Até 30 anos atrás no Brasil e 50 anos atrás no resto do
mundo, o surf era um esporte marginalizado, visto como coisa de vagabundo. O
que acabou com esse preconceito? O que transformou o surf num esporte
respeitado? Não… Não foram campanhas de conscientização promovidas por
governos. Não foi nenhum movimento coletivista que cobrou cotas na mídia e
incentivos financeiros ao esporte. Foi o capitalismo. Foram pessoas visando o
lucro. Foi o conjunto de ambições individuais que transformou o surf num
esporte admirável.
Desde o começo do surf moderno, quase um século atrás, seus
praticantes o tinham como um estilo de vida quase transcendental, que os
distinguia do restante da sociedade. Sentiam-se puristas. Paz, amor e surf.
Eram pequenos grupos de amigos que surfavam praias desertas, livres das
multidões e das pressões urbanas. Mas essa “transcendentalidade” era difícil de
ser mantida. As pranchas que improvisavam para surfar eram péssimas. Sem roupas
adequadas, passavam muito frio no inverno. A polícia os perseguia. Os
motoristas dos ônibus os rejeitavam. Dias de boas ondas surgiam no meio da
semana, coincidindo com o horário de trabalho. O simples ato de ir surfar
exigia grandes sacrifícios.
As necessidades e os desejos eram comuns: Precisavam de
equipamentos mais adequados; desejavam mais respeito da sociedade e uma forma
de se sustentarem sem terem que se corromper aos rigores de expedientes
formais.
Naturalmente, todas essas necessidades e desejos foram sendo
realizados…
Alguns surfistas começaram a se destacar pela qualidade das
pranchas e dos equipamentos que produziam para si mesmos, gerando encomendas de
amigos. Assim, começaram a ser fabricadas as primeiras pranchas feitas
especialmente para o surf; e também bermudas adequadas, roupas de neopreme para
suportar a água fria e outros acessórios.
A melhoria das condições da prática do esporte não apenas
atraiu mais adeptos, mas também melhorou as performances dentro d’água, fazendo
os surfistas se tornarem cada vez mais competitivos uns com os outros,
motivando a realização de pequenos campeonatos entre amigos e entre grupos de
cidades diferentes.
Aqueles surfistas que começaram a fabricar os equipamentos,
também começaram a competir entre si pela preferência de seus
colegas-consumidores. Enxergando que a melhor forma de manterem seu estilo de
vida no surf era desenvolverem-se como fabricantes de equipamentos do próprio
esporte, estes surfistas-empresários passaram a divulgar suas marcas
organizando campeonatos e patrocinando os colegas mais habilidosos, que
passaram a ser tratados como atletas. O prestígio de cada atleta passou a ser
medido pelo número de vitórias. O prestígio de cada campeonato passou a ser
medido pela premiação que oferecia.
As marcas cresciam na proporção de aumento no número de
praticantes, o que fez surgir também uma grande massa de pessoas que não apenas
prestigiava os eventos e admirava o estilo de vida dos surfistas, mas também
consumia os produtos relacionados a eles. As roupas dos surfistas começaram a
produzidas também para quem não surfava. O sucesso das marcas era proporcional
ao sucesso dos eventos que organizavam, dos atletas que patrocinavam e da
qualidade dos produtos que ofereciam.
Pranchas e equipamentos melhores tornavam o esporte cada vez
mais seguro e as performances cada vez mais arrojadas. Na disputa pelo mercado,
as marcas profissionalizaram surfistas para que eles vivessem exclusivamente do
surf, para se tornarem cada vez melhores, para ganharem cada vez mais
campeonatos, para serem cada vez mais vistos pelos consumidores como símbolo da
qualidade da própria marca. Em troca dos salários e das regalias, as marcas
passaram a cobrar de seus atletas também uma conduta social exemplar, sem
envolvimento em confusões ou com drogas, para que nada pudesse sujar a imagem
da empresa − o capitalismo acabou com o estereótipo de surfista drogado e
vagabundo.
Ídolos surgiram, assim como uma massa de moleques desejando
ter a vida desses ídolos. Os salários e as premiações melhoravam ano após ano…
O esporte passou a ser mais bem organizado com a criação de associações e
categorias de competição. Diante de todo esse desenvolvimento, a mídia começou
a enxergar um novo mercado de anunciantes. Empresas de outros segmentos também
começaram a patrocinar os campeonatos para divulgar suas marcas.
