O Brasil queria ligar suas duas maiores cidades com um
trem-bala. Uma obra de bilhões de dólares para ser inaugurada até a Copa do
Mundo. Um empresário italiano acusado de fraude e um político brasileiro se
apresentaram como solução, encenando uma peça de mistérios até hoje
indecifrados.
Um dos homens apontou o dedo para a ferrovia como se
indicasse a estrada para o futuro. A ligação entre Milão e Turim ainda estava
em obras quando Moreno Gori — italiano parcialmente careca, de queixo
retangular e boca retilínea — garantia que sua empresa, a Itaplan, tinha
experiência de mais de 25 anos no setor de transporte ferroviário,
especialmente de alta velocidade. A ferrovia diante dele seria apenas uma parte
daquele extenso currículo empresarial.
Com o braço estendido, o diretor da Italplan explica ao
homem a seu lado que seria possível construir uma ferrovia como aquela no
Brasil, ligando São Paulo e Rio de Janeiro. José Francisco das Neves é
conhecido como Juquinha. Em todas as fotos, com todos os políticos e
autoridades, cercado por todos os papagaios de pirata da vida pública
brasileira, Juquinha surge como o mais baixinho de todos. Ele é o presidente da
estatal Valec, empresa subordinada ao Ministérios dos Transportes encarregada
de “coordenar, controlar, fiscalizar e administrar” a construção de ferrovias
no Brasil, entre elas a que seria a joia do Programa de Aceleração do
Crescimento (PAC) no primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva:
o trem de alta velocidade entre Rio de Janeiro e São Paulo.
Gori e Juquinha haviam jantado juntos em Milão na noite
anterior, 26 de outubro de 2004, e agora admiravam os dormentes da ferrovia
Milão-Turim — que seria inaugurada pelo premier Silvio Berlusconi cinco anos
depois. No Brasil, décadas de sonhos e projetos inacabados chegariam ao fim
pelas mãos daqueles dois homens e graças à experiente Italplan. O país
finalmente teria seu trem-bala.
O vexame húngaro
O trem de alta velocidade é um sonho antigo dos governos
brasileiros. Sobre estradas de terra e asfalto, os 500 quilômetros entre as
duas maiores cidades do país são perigosos e engarrafados. De avião, o voo de
40 minutos é caro. Por um breve período, no entanto, o sonho se materializou.
Folhetos distribuídos aos passageiros que partiram às 17 horas do dia 11 de
março de 1974 da Estação da Luz, em São Paulo, garantiam que os vagões da
composição húngara da empresa Ganz-Mávag chegariam à Central do Brasil, no Rio
de Janeiro, em apenas quatro horas e meia. Alta velocidade sobre trilhos, para
os padrões da época.
Aqueles trens haviam sido negociados pelo governo brasileiro
em troca de uma de suas moedas correntes desde o Império: café. A linha Rio-São
Paulo recebeu seis composições, embarcadas da Europa depois de serem fabricadas
na Hungria. A tecnologia foi celebrada na imprensa — desde o desembarque dos
vagões no porto do Rio de Janeiro, em 1973, até as viagens inaugurais no ano
seguinte, aproveitando a velha estrada de ferro com trechos inaugurados por Dom
Pedro 2º. Anúncios publicitários convidavam os cidadãos a deixar de lado os
momentos de tensão ao volante em troca de “minutos de relax” a bordo dos
Ganz-Mávag. Os carros eram, de fato, seguros e confortáveis, mas se mostraram
uma bomba mecânica em poucas viagens. O sistema de tração era fraco para as
subidas íngremes, sobretudo entre Japeri e Barra do Piraí, uma serra inclemente
aos trens projetados para deslizar nas planícies magiares. As rodas patinavam,
os motores esquentavam, e a composição precisava parar no meio do caminho.
Apesar de ser fabricado na Hungria, o trem-bala tinha motor alemão, controles
suíços e freios italianos — problemas multinacionais na hora de repor peças em
um mundo ainda não globalizado. Quatro anos após a inauguração, deixou de
circular. Em 1978, os trens foram deslocados para linhas menos exigentes e,
anos depois, viraram sucata.
O governo decidiu buscar um substituto. Ainda em 1978, o
então ministro Dyrceu Nogueira anunciou uma viagem ao Japão para conhecer o
primeiro trem-bala do mundo. O veículo japonês havia sido inaugurado em 1964,
mesmo ano em que os militares assumiam o poder no Brasil. Nogueira era
comandante do 1º Batalhão Ferroviário e tinha predileção pelo tema. A visita,
que selaria um pacto feito pelo presidente Ernesto Geisel em viagem ao Oriente
dois anos antes, foi duramente atacada em um discurso do deputado Pacheco
Chaves (MDB): ele citava a penúria dos cofres públicos em contraste à
megalomania do projeto. “O presidente Geisel não deve permitir. Isso apenas
redundaria em novas e graves dificuldades para o futuro governo, cuja herança
já é assustadora!”, gritou Chaves da tribuna da Câmara dos Deputados na sessão
do dia 23 de agosto.
Chaves foi ignorado, e o trem-bala ganhou impulso. O projeto
foi levado à imprensa dezenas de vezes, apresentado como a porta de entrada do
Brasil na modernidade. Reportagens de página inteira mostravam a capacidade de
carga dos vagões, a velocidade dos motores, o conforto e a sofisticação das
cabines. Anúncios de agências de viagem nos pés-de-página vendiam pacotes
turísticos para brasileiros que quisessem conhecer o Japão e andar no trem
oriental.
O esforço do ministro Dyrceu Nogueira foi em vão. Nos anos
seguintes, japoneses, espanhois e franceses tentariam negociar com o Brasil a
instalação da linha rápida, oferecendo tecnologia e crédito, mas as condições
financeiras do país eram assustadoras aos estrangeiros.
Morte prematura de presidente, inflação descontrolada,
dívida externa impagável, impeachment e secura financeira seriam problemas mais
prementes ao Brasil da segunda metade do século 20 do que ligar suas duas
principais cidades por trilhos. “Bangladânia, meio Bangladesh meio Albânia, é a
Terra Não Prometida para a qual alguns constituintes estão querendo arrastar
130 milhões de brasileiros”, escreveu Mário Henrique Simonsen, banqueiro e
ex-ministro de governos militares, no artigo O trem-bala para Bangladânia,
publicado em 1987 no jornal O Globo. Simonsen criticava a sanha dos políticos
em querer resolver contingências do capitalismo na base do canetaço, o que
poderia levar o país para uma terra sombria, a Bangladânia, e batizou o artigo
fazendo alegoria a mais uma tentativa do governo em construir o trem — projeto
abandonado no mesmo ano.
