Em nome da fé já se fez muito bem. Mas também muito mal. Do
ponto de vista religioso, a mesma Igreja Católica em que militou o inquisidor
Torquemada deu os dois Franciscos – o santo de Assis e o bispo de Roma. A
política (do grego, pertinente aos cidadãos) republicana (do latim, referente à
coisa pública) foi o ofício do assassino serial Adolf Hitler e do democrata (do
grego, governo do povo) Winston Churchill. Então, não é a crença que massacra o
homem, mas a natureza humana que usa a convicção para destruir. O
fundamentalismo terrorista dos asseclas de Bin Laden é mais próximo dos autos
de fé da Inquisição cristã que da tolerância dos Estados islâmicos medievais. A
visita do papa ao Brasil confirmou tais evidências em gestos e nas suas
pregações ao longo da semana passada.
Nela ele conviveu com a ineficiência do Estado, manifestada
pelo rosário de lambanças iniciado com o erro dos batedores em sua chegada e
encerrada com a interdição do Campo da Fé, em Guaratiba. E também com o afeto
emocionado do brasileiro comum, que o recebeu, abraçou e beijou. Ao desembarcar
do avião, forçado a fazer hora voando antes de pousar porque a presidente Dilma
se atrasou, ele foi conduzido por batedores direto para o congestionamento de
um estacionamento de ônibus de peregrinos em plena Avenida Presidente Vargas.
Do contato com o Brasil real saiu sem um arranhão e coberto de beijos, prova de
que só o amor protege. Dali o levaram para encontrar a zelite do Brasil oficial
no Palácio Guanabara – um erro dos hierarcas católicos, similar ao dos
responsáveis por sua escolta.
Os encarregados da programação submeteram o papa a um
discurso quase tão grosseiro quanto enfadonho. Nele Dilma se limitou a fazer
mais um relato complacente e pouco fiel de falsos avanços de sua gestão. E
deu-se ao desplante de reduzir a História do Brasil aos últimos dez anos, sob o
PT de Lula e dela. Ou seja, negou o legado de luminares do povo brasileiro que
viveram antes da posse do padrinho e protetor dela: José Bonifácio de Andrada e
Silva, Machado de Assis, Euclides da Cunha, Gilberto Freyre, Luiz Gonzaga, Tom
Jobim e tantos outros. Além disso, ela recitou patranhas de marketing, tratando
o visitante como um papagaio de pirata de seu palanque para a reeleição. Nem
ela própria parecia crer nelas, tal foi a falta de convicção com que as
enunciou.
Naquela ocasião o hóspede, polido como a anfitriã não foi,
respondeu com as gentilezas de praxe de um pároco agradecendo a água que lhe
servia uma devota paroquiana. Mas, ao longo de suas práticas, foi respondendo com
recados certeiros a uma a uma dessas grosserias da recepção e das deselegantes
anedotas sem graça sobre sua origem portenha contadas pelo prefeito do Rio,
Eduardo Paes. No Hospital São Francisco de Assis o papa detonou o discurso
politicamente correto de quem considera o consumo de drogas apenas uma doença e
seu comércio, mera consequência de mazelas sociais. Chamou os traficantes de
“mercadores da morte” e disse que só se combate o tráfico entre os jovens
praticando a justiça e educando sempre.
No mais relevante pronunciamento social de seu pontificado,
proferido na favela de Varginha, ele disparou dois torpedos diretamente na
maior negação à natureza democrática nas Repúblicas de hoje: o marketing
político. No primeiro atacou o conceito de pacificação das comunidades com a
ocupação de suas ruas por policiais armados. “Nenhum esforço de pacificação
será duradouro, não haverá harmonia e felicidade para uma sociedade que ignora,
que deixa à margem, que abandona na periferia parte de si mesma. Uma sociedade
assim simplesmente empobrece a si mesma, perde algo de essencial para si
mesma”, pontificou. Essa sentença profética atingiu no cerne a propaganda
oficial do desastrado governador Sérgio Cabral.
O outro torpedo atingiu a empáfia petista no peito. “Somente
quando se é capaz de compartilhar é que se enriquece de verdade. Tudo aquilo
que se compartilha se multiplica. A medida da grandeza de uma sociedade é dada
pelo modo como esta trata os mais necessitados, que não têm outra coisa senão a
sua pobreza”, pregou. O nobre conceito igualitário, transmitido às vítimas
preferenciais dessa ilusão, silencia a fanfarra federal que celebra a inclusão
deste país entre as maiores economias mundiais.
Ao falar para a sociedade e políticos, no Teatro Municipal,
Francisco sintetizou sua pregação na Jornada Mundial da Juventude no Rio: “O
futuro exige a tarefa de reabilitar a política”. A frase do pregador resume a
tarefa de todos os cidadãos, pertençam ou não a quaisquer partidos políticos,
professem ou não algum credo religioso. Da mesma forma corajosa como apregoa a
refundação de sua “Igreja de Cristo”, Francisco transferiu aos peregrinos a
tarefa de lutar para tentar restaurar o sentido da origem etimológica da
palavra, que no mundo inteiro, e no Brasil em particular, passou a significar
exatamente o oposto do princípio que a fundou.
Essa restauração do poder da cidadania, segundo o papa,
implica condições que ele fez questão de lembrar. Uma delas é a
responsabilidade cívica da boa-fé pública: “O sentido ético aparece nos nossos
dias como desafio histórico sem precedentes”. Outra, a tolerância em tudo e,
particularmente, na profissão de fé: “Favorável à pacífica convivência entre
religiões diversas é a laicidade do Estado”. A economia com visão humanista é
mais um item: “O futuro exige visão humanista da economia, evitando elitismos e
erradicando a pobreza”. E isso só pode ser feito com o respeito a ideias e
posturas alheias: “Entre a indiferença egoísta e o protesto violento, há uma
opção sempre possível – o diálogo”.
Francisco prometeu voltar em 2017. Deus queira que até lá as
sementes luminosas que semeou tenham germinado aqui.