O resultado desse conjunto de iniciativas e interações
privadas é que hoje o surf é um esporte respeitado e admirado em todo o mundo,
entre todas as camadas sociais. Sua indústria movimenta dezenas de bilhões de
dólares, empregando centenas de milhares de pessoas. Seus ídolos ganham
milhões. Muitos surfistas sequer precisam competir. Precisam, apenas, emprestar
seu talento e sua imagem a campanhas de publicidade, na maioria das vezes em
filmes e seções de fotos feitos em lugares paradisíacos, distantes do alvoroço
das cidades.
Ou seja: os surfistas de hoje realizam os sonhos dos
surfistas de décadas atrás. Tudo isso, vale salientar, graças às ambições de
“meia-dúzia” de pessoas que, pensando em si mesmas, não apenas ofereceram
melhores equipamentos aos colegas de praia, mas também transformaram um esporte
numa referência de estilo de vida. Graças às ambições capitalistas daqueles que
criaram as primeiras marcas de surf, hoje temos empresas gigantescas que
patrocinam atletas e campeonatos e ainda viabilizam diversas ações sociais e
ambientais em todo o mundo.
Para cada empresário do surf que enriqueceu, há dezenas de
milhares de pessoas que podem adquirir pranchas, roupas e equipamentos a preços
acessíveis, e o mais importante: têm o respeito da sociedade e apoio da família
para surfar.
Para cada grande empresa do mercado do surf, há dezenas de pequenas
marcas tentando abocanhar parte do mercado patrocinando surfistas amadores e
eventos regionais.
Onde esteve o Estado nesse processo todo? Para a sorte do
esporte, o Estado sempre esteve distante ou contra. Hoje, a polícia não mira os
surfistas numa blitz como fazia antes. Hoje, a polícia sabe que no carro que
leva um punhado de pranchas não estão vagabundos quase anônimos, mas sim
cidadãos que sustentam um esporte que aparece tanto na campanha publicitária do
lançamento de um novo automóvel, quanto na programação da Globo. Hoje, o Estado
sabe que o surf é um esporte forte e independente. O surf não recebe dinheiro
do Ministério dos Esportes. O surf não tem o menor interesse em fazer parte das
Olimpíadas. O surf se sustenta. O surf continua marginal, porém, à margem
apenas do Estado.
Graças às ambições individuais daqueles malucos de décadas
atrás, o esporte cresceu tanto que hoje temos entre os surfistas juízes,
artistas, celebridades e empresários dos mais diferentes setores; e engana-se
quem diz que a popularização do surf tirou sua poesia, transformando um esporte
numa mera cultura de massa.
Enquanto milhões de surfistas de fim de semana acotovelam-se
nas praias urbanas, os surfistas de verdade, aqueles que têm o esporte como
estilo de vida, usufruem de condições muito melhores para viajar para lugares
distantes, livres das multidões. Contam com suporte para as viagens, com sites
de previsão das condições do mar e ainda podem registrar com facilidade suas
ondas em fotos e vídeos.
Daqui alguns dias Gabriel Medina, de 20 anos de idade,
competirá na última etapa do circuito mundial com reais chances de se tornar o
primeiro brasileiro campeão. Quem o fez? O Estado, por meio de programas, leis
ou alguma coisa parecida? Não. Quem o fez foi seu pai, membro da primeira
geração de surfistas profissionais e que há anos acompanha seu filho recebendo
todo o suporte de uma empresa privada, que visa o lucro. Empresa criada por um
surfista.
Graças às ambições de muitos empresários, daqui uns dias
todos os surfistas e simpatizantes do esporte poderão assistir à final do
circuito mundial, no Havaí, por meio de uma transmissão ao vivo, com diversas
câmeras e entrevistas in loco, algumas com os atletas ainda dentro d’água.
Desejando obter lucro, distribuirão não apenas prêmios aos competidores, mas
também salários às centenas de pessoas que compõem a equipe técnica do circuito
e ainda levarão alegria a dezenas de milhões de fãs do esporte espalhados pelo
mundo.
Graças às ambições de outros empresários, um surfista pobre
e sem talento – porém apaixonado – como eu, pode estar hoje na Califórnia
surfando algumas das ondas que sempre sonhou e ainda compartilhar essas
reflexões por meio de um computador que cabe na mochila e que se conecta a todo
o mundo sem se utilizar sequer de um cabo.
O conjunto de iniciativas e interações privadas que tirou o
surf da marginalidade é o mesmo que nos deu todas as facilidades e prazeres que
desfrutamos hoje; e se ainda há muitos indivíduos que não desfrutam disso, é
porque ainda há muito Estado entre as pessoas e a realização dos desejos dessas
mesmas pessoas.