Poucos anos depois, em 1990, no entanto, uma das
oportunidades mais concretas para o projeto aportou na Baía de Guanabara a
bordo do Le Pharaon, um iate de 60 metros capaz de acomodar 12 convidados e 11
tripulantes. Na ponte de comando estava o bilionário saudita Ghaith Pharaon,
educado no Ocidente com dinheiro do reino, acionista de um banco de
investimentos e sócio da família Bush em uma empresa de geração de energia.
Ghaith era ciceroneado no Brasil pelo empresário carioca
Arthur Falk, um dos milionários mais proeminentes e midiáticos dos anos 1990.
Falk era dono de um empreendimento financeiro que chegou a movimentar R$ 400
milhões por ano: a loteria Papatudo. Tendo como garotos-propaganda os astros da
TV brasileira da época — Faustão, Xuxa, Chico Anysio — o Papatudo pagava
prêmios aos acertadores, ou devolvia parte do dinheiro da compra dos bilhetes
no final de cada ano. Os títulos de capitalização se tornaram populares em todo
o Brasil, distribuindo riqueza aos poucos sortudos e algumas ambulâncias a
hospitais de caridade. A imagem pública de Falk e seu amigo bilionário saudita
pareciam o par perfeito para um projeto megalômano como o alta-velocidade.
A bordo do Le Pharaon, Falk e Ghaith aportavam em Angra dos
Reis para festas e reuniões. A ideia da dupla era convencer investidores locais
a bancar o trem, trocando títulos da dívida externa brasileira por
investimentos na linha. O projeto parecia agradar a opinião pública ao prometer
não tocar em dinheiro estatal. Em troca, a empresa Trem de Alta Velocidade
S.A., na qual o saudita era apontado como um dos sócios, teria a concessão da
ferrovia por 90 anos, decidindo livremente o preço da tarifa.
Arthur Falk ainda sonhava com o trem-bala quando o Papatudo
derreteu, em meados dos anos 90.
O Papatudo deixou para trás milhões em dívidas, e uma
complexa massa falida que ainda perambula pelos tribunais como um fantasma
arrastando correntes. O amigo saudita de Falk também enfrentaria mares revoltos
na ponte de comando. Ghaith Pharaon foi apontado, em investigações posteriores
ao atentado de 11 de Setembro, como parceiro da família Bin Laden em “bancos,
holdings, fundações e projetos de caridade”. Pharaon seria procurado pelo FBI
por quase duas décadas e acusado pelo parlamento francês de ser um dos
financiadores do terrorismo. Caçado pelas autoridades americanas, o magnata
quase foi preso em 2006, quando seu barco foi visto ancorado em uma ilha perto
da Sicília. O saudita conseguiu escapar do FBI e da polícia italiana, tomando o
rumo da Argélia. Seu nome não consta mais na lista de procurados pelos EUA, mas
Gaith vive boa parte do tempo a bordo do Le Pharaon, em território neutro.
O projeto italiano
O trem-bala parecia destinado a ser uma eterna miragem até
2003, quando José Francisco das Neves foi nomeado presidente da Valec, empresa
criada em 1972 pela então estatal Vale do Rio Doce em sociedade com a companhia
americana USS Engineers and Consultants para projetar e viabilizar uma ferrovia
para escoar o minério da mina de Carajás, recém-descoberta pelos americanos.
Nos anos 80, o governo assumiu o controle total da Valec.
Nos meses seguintes a sua posse, Juquinha mergulhou no
projeto, com apoio do alto escalão do novo governo. Em um ano, ele havia feito
contato com diversas empresas interessadas em investir na obra. O presidente
recém-eleito Luiz Inácio Lula da Silva via o empreendimento com o mesmo brilho
dos seus antecessores: um sinal inegável de riqueza, tecnologia e futuro. Um
cartão de visitas do país no exterior.
Em 24 de junho de 2004, uma portaria assinada pelo ministro
dos Transportes, Alfredo Nascimento, criou um Grupo de Trabalho liderado pela
Valec. O Grupo deveria analisar e escolher o estudo de viabilidade que
orientaria uma futura licitação do trem-bala, onde seria apontada a construtora
encarregada pela obra. Era uma espécie de manual de instruções que mostraria,
por exemplo, quantos passageiros seriam transportados por ano, qual seria o
custo da passagem, por quais adequações a ferrovia já existente deveria passar
para receber trens velozes, onde seriam as paradas, onde haveria túneis e
quanto deveria ser o orçamento total do empreendimento — dos pregos aos vagões.
A Italplan de Moreno Gori havia se adiantado. Desde o início
de 2004, antes de existir Grupo de Trabalho, a empresa já levantava informações
para o empreendimento bilionário. “Soubemos do projeto do trem-bala através de
contatos locais”, me escreveu Roberta Peccini, atual presidente da Italplan,
Engineering, Environment & Transports S.p.A. Ao final da chamada pública,
três estudos chegaram ao Grupo.
TRANSCORR RSC
Desenvolvido sob a coordenação do GEIPOT, uma empresa em
liquidação vinculada ao Ministério do Trabalho, com recursos do banco de
desenvolvimento alemão KFW. Os estudos da Transcorr eram antigos: haviam sido
feitos entre 1997 e 1999.
SIEMENS / ODEBRECHT / INTERGLOBAL
Consórcio formado pela alemã Siemens e pelas brasileiras
Odebrecht e Interglobal, com experiência alemã. Foi apresentado ao Grupo de
Trabalho em outubro de 2004.
ITALPLAN
Desenvolvido pela empresa Italplan Engineering Environment
& Transports SRL, com conhecimento italiano. Apresentado ao Grupo de
Trabalho em setembro de 2004.
O Grupo de Trabalho deveria analisar os estudos em seis
meses. Nesse meio tempo, sentado na poltrona 2C do voo RG-8734, da Varig,
Juquinha voou para Milão no dia 25 de outubro de 2004, às 23h45, para se
encontrar com Moreno Gori e vistoriar as obras da ferrovia Milão-Turim. Ele
deveria ter viajado à Alemanha no dia 28 para conhecer um trem eletromagnético,
mas adiou a partida em três dias: preferiu ficar na Itália. Sua agenda nesses
três dias é uma incógnita, não registrada pela Valec nos documentos oficias.
O prazo do Grupo de Trabalho para analisar as propostas foi
prorrogado duas vezes até que, em abril de 2005, seis meses depois do tour
milanês de Juquinha, um relatório caiu nas mãos do ministro Alfredo Nascimento.
Assinado por membros da Secretaria de Gestão dos Programas de Transportes,
Secretaria de Política Nacional de Transportes, Agência Nacional de Transportes
Terrestres, Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, BNDES e Valec, o
texto dizia que o estudo da Transcorr — iniciado oito anos antes — era “da mais
alta credibilidade e serve de referência para as análises das alternativas de
projetos a serem avaliados pelo GT”. O texto eliminava a Transcorr, mas
utilizava seu material como parâmetro para declarar quem seria o vencedor.
