art. 388, §1º, III). Os
embriões humanos, porém, podem ser comercializados, submetidos à engenharia
genética ou clonados sem qualquer sanção penal, uma vez que ficam revogados
(art. 544) os artigos 24 a 29 de Lei de Biossegurança (Lei 11.101/2005).
Terrorismo e invasão de terras
O terrorismo é criminalizado (art. 239). Mas as condutas
descritas (sequestrar, incendiar, saquear, depredar, explodir…) deixam de
constituir crime de terrorismo se “movidas por propósitos sociais ou
reivindicatórios” (art. 239, §7º). Os invasores de terra são favorecidos, uma
vez que “a simples inversão da posse do bem não caracteriza, por si só, a
consumação do delito” (art. 24, parágrafo único).
Prostituição infantil
Atualmente comete estupro de vulnerável quem pratica
conjunção carnal com menor de 14 anos (art. 217-A, CP). O projeto baixa a idade:
só considera vulnerável a pessoa que tenha “até doze anos”. Isso vale para o
estupro de vulnerável (art. 186), manipulação ou introdução de objetos em
vulnerável (art. 187) e molestamento sexual de vulnerável (art. 188). Deixa de
ser crime manter casa de prostituição (art. 229, CP) ou tirar proveito da
prostituição alheia (art. 230, CP). Quanto ao favorecimento da prostituição ou
da exploração sexual de vulnerável, a redação é ainda mais assustadora: só será
crime se a vítima for “menor de doze anos” (art. 189). Deixa de ser crime,
portanto, a exploração sexual de crianças a partir de doze anos.
Drogas
Quanto às drogas, somente o tráfico permanece crime (art.
212). Deixa de ser crime o consumo pessoal de drogas (art. 212, § 2º).
Presume-se que a quantidade de droga apreendida destina-se a uso pessoal quando
ela é suficiente para o consumo por cinco dias (art. 212, § 4º).
Aborto
Quanto ao aborto, o projeto reduz ainda mais as penas já tão
reduzidas. O aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento,
atualmente punido com detenção de um a três anos, passa a ter pena de prisão de
seis meses a dois anos (art. 125). O terceiro que provoca aborto com o
consentimento da gestante, atualmente punido com reclusão de um a quatro anos,
passa a sofrer pena de prisão de seis meses a dois anos (art. 126). Se o aborto
for provocado sem o consentimento da gestante, o terceiro é punido com prisão,
de quatro a dez anos (art. 127). Curiosamente, ele recebe um aumento de pena de
um a dois terços se, “em consequência do aborto ou da tentativa de aborto,
resultar má formação do feto sobrevivente” (art. 127,§1º). Esse parágrafo
parece ter sido incluído para estimular o aborteiro a fazer abortos “bem
feitos”, evitando que, por “descuido”, ele deixe a criança com vida e má formada.
As maiores mudanças, porém, estão no artigo 128. Ele deixa
de começar por “não se pune o aborto” e passa a começar por “não há crime de
aborto”. O que hoje são hipóteses de não aplicação da pena (escusas
absolutórias) passa a ser hipóteses de exclusão do crime. E a lista é
tremendamente alargada. Basta que haja risco à “saúde” (e não apenas à “vida”)
da gestante (inciso I), que haja “violação da dignidade sexual” (inciso II),
que a criança sofra anomalia grave, incluindo a anencefalia (inciso III) ou
simplesmente que haja vontade da gestante de abortar (inciso IV). Neste último
inciso o aborto é livre até a décima segunda semana (três meses). Basta que um
médico ou psicólogo ateste que a gestante não tem condições “psicológicas” (!)
de arcar com a maternidade.
Eutanásia e suicídio assistido
“Matar por piedade ou compaixão” (eutanásia) passa a ser um
crime punível com prisão, de dois a quatro anos (art. 122), muito abaixo da
pena prevista para o homicídio: prisão, de seis a vinte anos (art. 121). Porém,
o juiz pode reduzir a pena da eutanásia a zero, avaliando, por exemplo, “os
estreitos laços de afeição do agente com a vítima” (art. 122, § 1º). Também o
auxílio ao suicídio, em tese punível com prisão, de dois a seis anos (art.
123), pode ter sua pena reduzida a zero, nos mesmos casos descritos para a
eutanásia (art. 123, §2º).
