Norberto Bobbio, em artigo muito lúcido, mostra que a
democracia surge dos choques entre a praça e o palácio. Ele cita Guicciardini:
“Entre o palácio e a praça existe uma densa névoa ou um muro tão grande que
pouco sabe o povo sobre o que fazem os governantes e por que o fazem, como se o
assunto dos dirigentes fosse algo feito na Índia”. Atualizando a reflexão,
Bobbio adianta que ainda não contamos com uma eficaz sociologia da praça.
Manifestações de rua significam a multidão de pessoas indignadas com os palácios.
A praça reúne muitos indivíduos, a sua forma aberta permite livres discussões.
Quem para ela se dirige tem alvo comum: reivindicar direitos, ouvir líderes.
“Na democracia representativa (…) a praça é a mais visível consequência do
direito de reunião ilimitado quanto ao número de pessoas que possam exercitá-lo
juntas e ao mesmo tempo” (Bobbio). Finaliza o pensador: “Palácio e praça são
expressões polêmicas para designar, respectivamente, governantes e governados,
sobretudo o seu relacionamento de incompreensão recíproca, estranheza,
rivalidade, ainda hoje como no trecho de Guicciardini. (…) Vista do palácio a
praça é o lugar da liberdade licenciosa; visto da praça o palácio é o lugar do
poder arbitrário. Se cai a praça, o palácio também é destinado a cair” (Il
Palazzo e la Piazza).
No ofício de analisar as formas de atuação coletiva, leio
com frequência políticos, colegas da universidade, estudantes, sindicalistas,
profissionais da imprensa. Fiquei preocupado com as visões da praça expressas
em várias entrevistas e textos. O foco dado à baderna e ao vandalismo diminuiu
muito a percepção do importante fenômeno. Terra onde o Estado domina a
sociedade e se põe a serviço de setores diminutos nas políticas públicas, o
Brasil demonstra, desde sua origem histórica, a demofobia que preside o
absolutismo. A certidão política de batismo vem do século 16, quando a razão de
Estado está no auge. Para os governantes e intelectuais que defendem a razão
estatal, o mundo divide-se, como expõe Guicciardini, citado por Bobbio, entre
quem merece respeito, porque vive nos palácios, e a plebe que habita a praça.
Tal assimetria estabelece uma divisão na ordem coletiva (acima os dirigentes,
abaixo os “cidadãos comuns”). Ela é a marca dos Estados que ainda não conhecem
os efeitos das revoluções democráticas. Neles a multidão dos que pagam impostos
obedece sem questionar. E quem controla os impostos manda sem prestar contas. A
força democrática de um país é medida pelo vigor, nele, da prática cunhada
pelos revolucionários ingleses, a accountability. As revoluções modernas
ensinaram aos soberanos lições básicas de responsabilidade.
Os conservadores atacam os “simples cidadãos”, neles vendo
ameaças ao poder estabelecido. Eles exorcizam o “perigo” representado pela
soberania popular. Sempre que o elo político é invocado, do Renascimento ao
século 21, o povo, com seus conflitos, é posto fora dos escalões estatais
porque, na lição platônica, ele segue o contrário da harmonia. François
Hotmann, jurista e autor do tratado intitulado Franco Galia, teme o Her omnes
(Senhor Todo Mundo), apelido dado por Lutero à massa. Os documentos gerados na
literatura grega ou romana mostram desconfiança no povo. Este, para os latinos,
é o “populo exturbato ex profugo”, o “vulgus credulum, imprudens vel impudens,
stolidum”, etc. (Zvi Yavetz: La Plèbe et le Prince). “O povo”, diz Etienne de
la Boétie, “não tem meios para bem julgar porque é desprovido do que fornece ou
confirma o bom juízo, as letras, os discursos e a experiência. Como não pode
julgar, ele acredita nos outros. A multidão acredita mais nas pessoas do que
nas coisas, ela é persuadida pela autoridade de quem fala, e não pelas razões
ditas” (Mémoires touchant l’Édit de Janvier 1562).
Gabriel Naudé, teórico do maquiavelismo que norteia o
governo de Mazarino, diz ser preciso cautela com a “fera de múltiplas cabeças,
vagabunda, errante, louca, estulta, sem freio, sem espírito nem julgamento. O
juízo do povo sempre é tolo e seu intelecto, fraco. A populaça, fera cruel,
enfurece e morde com frequência. Ela odeia as coisas presentes, deseja as
futuras, celebra as pretéritas, sendo inconstante, sediciosa, briguenta,
famélica de boatos, inimiga do repouso e da tranquilidade”. A massa, arremata,
é “inferior às feras, pior do que as feras e mil vezes mais tola dos que as
feras” (Considérations Politiques sur les Coups d’État).
Donoso Cortés, fonte de terríveis governos, não enxerga na
pobreza a origem das massas revoltas. A inveja e o desejo de poder atravessam a
praça, açulada pelos demagogos: “O germe revolucionário reside nos desejos
superexcitados da multidão pelos tribunos que a exploram e beneficiam. ‘Sereis
como os ricos’, vejam aí a fórmula das revoluções socialistas contra as classes
médias. ‘Sereis como os nobres’, vejam aí a fórmula das revoluções das classes
médias contra os nobres. ‘Sereis como os reis’, vejam aí a fórmula das
revoluções dos nobres contra os reis”. As manifestações que abalam o Brasil
seriam expressões do ressentimento invejoso conduzido por ambiciosos e
delirantes.
O juízo negativo sobre a praça gerou o Brasil de Vargas, de
1964 e do AI-5. A esquerda clássica ostenta idêntica ojeriza à rua. Basta
recordar a doutrina leninista sobre a “consciência vinda de fora”. No Partido,
máquina feita para derrubar o Estado burguês e construir a ditadura
“proletária”, intelectuais superiores definiriam o destino das massas. Caso
contrário, Sibéria nelas.
É tempo de mudar a visão da praça. É tempo de saudar a
democracia, apesar dos seus percalços. É tempo de recusar regimes
plebiscitários que reduzem a praça ao monossilábico “sim”, ou “não”. É tempo de
iniciar o diálogo democrático. A etimologia e a semântica proclamam: democracia
é poder do povo, não de privilegiados e palacianos operadores do poder estatal.
Se cair a praça, ensina Bobbio, tombam os palácios. E o remédio é oferecido por
Donoso Cortés: a ditadura.