O estudo Siemens/Odebrecht/Interglobal indicava a obra mais
barata entre os concorrentes e o menor tempo de construção. Enquanto a
Transcorr estimava um custo de US$ 7,2 bilhões e sete anos de obras, o
consórcio Siemens/Odebrecht/Interglobal previa gastos de US$ 6,3 bilhões, em
seis anos. Mas a proposta alemã-brasileira foi eliminada porque previa que US$
5 bilhões, 80% do investimento, fossem pago com dinheiro público. Brasília
queria que saísse tudo do bolso da iniciativa privada.
No estudo da Italplan, as obras levariam sete anos e
custariam bem mais, US$ 9 bilhões. Os técnicos italianos, no entanto, ofereciam
uma alternativa irresistível: nem um centavo sairia da caixa-forte do Planalto.
Num sistema de concessão 100% privado, o trem-bala previsto pela Italplan teria
uma passagem muito mais barata do que o tíquete previsto pelos concorrentes:
US$ 39, contra US$ 77 da Siemens/Odebrecht/Interglobal e US$ 81 da Transcorr.
Negligenciada pelos outros estudos, a geração de tributos ao
país foi estimada pela Italplan. Era uma monstruosidade: US$ 73,7 bilhões
durante os 35 anos em que a concessão administraria a linha — mais de US$ 2
bilhões ao ano.
Citando a Italplan como “uma empresa de engenharia com
grande experiência no setor de transporte de alta velocidade, tendo o próprio
pessoal contribuído para o desenvolvimento do trem-bala italiano”, o relatório
foi definitivo: “o Grupo de Trabalho recomenda ao Sr. Ministro dos Transportes
implementar as medidas institucionais necessárias à implantação de uma ligação
ferroviária para transporte de passageiros por trem de alta velocidade entre as
cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, considerando como referência a modelagem
técnica e financeira concebida no Projeto Italplan, para efeito do processo de
licitação pública de concessão”.
Pequenos e desconhecidos perto dos gigantes que brigavam
pelo projeto, os italianos venceram. Agora, esperavam pelo lançamento do
edital, elaborado com base em seu estudo de viabilidade, que apontaria a
empreiteira responsável pela construção da ferrovia.
Ainda havia trabalho pela frente. O estudo aprovado pelo
Ministério dos Transportes era uma espécie de prévia do que deveria ser o
estudo de viabilidade completo. Para que a licitação fosse lançada e a
empreiteira escolhida, era necessário um levantamento mais aprofundado e
detalhado por parte da Italplan. “Eles trouxeram gente pro Brasil, técnicos,
engenheiros. Ficaram dois anos indo e vindo, investiram. Eu mesmo montei um
escritório pra eles em Brasília”, me contou Ary Raghiant Neto, advogado e
ex-juiz do Tribunal Regional Eleitoral de Mato Grosso do Sul. Ary conhecia
Moreno Gori ao menos desde 2002, quando, como advogado, foi procurador de dois
estrangeiros em uma empresa chamada Alfred Klotz do Brasil, da qual Gori era
sócio — em 2003, a companhia foi autorizada pela Agência Nacional de Energia
Elétrica a construir duas usinas termoelétricas no Mato Grosso do Sul.
Todo mês a Italplan mandava representantes ao Brasil para
aprimorar o estudo comissionado pela Valec, garante Roberta Peccini. Seus
demais funcionários, 74 pessoas, segundo ela, trabalhavam da Itália. Para
calcular o impacto ambiental, Roberta Peccini disse que a Italplan contratou
“uma empresa especializada brasileira”, sem especificar qual. Para estimar
quantos passageiros usariam o trem, a presidente da Italplan garantiu que se
valeu de “50 consultores locais, coordenados pelo nosso próprio pessoal no Brasil,
que fizeram entrevistas domiciliares com mais de 15 mil pessoas entre Rio de
Janeiro e São Paulo”. Após as entrevistas, a empresa concluiu que a demanda
anual para o trem seria, em 2011, de 32 milhões de passageiros — mais do que o
quádruplo do que esperavam Siemens/Odebrecht/Interglobal, que estimavam menos
de 7 milhões por ano.
Enquanto seus técnicos trabalhavam para transformar o estudo
de viabilidade em um projeto aprovado por órgãos como IPHAN e IBAMA, a Italplan
se movia na arena política. Roberta Peccini participou de reuniões e
apresentações no Brasil, mas o rosto da empresa era Moreno Gori.
“Fiquei surpreso quando um dos sócios que viajou com ele
pelo Brasil voltou à Itália e me contou sobre a facilidade com que ele
transitava pelo meio político brasileiro”, acrescentou a fonte. Apresentado
como diretor-técnico da Italplan, Moreno Gori foi recebido pelo então ministro
do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Luiz Fernando Furlan, em seu
gabinete no Ministério. A reunião aconteceu em 3 de outubro de 2006. Além de
Gori e alguns burocratas, estavam presentes Juquinha e Alberto Bernini, sócio
de Gori na Alfred Klotz do Brasil e vice-presidente da Italplan. O encontro
durou cerca de uma hora. “Os representantes da Italplan fizeram uma apresentação
sobre o estudo que eles tinham desenvolvido para o trem de alta velocidade no
Brasil. Eu conheci o Moreno Gori naquele dia”, me disse o então embaixador da
Itália no Brasil, Michele Valensise, um dos presentes.
Juquinha também fazia a sua parte. O presidente da Valec não
perdia um microfone para falar do trem. Segundo declarou à Agência Brasil em
2007, italianos, japoneses, coreanos, franceses e brasileiros estavam
interessados em construir a linha. O governo, se orgulhava ele, não gastaria um
centavo. “Nós não temos risco nenhum”, afirmou. O trem-bala estava chegando.
Laranja madura
Após reuniões com Valec e Italplan, o Tribunal de Contas da
União (TCU) verificou os números de um arquivo enviado por e-mail chamado
Analisi Finanziaria.xls. Era a planilha financeira montada pela Italplan e tida
por ela e pela Valec como o cálculo oficial para as operações do trem. Técnicos
do TCU estudaram as tabelas por meses e, ao fim, constataram problemas: “erro
no cálculo da despesa com energia elétrica”, “utilização incorreta da alíquota
do PIS/Cofins”, “exclusão da CSLL da base de cálculo do Imposto de Renda”.
Diante das incongruências, o tribunal enviou uma diligência à Valec em busca de
respostas.
A estatal se comprometeu em corrigir o documento e o remeteu
novamente ao TCU. Técnicos abriram o arquivo e destrincharam o projeto outra
vez. Dezenas de falhas foram apontadas. Ainda assim, o estudo foi aprovado com
ressalvas em abril de 2007.
