As manifestações de junho revelaram ao País a Mídia Ninja,
grupo de jovens que usa smartphones para divulgar ao vivo os protestos de rua e
eventuais confrontos com a polícia. Tive a oportunidade de entrevistar um
deles, Bruno Torturra, e na ocasião tentei quebrar um pouco a rígida dicotomia
entre imprensa profissional e jovens amadores com uma visão excludente do
processo.
Creio que grande parte dos temas agitados nas ruas do Brasil
foi divulgada pela imprensa profissional. O que as redes sociais fizeram foi
metabolizar os escândalos e deslizes amplamente registrados nos grandes
veículos de comunicação. É inegável que existe mão dupla. A grande imprensa é
muito atenta às redes sociais e procura pescar todos os temas que lhe parecem
dignos de publicação. É assim que ela trabalha – ou deveria –, com antenas
sempre ligadas no que acontece em qualquer lugar, o mundo virtual incluído.
Na cobertura das manifestações a Mídia Ninja conseguiu ficar
bem próxima dos jovens que protestavam e dos policiais que, eventualmente, os
reprimiam. Isso era melhor que as tomadas de helicóptero, embora a visão de
cima dê também boa ideia da magnitude do protesto e de como evolui
espacialmente. Mas, como dizia Robert Capa, se a imagem não é tão boa, é porque
não chegamos perto o bastante do objetivo. É a visão de um fotógrafo de guerra
que se pode estender a outros campos.
Em nova entrevista de TV, os jovens da Mídia Ninja deram a
entender que há uma crise na imprensa clássica e eles representam uma
verdadeira alternativa a ela, no futuro. Isso se choca com meio século de
experiência no ofício e o exame de outras tentativas, mundo afora, de achar um
caminho para as limitações da imprensa, sobretudo as que se revelaram com o
impacto da revolução digital.
A Mídia Ninja dá a entender que pretende financiar seu
trabalho com o apoio dos próprios leitores. É o que tentam fazer algumas
agências de fotógrafos, via crowdfunding. Na verdade, a iniciativa é uma
extensão de algo que já deu certo no mundo musical, projetando inúmeros grupos
independentes. Mas as experiências de financiamento entre os fotógrafos partem
de um portfólio mostrando a capacidade específica do profissional e do
detalhamento do projeto a ser financiado. É uma tentativa de reinserir no fluxo
de informações um material de alta qualidade que as circunstâncias econômicas
das revistas já não permitem financiar. Impossível buscar informação em vários
cantos do País e do mundo sem recursos para passagens, hotel e aluguel de
carro, para ficar só nas despesas mais rotineiras.
A primeira condição de crowdfunding, em jornalismo, é a alta
qualidade do material produzido, o que a Mídia Ninja não pode oferecer, pelas
circunstâncias da cobertura e pelo precário domínio técnico. Viver disso
significa preocupar-se com detalhes: ângulo, luminosidade, enquadramento,
composição – enfim, as técnicas que permitem transmitir a informação com
nitidez. Se tudo isso é considerado secundário, o que é o principal? Estar
presente e tomar o partido dos oprimidos, ainda que a mensagem seja um lixo técnico.
Isso me remete às discussões que tive com Glauber Rocha
pelas ruas de Havana e me valeram um mal-entendido. O sonho de Glauber era
associar-se aos grupos de guerrilha e ser o cineasta de suas ações armadas
contra as ditaduras militares do continente. Disse-lhe francamente que achava a
ideia problemática. Glauber teria de morrer como um grande cineasta e se
tornaria um documentarista precário dos fatos, sempre escravizado pela
segurança da ação e pela obediência ao comando da guerrilha. Ele entendeu que
estava propondo seu suicídio e por muitos anos não falou comigo.
O problema que discutíamos em Havana ainda é válido hoje. É
impossível expressar o talento pessoal, amplamente, tendo de se submeter aos
interesses de um grupo, que decide o que e como publicar. Os jovens da Mídia
Ninja acham que a grande imprensa é parcial. E, em vez de defender a
imparcialidade, tomam partido e afirmam que a verdade surgirá do intercâmbio de
múltiplas parcialidades. Essa discussão é uma das mais antigas e, diria, entediantes,
depois de tantas madrugadas nos bares de Ipanema. Apontar a câmera para um
lado, e não para o outro, já significa uma escolha pessoal. Imagens, verbos,
adjetivos, tudo isso expressa uma tomada de posição. Em certos fatos
jornalísticos, que envolvem também a concepção democrática de cada um, fica
visível onde está e o que quer o narrador.
Mas existem certos princípios na informação de qualidade. Um
é a importância de ouvir os dois lados. Outro é a humildade do repórter, que
mesmo tendo uma posição sobre determinado tema não tenta conformar a realidade
à sua tese. É preciso estar aberto para o que realmente está acontecendo e
jogar para o alto as ideias que não correspondam aos fatos.
Quando alguém da Mídia Ninja é preso, a grande imprensa
relata em detalhes e busca explicações da polícia. Quando carros das emissoras
de TV são queimados por manifestantes, é de esperar que a Mídia Ninja também
combata esse tipo de violência e todas as outras formas de agressão. Se o nome
do jogo é informação, a liberdade de imprensa é um bem comum. Quem vai
sobreviver ao tsunami da revolução digital, quem vai naufragar, tudo é uma
questão de talento e capacidade de adaptação aos tempos revoltos. Não creio em
profissionais especializados em manifestações, muito menos sustentados por
grupos em fusão, que se desfazem e recompõem indefinidamente.
Ao ver na TV a história de coletivos com casas próprias e
líderes que combinam picaretagem política com certo tom religioso, pressinto os
descaminhos que se impõem, com dinheiro oficial, à cultura brasileira.
Descaminhos que, no fundo, desprezam a cultura e a substituem pelo militante
fanático. Quem não se lembra da Revolução Cultural chinesa? Foi um dos momentos
mais indignos da História humana. É preciso ler um pouco sobre isso para evitar
algumas novidades que, no fundo, são apenas o retorno da barbárie.