O Brasil precisa reaprender a contar o caso como o caso foi, usar a palavra justa no lugar do eufemismo malandro e enxergar as coisas como as coisas são. Por exemplo: onde parece haver a Fundação José Sarney existe a fachada de uma organização envolvida em incontáveis bandalheiras. E o que é apresentado como ”impossibilidade de funcionamento” tem cara de queima de arquivo.
Segundo o presidente vitalício, ”os doadores suspenderam suas contribuições pela exposição com que a instituição passou a ser tratada por uma parte da mídia”. Conversa de 171. Os parceiros fugiram antes que o camburão estacione no outro lado da rua. O barulho da sirene começou em junho, quando a Justiça atendeu ao pedido do Ministério Público Federal e determinou a devolução ao governo maranhense do Convento das Mercês.
Expropriado ilegalmente, o convento foi reduzido a refúgio de pecadores pela ”Madre Superiora”, alcunha que identifica Sarney nas suspeitíssimas conversas por telefone entre o filho Fernando e comparsas de alta patente, gravadas pela Polícia Federal. Em julho, foram reprovadas as contas relativas às movimentações financeiras de 2003 a 2007 e o Ministério Público do Maranhão decidiu intervir.
A Fundação vive de esmolas porque sempre fez questão de manter distância dos cofres públicos, fantasiou a Madre Superiora sem chances no Dia do Juízo Final. É muito cinismo, berram os fatos. Sobram provas materiais de que a turma da Fundação desviou fatias consideráveis de boladas extorquidas do governo estadual, do Ministério da Cultura, da Petrobras e da Eletrobras, fora o resto.
Acumulam-se documentos que confirmam a chegada de quantias milionárias originárias de empresas fantasmas plantadas em paraísos fiscais no exterior por amigos de Sarney. São tantas as evidências comprometedoras que o chefe resolveu apressar o encerramento das atividades e evadir-se do endereço de má fama. Pouco importa. O abandono do local do crime não encerra o caso, não revoga a delinquência, não inocenta o culpado.
Mais de nove meses depois dos primeiros achados nas catacumbas do Senado, Sarney continua na presidência da Casa do Espanto, Pedro Simon desistiu de convencê-lo a largar o osso, Artur Virgílio já não acha intolerável a presença do chefão no centro da Mesa, Álvaro Dias não tem mais nada a investigar, Eduardo Suplicy trocou o cartão vermelho de juiz do Sarney pela cueca vermelha do Super-Homem, Aloízio Mercadante coleciona rendições em outras frentes, Romero Jucá e Renan Calheiros vão comemorar o reveillon em liberdade. A turma do pântano atravessou impune mais um ano. A oposição não se opõe. O Estadão continua sob censura.
Mas nenhum dos muitos crimes comprovados prescreveu. Os bandidos continuam bandidos, e o Brasil que presta tem o dever de seguir exigindo a punição dos fora-da-lei: a alternativa para a resistência é a capitulação. A dedetização judicial da Fundação não pode limitar-se ao Convento das Mercês. A ramificação mais lucrativa do grupo prospera em Brasília e usa como base de operações o Ministério de Minas e Energia, chefiado pelo cúmplice Edison Lobão.
O braço da Justiça deve ser estendido aos porões do Senado, dos tribunais manchados por indicações do imortal maranhense e do ministério controlado por candidatos a um banco dos réus. Se tudo der em nada, o Judiciário terá institucionalizado a absolvição prévia dos pecadores da primeira classe.
A bandidagem federal esbanja autoconfiança por confundir maioria com unanimidade. Tratemos de lembrar-lhe todo o tempo que a espécie dos brasileiros honestos não foi extinta.