As ressalvas viraram nota de rodapé na imprensa, onde o
projeto ganhava força como aprovado. Mas um consultor legislativo da Câmara dos
Deputados trabalhava em silêncio. Eduardo Fernandez Silva é mestre em economia
e conhece bem projetos de engenharia financeira como os da Italplan. Em
dezembro de 2007, Fernandez pôs o ponto final em um estudo que começava com a
citação de um samba de 1966 cantado por Ataulfo Alves.
O relatório analisou os concorrentes ao estudo de
viabilidade e se ateve especialmente ao vencedor Italplan. Fernandez desossou
os números como um açougueiro. Após 25 páginas, o consultor abriu suas
conclusões. “A viabilidade da implantação do Trem de Alta Velocidade ligando
Rio de Janeiro a São Paulo depende da ocorrência de hipóteses altamente
improváveis, e as afirmações em que se baseia a conclusão oposta são frágeis”.
Um dos principais problemas era a demanda de passageiros
prevista no estudo, estimada em 32,6 milhões por ano pela Italplan. “Em 2006, o
número total de viajantes entre Rio de Janeiro e São Paulo, por ônibus,
automóvel e avião, foi de 8,4 milhões”, calculou Fernandez. “Para que a
previsão adotada ocorra será necessário que todos os viajantes da ponte aérea
Rio-São Paulo em 2006 optem pelo trem, e que se somem a eles o total de
viajantes por ônibus que chegaram ou saíram das cidades de São Paulo e do Rio
de Janeiro com origem ou destino a todas as cidades de todos os estados
brasileiros, e países vizinhos”, acrescentou o consultor. Como o número de
passageiros estimado afeta a tarifa, Fernandez também viu inconsistências no
preço dos bilhetes proposto pelos italianos, 49% mais barato do que o tíquete
apurado pelo consórcio da Siemens. “Para atingir o valor previsto será
necessário, ainda, que os viajantes optem sempre pelo trem e o seu número
cresça, a partir de 2006, à taxa superior a 10% ao ano. As projeções da
Italplan não são realistas e não existe a hipótese de elas virem a se
realizar”, escreveu.
Sobre os bilhões de impostos que seriam gerados: “carece de
credibilidade: não há memória de cálculo e, no resto do mundo, os trens-bala
são subsidiados. Os relatórios não dizem uma palavra sequer sobre porque no
Brasil será diferente”.
O prazo de construção também foi criticado. “A Itália
demorou 22 anos para implantar a sua primeira linha de trem rápido e prevê,
hoje, melhorias em linhas férreas existentes — de forma a adequá-las ao trem
rápido — ao custo de 28,8 milhões de euros por quilômetro. O Grupo de Trabalho
aceitou a informação de que o trem-bala brasileiro seria implantado em apenas
sete anos. Aceitou também que a sua implantação — a partir do zero –, custaria
menos de 15 milhões de euros por quilômetro”, escreveu Fernandez. “As razões
pelas quais se espera que os brasileiros sejam tão mais eficientes que os
italianos não foram explicitadas”.
Com tantos problemas no projeto, o consultor passou a
questionar a alegada “larga experiência em trens de alta velocidade” da
Italplan. “A alegação não se sustenta. A empresa responsável pelo projeto
escolhido pelo Grupo de Trabalho mostra, em seu sítio da internet, apenas um
projeto de trem de alta velocidade executado sob sua responsabilidade,
exatamente o Rio de Janeiro — São Paulo”.
Para esta reportagem, eu entrei em contato com a
Salini-Impregilo, empresa que liderou o consórcio que construiu a ferrovia
Milão-Turim, a mesma que Gori e Juquinha visitaram em 2004. A companhia garantiu
que não consta o nome da Italplan entre as empresas membros do consórcio.
É possível que a Italplan tenha participado de alguma fase
que precedeu a obra? Sim. Mas a Salini-Impregilo disse ter consultado quem
tocou diretamente o projeto e ninguém se lembra dela.
Eu também conversei com três engenheiros que trabalharam na
ferrovia Milão-Turim. A amnésia persiste: nenhum dos três se recorda da
Italplan. Um deles disse que “jamais ouviu falar em Italplan ou em qualquer
nome ligado à empresa”.
Por e-mail, Roberta Peccini, presidente da Italplan, me
garantiu que o staff da empresa “participou do projeto e da direção dos
trabalhos da ferrovia Milão-Turim, assim como da ferrovia Roma-Florença”. Eu
pedi que Peccini me indicasse ao menos dois funcionários da empresa que
tivessem trabalhado em alguma das obras para que pudesse conversar com eles.
Não obtive resposta.
E disse isso por escrito, em texto aprovado pela Valec:
“Deve-se firmar como conceito que os números de demanda, de investimento e dos
resultados financeiros apresentados nos estudos são apenas indicativos, e não
metas a serem atingidas pelos potenciais interessados”. Fernandez ainda afirma:
“a Valec informou — também verbalmente — que nenhuma garantia foi solicitada à
Italplan, muito menos oferecida por ela, com relação à coerência, consistência
e realismo de seu trabalho”.
Durante o namoro entre Valec e Italplan jamais se falou em
dinheiro, ao menos publicamente. Quanto custaria o serviço dos técnicos
italianos, trabalho que começara, ao menos, em 2004? A resposta estava no
relatório aprovado pelo Grupo de Trabalho, aceito pelo ministro dos Transportes
e analisado pelo consultor Eduardo Fernandez. “A Italplan se tornará, após o
processo licitatório, detentora do direito de ser ressarcida pelo custo de
desenvolvimento do projeto, cujo valor será objeto de deliberação posterior”.
Os italianos tinham nas mãos um cheque em branco.
Uma montanha de lixo
No mesmo ano em que as avaliações do TCU e de Fernandez
foram divulgadas, o Brasil vivia um clima de euforia. Em 30 de outubro de 2007,
o presidente da FIFA, Joseph Blatter, passou às mãos de Lula a taça da Copa do
Mundo em uma cerimônia na Suíça. O Brasil havia sido formalmente escolhido para
receber o evento, cumprindo um desejo de décadas para reeditar o Mundial de
1950. Diante de uma plateia de celebridades, emocionado, o presidente
brasileiro declarou: “o mundo terá a oportunidade de ver o que nosso povo é
capaz de fazer”.
A Copa reacendeu esperanças. Planos engavetados por décadas
começaram a pular das gavetas dos ministérios. O trem-bala, símbolo do novo
Brasil, ganhou propulsão de motores no máximo. Projetos ambiciosos como aquele
precisavam ser inaugurados antes da Copa. O país não queria dar vexame.
