O que aconteceu com esse governo foi mais um equívoco na
história das trapalhadas que a esquerda leninista comete sempre, agora dentro
do PT. O fracasso é o grande orgulho dos revolucionários masoquistas. Pelo
fracasso constrói-se uma espécie de 'martírio enobrecedor', já que socialismo
hoje é impossível. Erraram com tanta obviedade (no mensalão por exemplo ou no
escândalo dos 'aloprados'), com tanto desprezo pelas evidências de perigo,
tanta subestimação do inimigo, que a única explicação é o desejo de serem
flagrados. Sem contar o sentimento de superioridade que se arrogaram sobre nós,
os 'alienados burgueses neoliberais'.
Conheço a turminha que está no poder hoje, desde os idos de
1963, e adivinhava o que estava por vir. Conheci muitos, de perto.
Nos meus 20 anos, era impossível não ser 'de esquerda'. Nós
queríamos ser como os homens heroicos que conquistaram Cuba, os longos cabelos
de Camilo Cienfuegos, o charuto do Guevara, a 'pachanga' dançada na chuva linda
do dia em que entraram em Havana, exaustos, barbados, com fuzis na mão e
embriagados de vitória.
A genialidade de Marx me fascinava. Um companheiro me disse
uma vez: "Marx estudou economia, história e filosofia e, um dia, sentou na
mesa e escreveu um programa racional para reorganizar a humanidade". Era a
invencível beleza da Razão, o poder das ideias 'justas', que me estimulava a
largar qualquer profissão 'burguesa'. Meu avô dizia: "Cuidado, Arnaldinho,
os comunistas se acham médiuns, aquilo parece tenda espírita...". Eu não
liguei e fui para os 'aparelhos', as reuniões de 'base' e, para meu desespero,
me decepcionei.
Em vez do charme infinito dos cubanos, comecei a ver o erro,
plantado em duas raízes: ou o erro de uma patética organização estratégica que
nunca se completava e, a 'margarida que apareceu' agora com todo esplendor: a
Incompetência (com 'i' maiúsculo), a mais granítica, imaculada incompetência
que vi na vida. Por quê? Porque a incompetência do comuna típico é o despreparo
sem dúvidas, é a burrice alçada à condição de certeza absoluta. É um ridículo
silogismo: "Eu sou a favor do bem, logo não posso errar e, logo, não
preciso estudar nem pesquisar". Por que essa incompetência larvar, no DNA
do comuna? Porque eles não lutam pelo 'governo' de algo; lutam pelo poder de um
futuro que não conhecem. O paradoxo é que odeiam o que têm de governar: um país
capitalista. Como pode um comuna administrar o capitalismo? O velho stalinista
Marcos Stokol confessou outro dia no jornal: "O PT entrou no governo
porque queremos mudar o Estado". Todos os erros e burrices que eu via na
UNE e nas reuniões do PC eram de arrepiar os cabelos. Eu pensei horrorizado
quando vi o PT no poder: vão fornicar tudo. Fornicaram.
E olhem que estou me referindo apenas ao 'rationale' básico,
psicológico, de uma 'boa consciência' incompetente que professam. Sem mencionar
a roubalheira justificada pela ideologia - "desapropriar os bens da
burguesia para nossos fins". A fome de uma porcada magra invadindo o
batatal - isso eu não esperava.
Como era fácil viver segundo os escassos 'sentimentos'
catalogados pelos comunas: ou o companheiro estava sendo 'aventureiro' ou
'provocador' ou então era 'oportunista, hesitante, pequeno-burguês' ou sectário
ou 'obreirista' ou sei lá o quê. Era fácil viver; ignorávamos os ignorantes, os
neuróticos, os paranoicos, os psicopatas, os burros e os sempre presentes
filhos da p... Nas reuniões e assembleias, surgia sempre a voz rombuda da
burrice. Aliás, burrice tem sido muito subestimada nas análises históricas. No
entanto, ela é presença obrigatória, a convidada de honra: a burrice sólida,
marmórea. Vivíamos assediados por lugares-comuns. O imperialismo era a
'contradição principal' de tudo (vejam o ardor com que condenaram a 'invasão
americana' de nossos segredos de Estado há pouco. Quais? Quanto a Delta levou,
onde está o Lula?). As discussões intermináveis, os diagnósticos mal lidos da
Academia da URSS sempre despencavam, esfarinhavam-se diante do enigma eterno:
"O que fazer?". E ninguém sabia.
E veio a sucessão de derrotas. Derrota em 64, derrota em 68,
derrota na luta armada, derrotas sem-fim.
Até que surgiu, nos anos 70, uma homem novo: Lula, diante de
um mar de metalúrgicos no ABC. Aí, começou a romaria em volta da súbita
aparição do messias operário, o ungido. Lula foi envolvido num novelo de ideologias
e dogmas dos comunas desempregados, desfigurando de saída o que seria o PT.
Quando comecei a criticar o PT e o Lula, 'petralhas' me
acusaram de ser de direita, udenista contra operários. Não era nada disso; era
o pavor, o medo de que a velha incompetência administrativa e política do
'janguismo' se repetisse no Brasil, que tinha sido saneado pelo governo de FHC.
Não deu outra. O retrocesso foi terrível porque estava tudo pronto para a
modernização do País; mas o avião foi detido na hora da decolagem. Hoje, vemos
mais uma 'revolução' fracassada; não uma revolução com armas ou com o povo, mas
uma revolução feita de malas pretas, de dinheiro subtraído de estatais, da
desmoralização das instituições republicanas. Hoje, vemos o final dessa epopeia
burra, vemos que a estratégia de Dirceu e seus comparsas era a tomada do poder
pelo apodrecimento das instituições burguesas, uma espécie de 'gramscianismo
pela corrupção' ou talvez um 'stalinismo de resultados'.
O perigo é que os intelectuais catequizados ainda pensam:
"O PT desmoralizado ainda é um mal menor que o inimigo principal - os
tucanos neoliberais".
Como escreveu minha filha Juliana Jabor, mestra em
antropologia, "ajudado por intelectuais fiéis, Lula poderá se apropriar da
situação com seu carisma inabalável, para ocupar a 'função paterna' que está
vaga desde o fim do seu governo. Pode ser eleito de novo e a multidão se
transformará, aí sim, em 'massa'. O 'movimento' perderá o seu caráter de
produção de subjetividades e se transformará numa massa guiada por um líder
populista".