O boato sobre o fim do Bolsa Família agitou a vida política
do Brasil. Fomos obrigados a contemplar a importância dos boatos na política e
alguns cronistas chegaram a sugerir livros sobre o tema. Eu mesmo fui remetido
às leituras do meio da década dos anos 70: Política e Crime, de Hans Magnus
Enzensberger. Ele destaca o boato num dos ensaios: Wilma Montesi, a vida depois
da morte. No caso, o cenário era a Itália e os rumores após a morte de uma
mulher quase levaram o país a uma guerra civil. O boato no Brasil foi apenas um
susto de fim de semana. Mas o psicodrama que desencadeou mostrou um governo
tenso e desorientado. Forçado por uma trapalhada oficial, teve de confrontar
uma hipótese impensável: o fim do Bolsa Família.
Areação da ministra Maria do Rosário foi amais tradicional,
sobretudo entre governos autoritários: apontar os culpados de sempre, a
oposição. No passado era pior. Os governos apontavam os culpados de sempre, mas
prendiam também os suspeitos de sempre. Alguns líderes de esquerda, na guerra fria,
eram retirados de circulação nas vésperas de grandes datas. Alguns já
esperavam, resignadamente, a polícia com a muda de roupa, escova de dente e o
maço de cigarros.
A reação de Maria do Rosário foi mais linear. A de Dilma
Rousseff é mais complexa. Ela considerou o boato um crime monstruoso. E não há
dúvida de que poderia levar dor, tristeza e até matar gente do coração.
Felizmente, isso não aconteceu. Brecht dizia: pobre do povo que precisa de
heróis. Não se interessou pelo destino dos heróis que precisam de um povo para
salvar. Lembro-me do exílio, de algumas senhoras da Anistia Internacional que
lutavam para liberar presos em outros países e se correspondiam com eles. Uma
delas, quando seu preso foi solto, caiu em depressão. Afinal, era o seu preso,
tantos anos dedicados a ele e, agora, a benfeitora teria o vazio diante de si.
A revelação mais importante do episódio foram as filas dos
que recebem Bolsa Família. Nunca os tínhamos visto em grande número. Nem o PT,
talvez. Cada um tirou suas conclusões do que viu. Muita gente parecia na
fronteira, o que, no caso do Bolsa Família, significa porta de saída. Uma das
entrevistadas disse que tinha ido retirar o seu benefício e depositar um
dinheiro na poupança do marido.
É mais fácil combater a tese pura e simplesmente contrária
ao Bolsa Família. Mas como responder ao argumento de que é preciso investir
mais na porta de saída? Instrumentos existem. Há uma Secretaria de Economia
Solidária, liderada por Paul Singer, mais competente que a maioria esmagadora
dos ministros da coalizão. Faltam Cooperativas, negócios sociais, enfim, um
empurrão mais seguro para que as pessoas encontrem sua própria sobrevivência.
Investir decisivamente nesse rumo significa aproximar-se da vertigem que o
próprio boato suscitou: a da perda de importância da ajuda financeira mensal.
Uma vertigem imaginar um eleitorado completamente livre, que produz sua própria
sobrevivência, não vota por gratidão, mas por esperança num futuro melhor.
O simples fato de usarmos tanto talento represado pela
dependência à bolsa já seria um dínamo econômico. Como grande parte dos
provedores, o PT, um provedor que usa dinheiro público, sempre se faz a
pergunta crucial: ela gosta de mim ou do meu dinheiro? O que o leva a outra
questão: a coalizão é mantida com grande estímulo de cargos e verbas; o
eleitorado, com os laços criados pelo Bolsa Família.
E tome propaganda para nos tranquilizar sobre um futuro
incerto até para eles. A última campanha nos conclama a torcer pelo futebol
brasileiro. O governo nos chama neste período de a Pátria de chuteiras, usando
a frase de Nelson Rodrigues. Em 1970, criticávamos os generais por usarem o
futebol, uma arte popular, a favor do governo. Escrevíamos panfletos lembrando
que a ditadura nada tinha que ver com o talento dos jogadores. No final da
Copa, no jogo contra a Itália, houve até quem tentasse - sem êxito, pois a
emoção foi mais forte - torcer contra o Brasil. Algumas décadas depois, quem
está usando o futebol a seu favor, associando-o à imagem do governo, explorando
um talento que é uma dádiva nacional?
Não estou pedindo a ninguém que coloque a mão na consciência
e desfeche um processo acelerado de inclusão no mercado. A vertigem ainda é
muito forte. O presidente do PT disse que o boato era um terrorismo eleitoral.
Talvez o partido dominante tivesse se aterrorizado. A simples hipótese de
perder aquela massa que recebe Bolsa Família é uma pequena antevisão do vazio
que envolveu a mulher da Anistia Internacional quando seu preso foi solto.
Curioso ver como os novos governantes cada vez mais se
parecem com os antigos. Na escolha dos culpados de sempre, no sequestro do
futebol e também na incômoda posição de quem se coloca como o indutor do
progresso. Sua sobrevivência política depende mais do fechamento que da
abertura da porta de saída, com o potencial de lançar milhares de novos atores
do mundo do trabalho. Se fossem só um grupo de adolescentes, diria que estavam
repetindo o que criticavam nos pais. Só quem vive assustado nos conclama a ser
a Pátria de chuteiras. Nelson Rodrigues, creio, jamais formularia essa frase
pensando num slogan oficial. Certamente, para ele, a Pátria de chuteiras, de
tênis ou sandálias é fruto da espontaneidade popular. Como palavra de ordem
oficial, só é possível uma Pátria de ferraduras.
Tentaram nos fazer tocar caxirolas. Não deu certo, o próprio
ministro da Justiça condenou o artefato. A presidente Dilma até que tocou
caxirola para a plateia no Planalto. Não sabia do perigo. Após queimar as mãos
com um pequeno instrumento musical, saiu inaugurando estádios, dando pontapés
iniciais. Com todo respeito à segunda mulher mais poderosa do mundo, se todo
mundo chutar como ela, a Pátria de chuteiras vai para o buraco, assim como iria
se todos fizessem embaixadas como o general Médici em 1970. De lá para cá, o
marketing dominou a política, melhorou os penteados, mas continua o mesmo:
escondendo o verdadeiro jogo.