A Italplan ainda buscava os acertos finais do projeto junto
aos órgãos brasileiros quando Moreno Gori se dirigiu ao microfone da Comissão
de Viação e Transportes da Câmara dos Deputados em Brasília. Eram cerca de 16
horas do dia 17 de junho de 2008. Diante dele, uma plateia que, naquele dia,
não falaria uma linha sobre os relatórios de Eduardo Fernandez e do Tribunal de
Contas da União. Eram deputados de vários partidos, além de executivos de
empresas interessadas na licitação que o governo previa lançar no ano
seguinte — entre elas, Alstom e Siemens, além de Giovanni Rocca, representante
da Ferrovie Dello Stato, a empresa estatal que controla os trens na Itália.
Gori não tremia diante de plateias de engravatados.
Ele tinha experiência em negociações envolvendo políticos.
Em 1999, Moreno se apresentou na prefeitura de Campo Grande
com uma solução para um problema crônico. O aterro sanitário da capital do Mato
Grosso do Sul entrara em operação em 1992 com previsão de vida útil de quatro
anos. Quase uma década depois, ainda recebia lixo. A situação beirava à
catástrofe para o prefeito André Puccinelli, concorrente à reeleição no ano
seguinte. Puccinelli, um italiano nascido na Toscana que emigrara para o Brasil
ainda criança, decidiu transformar lixo em votos. Em abril de 1999, ele assinou
com a empresa Consórcio Energético Ambiental de Campo Grande (Cenagran) um
contrato de compra de energia elétrica no valor anual de R$ 7 milhões, pagos
pela prefeitura. A energia viria de uma usina termoelétrica que deveria queimar
400 toneladas de lixo por dia, aliviando o aterro. Moreno Gori era o presidente
do consórcio, o homem que transformaria um desastre ambiental em solução
ecológica.
Não levou um mês para que um dos vereadores da oposição
passasse documentos reveladores à imprensa: o contrato entre a prefeitura e o
consórcio fora assinado sem licitação. A Polícia Federal entrou no caso e
desconfiou de tudo. Investigou o consórcio e as duas empresas por trás dele: a
italiana STR Engineering e a Seaton do Brasil. A polícia levantou a hipótese de
que a Seaton, fundada apenas um ano antes da assinatura do contrato, não tinha
tecnologia exclusiva para o serviço que a prefeitura demandava — condição que
poderia justificar a dispensa de licitação.
Os investigadores focaram em Gori, conhecido de André
Puccinelli desde quando o político era deputado federal, eleito em 1994. Em
eventos sociais, o amigo italiano do prefeito era apresentado como
“representante de Campo Grande junto à Comunidade Europeia”. Seu nome era
conhecido, por isso os policiais estranharam quando encontraram duas
identidades brasileiras junto à documentação do consórcio — uma delas tinha
foto e assinatura de Moreno.
Neles, o presidente do consórcio que faturaria R$ 7 milhões de
dinheiro público todos os anos havia mudado seu local de nascimento para o
Brasil. Outros documentos também haviam sido adulterados, segundo os
investigadores. Em um deles, o Gori citou a profissão de biólogo, apesar de ser
engenheiro civil; em outro, declarou um depósito de R$ 1 milhão no Banco do
Brasil, dinheiro que garantia que o consórcio tinha caixa para funcionar. O
dinheiro jamais existiu: o comprovante, sustentaram os investigadores, era
também falso. O contrato entre a prefeitura e o Cenagran era uma bomba prestes
a explodir: tinha vigência de 30 anos e multa de R$ 208 milhões em caso de
quebra de acordo. O caso ficou conhecido como “Lixogate”.
André Puccinelli desfez a parceria, mas teve que enfrentar
um processo judicial. Os papéis andaram pelos tribunais até 2006, quando a
Justiça determinou a quebra de sigilo bancário de Moreno Gori. Enquanto isso, o
italiano circulou por gabinetes requisitados de Brasília, se reuniu com
ministros de primeira linha, conversou com embaixadores e deputados, teve seu
nome submetido a órgãos de controle e financiamento e agora estava ali, diante
de um microfone, na Câmara dos Deputados, vendendo ao Brasil um projeto
bilionário.
A palestra de Moreno Gori aos deputados em 17 de junho de
2008 foi antecedida por uma notícia nada banal. Um mês antes de apresentar o
projeto da Italplan aos políticos, a história do Lixogate foi relembrada por um
jornal. No dia 19 de maio, o Correio do Estado, de Campo Grande, publicou uma
nota intitulada Autor do Lixogate vende trem-bala ao governo. Nela, o jornal
dava o nome de Moreno Gori e mencionava seu envolvimento com o escândalo. O
homem que os deputados ouviriam na sessão da Câmara no mês seguinte era
considerado um falsário pela polícia e pelo Ministério Público Federal, relembrava
a reportagem.
A nota do Correio repercutiu na imprensa especializada e pôs
a Italplan em alerta. Roberta Peccini mandou uma carta para a Revista
Ferroviária na qual negava que Moreno Gori fosse vinculado à companhia.
Uma ligação entre ele e a empresa poderia comprometer todo o
trabalho dos italianos. Afinal, Gori era mesmo apenas um freelancer da Italplan
no Brasil?
Roberta Peccini, presidente da Italplan, é dona de 7,79%. Eu
conversei com outro sócio da Italplan, que não quer ter seu nome divulgado.
Segundo ele, tudo se liga a Moreno Gori. “Ele fundou a Italplan em 2002, ele
tinha os contatos no Brasil, ele que se encontrava com o Juquinha, inclusive na
sede da Italplan em Terranuova Bracciolini, na Toscana. Nós ficávamos sabendo
de tudo o que acontecia sobre o trem-bala brasileiro através dele”, me disse a
fonte.
“Muito boa tarde! Cumprimento as autoridades presentes e os
senhores deputados”, exaltou um animado Gori na palestra no Congresso, usando
um português com sotaque indefectível. “Somos uma empresa diferente daquelas
apresentadas até agora. Não vamos apresentar uma tecnologia. Somos uma empresa
de engenharia. Somos uma empresa que tem experiência de mais de 25 anos no
setor do transporte ferroviário, especialmente de alta velocidade. O nosso
pessoal desenvolveu o projeto do trem de alta velocidade italiano no trecho
Roma-Florença e, recentemente, no trecho Bolonha-Milão.” Gori tomou ar enquanto
mostrava alguns slides com imagens de trens, trilhos e croquis de áreas
revitalizadas nos centros decadentes das duas maiores metrópoles brasileiras.
