A lembrança dos 50 anos da queda de João Goulart ocupou
amplo espaço na imprensa. Nenhum outro acontecimento da história do Brasil foi
tão debatido meio século depois do ocorrido. Para um otimista, isto poderia
representar um bom sinal. Afinal, o nosso país tem uma estranha característica
de esquecer o que ocorreu ontem. Porém, a reflexão e o debate sobre 1964 e o
regime militar acabaram sendo dominados justamente por aqueles que conduziram o
país à crise da república populista e que negaram os valores democráticos nos
anos 1960-1970.
A tendência à hagiografia mais uma vez esteve presente. João
Goulart foi transformado em um presidente reformista, defensor dos valores
democráticos e administrador capaz. Curiosamente, quando esta narrativa é
cotejada com relatos de assessores, como o ministro Celso Furtado, ou de um
amigo, como o jornalista Samuel Wainer, cai por terra. Furtado, em entrevista à
revista “Playboy” (abril, 1999) disse que Jango “era um primitivo, um pobre de
caráter”. Wainer relatou que “uma vez por mês, ou a cada dois meses, eu
visitava os empreiteiros e recolhia suas doações, juntando montes de cédulas
que encaminhava às mãos de João Goulart. (…) Eu poderia ter ficado
multimilionário entre 1962 e 1964. Não fiquei.” (“Minha razão de viver”, p.
238).
Não é possível ignorar o caos instalado no país em março de
1964. A quebra da hierarquia militar incentivada pelo presidente da República é
sabidamente conhecida. A gravidade da crise econômica e a inépcia governamental
em encontrar um caminho que retomasse o crescimento eram mais que evidentes. O
desinteresse de Jango de buscar uma solução negociada para o impasse não pode
ser contestado: é fato. O apego às vazias palavras de ordem como um meio de
ocultar a incompetência político-administrativa era conhecido. Conta o senador
Amaral Peixoto, presidente do Partido Social Democrático, que em conversa com
Doutel de Andrade, um janguista de carteirinha, este, quando perguntado sobre o
projeto de reforma agrária, riu e respondeu: “Mas o senhor acredita na reforma
agrária do Jango? No dia em que ele fizer a reforma agrária, o que vai fazer
depois?” (“Artes da política”, p.455)
Também causa estranheza a mea culpa de alguns órgãos de
imprensa sobre a posição tomada em 1964. A queda de Jango deve ser entendida
como mais um momento na história de um país com tradição (infeliz) de
intervenções militares para solucionar crises políticas. Nos 40 anos
anteriores, o Brasil tinha passado por diversas movimentações e golpes
civis-militares. Basta recordar 1922, 1924, Coluna Prestes, 1930, 1932, 1935,
1937, 1938, 1945, 1954, 1955 — tivemos três presidentes da República e dois
golpes no mês de novembro – e 1961.
Jogar a cartada militar fazia parte da política. E nunca
tinha ocorrido uma intervenção militar de longa duração. Esperava-se um governo
de transição que garantisse as eleições de 3 de outubro de 1965 e a posse do
eleito em 31 de janeiro de 1966. Esta leitura foi feita por JK — e também por
Carlos Lacerda. Os dois principais antagonistas da eleição que não houve
imaginavam que Castello Branco cumpriria o compromisso assumido quando de sua
posse: terminar o mandato presidencial iniciado a 31 de janeiro de 1961.
JK imaginou que Castello Branco era o marechal Lott e que
1964 era a repetição — um pouco mais agudizada — da crise de 1955. Errou feio.
Mas não foi o único. Daí a necessidade de separar 1964 do restante do regime
militar. Muitos que foram favoráveis à substituição de Jango logo se afastaram
quando ficou patente a violação do acordado com a cúpula militar. Associar o
apoio ao que se imaginava como um breve interregno militar com os desmandos do
regime que durou duas décadas é pura hipocrisia.
Ainda no terreno das falácias, a rememoração da luta armada
como instrumento de combate e vitória contra o regime foi patética. Nada mais
falso. Nenhum daqueles grupos — alguns com duas dúzias de militantes — defendeu
em momento algum o regime democrático. Todos — sem exceção — eram adeptos da
ditadura do proletariado. A única divergência é se o Brasil seguiria o modelo
cubano ou chinês. Não há qualquer referência às liberdades democráticas — isto,
evidentemente, não justifica o terrorismo de Estado.
A ação destes grupos os aproximaram dos militares. Ambos
entendiam a política como guerra — portanto, não era política. O convencimento,
o respeito à diversidade, a alternância no governo eram considerados meras
bijuterias. O poder era produto do fuzil e não das urnas. O que valia era a
ação, a força, a violência, e não o discurso, o debate. Garrastazu Médici era,
politicamente falando, irmão xifópago de Carlos Marighella. Os extremos tinham
o mesmo desprezo pelo voto popular. Quando ouviam falar em democracia, tinham
vontade de sacar os revólveres ou acionar os aparelhos de tortura.
Em mais de um mês não li ou ouvi qualquer pedido de
desculpas públicas por parte de ex-militantes da luta armada. Pelo contrário,
se autoproclamaram os responsáveis pelo fim do regime militar. Ou seja, foram
derrotados e acabaram vencedores. Os policiais da verdade querem a todo custo
apagar o papel heroico da resistência democrática. Ignoraram os valorosos
parlamentares do MDB. Alguém falou em Lysâneas Maciel? Foi ao menos citado o
senador Paulo Brossard? E a Igreja Católica? E os intelectuais, jornalistas e
artistas? E o movimento estudantil? E os sindicatos?
Em um país com uma terrível herança autoritária, perdemos
mais uma vez a oportunidade de discutir a importância dos valores democráticos.