Renúncia ao excesso terapêutico
O artigo 122, § 2º parece inspirado na doutrina, aceita pela
Igreja, de que o paciente pode renunciar a tratamentos desproporcionais aos
resultados, que lhe dariam apenas um prolongamento penoso e precário da
vida[3]. A redação, no entanto, é infeliz: fala em deixar de fazer uso de meios
“artificiais” para manter a vida do paciente em caso de “doença grave e
irreversível”. Ora, a medicina é uma arte e todos os seus meios são
artificiais. Do modo como está escrito, o parágrafo pode encobrir verdadeiros
casos de eutanásia por omissão de cuidados normais devidos ao doente.
Infanticídio indígena
Há tribos indígenas que costumam matar recém-nascidos quando
estes, por algum motivo, são considerados uma maldição. De acordo com o
projeto, tais crianças ficam sem proteção penal, desde que se comprove que o
índio agiu “de acordo com os costumes, crenças e tradições de seu povo” (art.
36).
“Preconceito” de gênero
De todos os males contidos no projeto, o mais difícil de
corrigir são as cláusulas onde foi inserida a ideologia de gênero, que
considera o homossexualismo (e talvez também a pedofilia e a bestialidade) como
uma legítima “opção” sexual ou “orientação” (ao invés de desorientação) sexual.
O PLC 122/2006 (projeto anti-“homofobia”) da Senadora Marta Suplicy (PT/SP) foi
todo inserido no PLS 236/2012. Está no alvo do projeto o bispo diocesano que
não admite um homossexual no seminário ou que o afasta do seminário após
descobrir sua conduta (art. 472, V), o dono de hotel que se recusa a hospedar
um “casal” de homossexuais (art. 472, VI, a) e a mãe de família que demite a
babá que cuida dos seus filhos após descobrir que ela é lésbica (art. 472, II).
Poderá talvez ser acusado de “tortura” o pregador que, ao comentar um texto
bíblico desfavorável ao homossexualismo, “constranger alguém” do auditório,
causando-lhe sofrimento “mental” (art. 468, I, c). Segundo o projeto, tais
condutas são motivadas por “preconceito” de “gênero”, “identidade ou orientação
sexual”. São crimes imprescritíveis, inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou
anistia (art. 474 e 468, § 7º).
A perseguição religiosa está preparada e tende a ser
violenta. No entanto, o motivo mais grave que nos deve levar a rejeitar tais
cláusulas não está nas suas consequências práticas, mas nos princípios em que
se baseiam. Toda pessoa, ainda que pratique condutas sexuais reprováveis, como
a pedofilia, o estupro, o incesto, a bestialidade ou o homossexualismo,
continua sendo pessoa. E é somente na qualidade de pessoa que ela tem direitos.
A deformidade moral que a atinge não pode acrescentar-lhe direitos. Quem
aceitaria que alguém, ao assassinar um pedófilo, recebesse, além da pena devida
ao homicídio, uma pena extra por demonstrar “intolerância” ou “preconceito”
contra a pedofilia? É justamente isso que pretende o projeto. Agravar a pena de
todos os crimes, se eles forem praticados por “preconceito” de “orientação
sexual e identidade de gênero” (art. 77, III, n). Essa inadmissível agravante
genérica aparece também em crimes específicos, como o homicídio (art. 121, §1º,
I), a lesão corporal (art. 129, § 7º, II), a injúria (art. 138, § 1º), o
terrorismo (art. 239, III), o genocídio (art. 459), a tortura (art. 468, I, c)
e o racismo (art. 472).
Deus se compadeça de nós.
Anápolis, 11 de setembro de 2012.
Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz
Presidente do Pró-Vida de Anápolis
[1] Assim aconteceu com o anteprojeto de Código Penal de
1998, que depois de publicado pelo Ministério da Justiça, ficou por um bom
tempo sujeito às críticas da sociedade, inclusive dos Bispos. Porém, nunca
chegou a tornar-se projeto de lei.
[2] Em 16/06/2011 o Senador Pedro Taques (PDT/MT) apresentou
o Requerimento 756/2011 solicitando a criação de uma Comissão de Juristas para
reformar o Código Penal no prazo de 180 dias. O requerimento foi aprovado pelo
plenário em 10/08/2011. A Comissão começou a trabalhar em 18/10/2011.
[3] Cf. JOÃO PAULO II, Evangelium Vitae, n. 65.