“Chamamos o nosso projeto de Trem Bala Brasileiro, o famoso TBB. O comprimento
da linha é de 403 quilômetros; possíveis três paradas futuras; uma possível
interconexão do trem com o aeroporto de Guarulhos, além dos aeroportos de
Campinas e do Rio de Janeiro; uma velocidade máxima permitida acima de 320
quilômetros por hora; uma velocidade comercial de 285 quilômetros; tempo de
viagem de 85 minutos.”
A explanação de Gori continuou por cerca de 30 minutos. O
diretor da Italplan derramou estatísticas animadas sobre empregos, renda e
cidadania e garantiu que a empresa havia “entrevistado 22 mil pessoas” e feito
“6 mil perfurações de solo para achar todo o perfil geológico e geotécnico” da
área onde a ferrovia seria implantada. Ao final, Gori deu o nome de todas as
entidades que haviam lido e relido a documentação da Italplan ao longo dos
anos, nomeou um a um os xerifes do tesouro brasileiro responsáveis por evitar
fraudes e roubalheira. “O governo brasileiro aprovou nosso projeto por meio
desta portaria de junho de 2005. Houve uma lei federal que incluía no Plano
Nacional de Viação uma rede ferroviária brasileira. Esse é um histórico do
projeto Italplan: apresentação ao Ministério dos Transportes; à ANTT; à então
criada Comissão de Transportes, onde estava o BNDES; ao Ministério do
Planejamento; à Valec e a todo o mundo. Apresentamos o anteprojeto. O Grupo de
Trabalho adotou esse projeto da Italplan como referência. Foi feito
requerimento ao IBAMA em junho de 2005. Foi feita a vistoria, como já havíamos
dito, e fizemos o projeto básico, a pedido do governo brasileiro. Enfim, foi
feita uma avaliação econômico-financeira, que foi aprovada pelo Tribunal de
Contas da União. O projeto está pronto, pode ser eventualmente licitado.”
Era o fim de um ciclo que começara quatro anos antes. Os
parâmetros iniciais da Italplan estavam confirmados por seu trabalho de campo,
tornados públicos pela primeira vez a uma plateia de representantes do governo,
políticos e empresários. O trem-bala brasileiro teria 412 km de trilhos, um
carro a cada 15 minutos viajando a velocidade de 280 km/h, graças ao trabalho
de, esperava-se, 140 mil pessoas envolvidas direta ou indiretamente na
construção; e 32 milhões de passageiros atendidos no primeiro ano de operação,
quase 60 milhões em 2021.
Diante de executivos e deputados, no coração político do
Brasil, pressionada pelos prazos curtos que o governo impunha para inaugurar o
trem antes da Copa do Mundo de 2014, a Italplan parecia carimbar enfim seu
passaporte para a fortuna.
Três meses após Moreno Gori se apresentar diante dos
deputados em Brasília, o presidente Lula assinou uma lei dando mais força à
Valec. O decreto de 17 de setembro de 2008 instituiu mudanças na estatal já
responsável pela malha ferroviária brasileira, deixando ainda mais claro que
ela deveria “promover os estudos para implantação de Trens de Alta Velocidade,
sob a coordenação do Ministério dos Transportes”.
Colônia de moscas
O decreto tinha pouco mais de dois meses quando Moreno Gori
foi condenado em primeira instância a cinco anos de prisão em regime
semi-aberto por uso de documentos falsos. Ele recorreu, e responde em
liberdade.
As incongruências que rondavam o estudo da Italplan e a
condenação de Moreno não abalaram o governo. Em junho de 2009, a então ministra
da Casa Civil, Dilma Rousseff, garantiu que o trem-bala sairia. Dilma conhecia
a Italplan: havia se encontrado com seus representantes na Embaixada do Brasil
em Roma, em 2007, durante um evento para empresários italianos interessados em
investir no projeto. O prazo dado pela ministra: antes da Copa. “Nosso projeto
é que esteja integralmente pronto em 2014”, afirmou Dilma em Brasília durante o
7º balanço sobre o andamento das obras do PAC, programa no qual o trem era a
grande estrela e uma das obras mais caras. Faltavam quatro anos para o primeiro
jogo do Mundial no Brasil. Nem mesmo as previsões mais otimistas previam a
construção em tão pouco tempo: os derrotados Interglobal/Siemens/Odebrecht
estimavam uma obra de seis anos.
O Governo Federal começou 2010 disposto a tirar o projeto do
papel. Em julho, o presidente Lula divulgou o edital de licitação da obra. O
leilão que escolheria a construtora da linha deveria ocorrer em 16 de dezembro,
às 11h, na sede da Bovespa, quando os interessados apresentariam suas
propostas. Mesmo já admitindo a necessidade de uso de dinheiro público, o
presidente não perderia a chance de comandar uma sessão de gala em plena Bolsa
no ano em que a economia do Brasil cresceria 7,5%.
“Acho plenamente possível inaugurar até as Olimpíadas”,
cravou Lula, dando um passo atrás e admitindo a impossibilidade de usufruir do
trem-bala durante a Copa, jogando o prazo para os Jogos de 2016, no Rio. A seu
modo, o presidente aproveitou para cutucar os críticos, comparando as
dificuldades do trem brasileiro às dos idealizadores da Torre Eiffel: “a Torre
deve ter enfrentado mais de cinco mil ações populares”, disse. E se irritou com
a cobrança sobre o prazo inicial da obra brasileira, que deveria servir à Copa
do Mundo.
Lula estava flanqueado pelo nova ministra-chefe da Casa
Civil, Erenice Guerra, que substituíra Dilma Rousseff, em campanha pela
Presidência da República. Erenice declarou, confiante: “por que faremos o trem
de alta velocidade? Porque podemos, porque estamos maduros, porque temos o
comando firme do presidente da República”.
Um mês antes da data estipulada para a entrega dos
envelopes, nuves densas de rumores se espalharam por Brasília: Odebrecht,
Camargo Corrêa e Andrade Gutierrez — empresas interessadas na
licitação — pressionavam o governo por um adiamento, apesar de um consórcio
liderado por coreanos prometer uma proposta no dia combinado, com depósito de
R$ 340 milhões como garantia. O presidente relutou até a noite de 24 de
novembro, quando deu sinal para que assessores informassem a Agência Nacional
de Transportes Terrestres sobre o adiamento do prazo.
O Planalto deu tempo às empresas até meados de 2011
acreditando que as coisas se ajustariam, mas a expectativa foi açoitada por uma
tempestade impiedosa.
Ações do Ministério Público bloqueando a licitação, disputas
políticas na Câmara pondo em xeque a prioridade dada à obra, outro estudo
(desta vez de um consultor do Senado) confirmando as conclusões de Eduardo
Fernandez e até boatos de que a base do governo era contra o projeto — isolando
a presidente recém-eleita Dilma Rousseff, entusiasta do trem desde que era
ministra da Casa Civil — jogaram a concorrência em um lamaçal. O episódio
crucial foi encenado no começo de julho, quando o ministro dos Transportes,
Alfredo Nascimento, recebeu uma ordem de Dilma. A presidente foi dura: chamou o
ministério comandado pelo Partido da República (PR) de “descontrolado” e exigiu
que o ministro pusesse fim em uma era negra da pasta que, segundo edição da
revista Veja que circulou em 2 de julho de 2011, cobrava “um pedágio de 4%
sobre o valor dos pagamentos das empreiteiras”. Propina.
A espada de Nascimento decapitou as mais altas cabeças do
ministério naquele mesmo dia, entre elas a do homem que há quase uma década
reinava encastelado na Valec: Juquinha. Além dele, cairiam todos os membros da
cúpula do Ministério dos Transportes, derrubados pelas denúncias. Três dias
depois, o próprio ministro pediu demissão.
No dia 11 de julho, após a semana considerada de “faxina” no
ministério, membros do governo roíam as unhas nos salões da Bovespa, centro de
São Paulo. O relógio bateu 14h em ponto. Era o horário limite para as
apresentação de propostas para o primeiro leilão do trem-bala.
Ninguém apareceu.
De joia do PAC, o trem passou à colônia de moscas.
De volta à Toscana
A Italplan continuava atuando nos bastidores mesmo após o
fiasco. Vendo seu trabalho desmoralizado e com poucas chances de ser levado ao
canteiro de obras, a companhia imprimiu uma fatura e mandou entregar na Valec,
na esperança de receber pelos anos de parceria com a estatal. O valor não havia
sido combinado previamente, e a Italplan preencheu o cheque como quis — pediu
261,7 milhões de euros ao Tesouro.
Enquanto esperavam, seus diretores evitavam a vida pública,
buscando um acordo com a Valec para receber o que julgavam o custo do trabalho
que tiveram no Brasil. A estatal não efetuou o depósito, e não se falou mais
nos italianos até o começo de 2012, quando a Embaixada Brasileira em Roma foi
surpreendida por uma notificação da Justiça local.
Na província de Arezzo, um juiz da comarca de
Montevarchi — cidade de 22 mil habitantes no interior da Toscana, vizinha à
sede da Italplan — determinava o congelamento das contas da embaixada no Banco
do Brasil para pagamento de uma parcela de 15,7 milhões de euros à Italplan. Outras
decisões judiciais, da mesma natureza, bloquearam igualmente as contas dos
demais postos do Brasil na Itália: consulado-geral em Roma, representação
permanente junto à FAO e consulado-geral em Milão. A decisão estremeceu o
Palazzo Pamphilj, sede diplomática brasileira na capital
italiana — ironicamente, um prédio adquirido em troca de café, assim como os
trens húngaros dos anos 1970.
A disputa judicial levou Ruy Nogueira, secretário-geral do
Itamaraty, a Roma. Nogueira é tido como um dos melhores negociadores do país.
Na mala, levou argumentos da Advocacia Geral da União sobre erros processuais.
Um deles: o Brasil havia sido indevidamente citado. Outro, mais grave: o juiz
da província de Arezzo não teria competência jurídica para legislar sobre bens
extraterritoriais como embaixadas e consulados. As contas do Brasil na Itália
são protegidas por convenções claras sobre imunidade diplomática. O processo
era, no mínimo, descuidado. A negociação avançou durante dois dias, entre 14 e
15 de março de 2012, durante encontros de Ruy Nogueira com o então ministro dos
Negócios Estrangeiros da Itália, Giulio Terzi, e com o então secretário-geral da
chancelaria italiana, Giampiero Massolo. As reuniões ocorreram na sede do
ministério de Negócios Estrangeiros da Itália, em Roma. Ao fim, a Italplan não
colocou as mãos no dinheiro.
Para defender a Valec, o governo brasileiro contratou o
escritório de advocacia italiano Chiomenti, ao custo de R$ 1,26 milhão. Eu
procurei a banca, que não quis dar entrevista.
Menos de dois meses após Ruy Nogueira voltar ao Brasil, a
Polícia Federal bateu em uma casa luxuosa no condomínio Alphaville, em Goiânia.
Naquele 5 de julho de 2012, a pessoa que os agentes buscavam era aquele mesmo
senhor que em todas as fotos, com todos os políticos e autoridades, cercado por
todos os papagaios de pirata da vida pública, sejam homens ou mulheres, é
sempre o mais baixinho de todos.
Sem esboçar resistência, ele foi levado à sede da PF com as
mãos livres de algemas. Usava uma camisa branca levemente desalinhada. Para os
investigadores, Juquinha havia fraudado licitações da ferrovia Norte-Sul, outra
estrada de ferro administrada pela Valec. Dono de um patrimônio de R$ 560 mil,
declarado em 1998, Juquinha tinha bens avaliados em R$ 60 milhões no momento da
prisão. “É um dinheiro incompatível com o salário dele”, disse por telefone o
procurador da República em Goiás, Helio Telho, à frente do processo.
Em 19 de dezembro de 2012, com o projeto do trem-bala
enguiçado há um ano e meio, Dilma tirou das mãos da Valec a tarefa de executar
a ferrovia, anulando o trecho do decreto presidencial de Lula que dava à
estatal a missão de “promover os estudos para implantação de Trens de Alta
Velocidade”. A obra foi direcionada a outro órgão ligado ao Ministério dos
Transportes, a Empresa de Planejamento e Logística S.A (EPL). A Valec,
chacoalhada por denúncias de corrupção e por uma licitação fracassada em sua
principal missão, estava formalmente afastada do trem-bala.
Entre 2004 e 2014, a estatal custou aos cofres públicos
brasileiros — entre despesas com “pessoal, custeio, investimentos e inversões
financeiras” — quase R$ 14 bilhões. Durante as investigações da operação Trem
Pagador, a mesma que prendeu Juquinha, a Polícia Federal estimou que até R$ 1
bilhão desse orçamento pode ter sido desviado somente em uma das obras
administradas pela Valec, a ferrovia Norte-Sul. O processo ainda aguarda
julgamento, e Juquinha se defende dele negando todas as acusações.
No Brasil, a briga judicial do governo com a Italplan
terminou no dia 1º de fevereiro de 2013, quando o presidente do Superior
Tribunal de Justiça do Brasil, Felix Fischer, negou o pagamento aos italianos
alegando “ofensa à ordem pública e à soberania nacional”. Em sua decisão,
Fischer disse que a Italplan não anexou qualquer tipo de contrato que
comprovasse uma ligação formal com a Valec.
A Italplan cometera um erro básico no processo? Simplesmente
esquecera de anexar o contrato, único instrumento que lhe daria credibilidade
no litígio de 261,7 milhões de euros?
Ao longo da apuração desta reportagem, muitas dúvidas foram
dissipadas com documentos e entrevistas. Agradeço a todas as fontes que aceitaram
conversar comigo, mesmo que de forma anônima. Foram mais de 30 pessoas que se
dispuseram a esclarecer dúvidas. No entanto, como é normal em assuntos com
tantas camadas de informação, muitos outros questionamentos surgiram — todos,
ao menos para mim, até agora sem respostas.
A Valec e a cúpula do Ministério dos Transportes jamais se
preocuparam em saber quem eram os diretores à frente da Italplan, sobretudo
Moreno Gori? Nunca exigiram da Italplan comprovação dos serviços que a empresa
diz ter prestado para as ferrovias italianas? Por que ignoraram por tanto tempo
o relatório de Eduardo Fernandez, um documento que colocava muitas dúvidas
sobre a viabilidade do projeto? Por que não adequaram o projeto às ressalvas do
Tribunal de Contas da União? Por que, apesar de tudo isso, a obra foi
confirmada por Lula e Dilma para a Copa do Mundo diversas vezes, mesmo quando
nem o mais otimista dos estudos previa prazos tão curtos para a inauguração?
Como Valec e Italplan mantiveram uma relação por tantos anos sem assinar um
contrato determinando parâmetros triviais, como preço dos serviços? Se esse
contrato existe — e tudo indica que não — ele deve estar nas mãos da Italplan.
A empresa, no entanto, não se dispôs a enviá-lo a mim.
As respostas podem passar pelas dificuldades de comunicação
entre os muitos atores da máquina pública brasileira, pela carência de pessoal
capaz de dar atenção aos sinais vermelhos que piscaram ao longo do caminho,
pelo desconhecimento técnico dos políticos encarregados de viabilizar a obra e
pelo entusiasmo quase irracional de realizar um projeto magnânimo para
apresentar ao mundo durante a Copa.
E podem passar, é claro, por caminhos mais tortuosos.
Publicamente, nenhum inquérito foi aberto sobre o trem-bala
brasileiro.
Onde estão os envolvidos?
Moreno Gori
Esta reportagem o procurou por meses. Não foi encontrado. Um
dos sócios da Italplan que não quer se identificar disse que pouco o vê,
“apenas nas reuniões de balanço da empresa”. A última delas foi em agosto de
2014. Seu advogado no Brasil diz desconhecer seu paradeiro. Réu no processo do
Lixogate por uso de documentos falsos, Gori espera um parecer final do
desembargador federal Hélio Nogueira, que analisa seu recurso. O caso completou
15 anos, sem julgamento definitivo.
Roberta Peccini
Respondeu, em 18 de fevereiro de 2015, a oito perguntas
enviadas por mim via e-mail. Depois, ao ser indagada com outras questões,
silenciou. Fiz contatos insistentes, sem resposta. Peccini ainda espera
reverter a decisão da justiça brasileira e ser paga pelo trabalho que sua
empresa fez no Brasil. Ela diz que a Suprema Corte italiana avaliará o caso
Italplan x Valec.
José Francisco das Neves
Seus bens, avaliados em R$ 60 milhões, foram bloqueados pela
justiça por conta da Operação Trem Pagador. Em 2008, diante de um grupo de
deputados, Juquinha declarou: “Consegui colocar nos trilhos a Ferrovia
Norte-Sul, embora tendo que fazer quatro pontes de safena, sem nem licitação…”.
E emendou: “quer dizer, na ferrovia eu licitei tudo, mas as pontes de safena
não deu nem para licitar”. Três dias após ser afastado da Valec por suspeitas
de corrupção, Juquinha foi homenageado com o título de Cidadão de Palmeiras de
Goiás, sua terra natal. O então governador do estado, Marconi Perillo (PSDB),
que passou a infância no município, participou do evento. Perillo já havia
homenageado o amigo em fevereiro, com a comenda do Mérito Anhanguera.
Eu tentei contato com seu advogado, sem sucesso.
Italplan
A empresa ainda existe, ao menos legalmente. Um de seus sócios
me disse, no entanto, que ela não opera mais, apenas se reúne para as
assembleias anuais obrigatórias. “Não sei como anda o processo contra a Valec,
mas a Italplan não era uma fraude. Nós fizemos o projeto”, garantiu. A antiga
sede da empresa, em Terranuova Bracciolini, na Itália, está fechada. “Não
aparece mais ninguém aqui e o galpão está vazio”, disse a secretária de uma
firma vizinha. O assessor para Atividade Produtiva, Crédito e Trabalho da
Região Toscana, Gianfranco Simoncini, que interveio junto ao ministro do
Interior da Itália em prol da Italplan — “uma empresa de excelência que
precisamos salvar”, declarou em 2010 — me disse através de sua assessoria que,
após o desbloqueio das contas da Embaixada brasileira em Roma, não acompanhou
mais o caso e não tem mais contato com os membros da Italplan.
O site da companhia esteve no ar até meados de 2014,
exibindo o trem brasileiro como um projeto da empresa. O endereço foi invadido
por um hacker marroquino chamado Røøfix-fox. Contatado por esta reportagem, o
hacker não respondeu.
Siemens
Derrotada pela Italplan no caso do estudo de viablidade do
trem-bala, a empresa alemã ainda acreditava poder participar da obra. Um e-mail
enviado em 2007 pelo executivo da Siemens, Nelson Branco Marchetti, à matriz da
empresa na Alemanha diz: “temos o projeto futuro da HST (High Speed Train)
Rio-SP (trem-bala) que estabelecerá um enorme consórcio de construtoras civis
liderado pela Odebrecht”. Marchetti estava presente na reunião da Comissão de
Viação e Transportes da Câmara em 2008 quando Moreno Gori apresentou o projeto
da Italplan aos deputados.
A Siemens se envolveu em um escândalo de corrupção em 2013.
Em troca de punições menos severas, ela reconheceu que pagou propinas a
autoridades de governos do PSDB em São Paulo, e que teria formado cartel com
outras companhias em licitações públicas para venda e manutenção de metrôs e
trens metropolitanos desde os anos 1990.
O trem-bala
Remarcado para agosto de 2013, o leilão da obra foi adiado
outra vez. Apenas um concorrente se mostrava disposto a bancar o projeto, com
dinheiro público. Em entrevista coletiva, o presidente da Empresa de
Planejamento e Logística (EPL), Bernardo Figueiredo, que assumiu o trem após o
escanteamento da Valec, disse na ocasião que a denúncia da Siemens sobre o
cartel do metrô em São Paulo incentivou o governo a empurrar a licitação. Mas o
governo federal não desistiu da ferrovia de alta velocidade. Um novo edital de
licitação deve ser lançado em 2016.
O trem para Bangladânia ainda pode apitar no horizonte.