As experiências de engenharia social oriundas do socialismo
— que se multiplicaram em correntes várias, que guardam, sim, aquela matriz,
mas estão bastante transformadas hoje — foram minando pouco a pouco os pilares
da democracia como a conhecemos. À medida que uma ideia abstrata de igualdade —
QUE TAMBÉM PODE SER PROMOVIDA POR UMA DITADURA! — tomou o lugar da liberdade
como elemento distintivo e exclusivo do regime democrático, valores essenciais
dessa experiência civilizatória foram entrando em declínio. Episodicamente,
pragmáticos do ultraliberalismo se uniram às esquerdas renovadas (que já não
querem mais, claro!, a planificação da economia de modelo soviético) no que
chamo de desprestígio (e até de ódio) à democracia.
Há um bom tempo venho percebendo esse movimento no Brasil e
em vários outros países. O resultado das eleições americanas deu o ensejo para
que adoráveis autoritários — alguns nem mesmo sabem o nome do que praticam —
expusessem todas as suas tentações. Das vocações supostamente as mais
libertárias, ouvi a satanização da divergência, da oposição, do contraditório.
E não só no Brasil. Editoriais de jornais americanos jogam fora os fatos e a
história do país para emprestar ao resultado das urnas a expressão de uma
suposta vontade coletiva de que Barack Obama seria uma espécie de antena ou de
demiurgo, de sorte que opor-se a ele, como fazem os republicanos (que crime!),
passa a ser encarado como sabotagem, expressão do atraso, do reacionarismo,
coisa de “macho, branco e velho”. Nessa perspectiva, a nova metafísica é
“mulher, latina e jovem” (ainda voltarei a esse aspecto.
Pausa para um momento emblemático. Depois retomo.
Assistia ontem ao Jornal da Globo. O correspondente Marcos
Uchoa apresentou uma reportagem sobre a escolha do novo dirigente máximo da
tirania chinesa. Falou-se das conquistas econômicas do país (o modelo é
eficiente), das novas gerações que se beneficiam do crescimento (promove-se o
bem comum…) etc e tal. E só um pouquinho da ditadura. Tendo como fundo a
eleição americana, lembrou-se que também o regime chinês escolherá seu
dirigente máximo, mas sem consulta popular. Então Uchoa disse o seguinte:
“Do comunismo, só restou o nome. Essa geração que vai
assumir o poder é de filhos de antigos membros importantes do partido e é uma
elite bem-educada e que hoje descartou dogmas ideológicos do passado e se
concentra nas peças-chave da política: poder e dinheiro. Na mesma semana, o
mundo vai ver duas maneiras bem diferentes de jogar o mesmo jogo.”
Comento
Não estou atribuindo intenções sub-reptícias ao repórter, de
cujo trabalho não tenho nenhuma opinião. Nunca parei para pensar nisso. Também
não o tomo como um pensador que deva ser contestado porque, afinal, influente e
capaz de formar escola. Não! A questão é ainda mais séria. Temo que ele tenha
sido apenas porta-voz de uma concepção corrente — ou que pode se tornar
corrente. Um dos principais telejornais do país, da emissora mais importante e
com maior audiência, sustenta que a eleição de um presidente nos EUA, sob o
regime democrático (ainda), e a escolha do novo tirano chinês são “maneiras bem
diferentes de jogar o mesmo jogo” — assim como, sei lá, Barcelona e Chelsea
correndo atrás da bola. Ucha estabelece as peças-chave da política: “poder e
dinheiro”. Até Delúbio Soares poderia dizer a mesma coisa.
Reitero: não estou tentando acusá-lo de ser um defensor de
tiranias ou algo assim, mas o “jogo” que Obama ainda joga é outro — cada vez
mais contaminado, é verdade, nos EUA, no Brasil e em várias outras democracias
por aquele “esporte” que se pratica na China. E não! É falso que, naquele país,
só tenha restado do comunismo o nome, Marcos Uchoa! Restou também, e isto é
fundamental, o modelo de organização política. A fala do repórter tem
importância porque ela é a plena expressão de um tempo em que a igualdade (ou o
bem-estar social) tomou o lugar da liberdade como valor essencial da
democracia. Como escrevi logo de início, também as ditaduras podem fazer coisas
boas para as pessoas — como provam, no Brasil, o Estado Novo e o Regime
Militar. Fim da pausa para um momento emblemático.
Retomo
Muito bem! Os republicanos perderam a eleição. E daí?
Atribui-se a derrota — como se ela tivesse sido vexaminosa, submetendo o
partido ao ridículo, o que é uma piada — a suas convicções, que seriam
ultrapassadas, conservadoras, reacionárias. Escolham entre esses e outros
adjetivos aquele que lhes parecer mais depreciativo. Mas é isso o que dizem,
afinal de contas, os fatos???
Mitt Romney teve seu nome sufragado por 48,1% daqueles que
foram votar, contra 50,4% de Obama. Não foi pequeno o risco de se ter, mais uma
vez, um presidente vitorioso nas urnas que, não obstante, perde no colégio
eleitoral. A regra, nos EUA, é o presidente conquistar a reeleição, não o
contrário. A excepcionalidade de Obama, havendo uma, está em tê-lo conseguido
com uma das mais baixas margens da história — apenas 2,3 pontos de vantagem. Do
primeiro ano do século 20 até agora (incluindo-se o segundo mandato do atual
presidente), os republicanos foram governo por 15 mandatos; os democratas, por
14. Considerado só o século passado, o placar é de 13 a 12 a favor dos
primeiros. Neste século, chegarão ao empate: dois a dois. Os democratas ficaram
20 anos no poder (de 1933 a 1952). Seus líderes chegaram a namorar com
tentações fascistoides, mas o regime democrático acabou triunfando. Nas
eleições deste ano, não custa lembrar, os republicanos mantiveram o controle da
Câmara.
Por que, afinal, analistas de lá — dos EUA — e daqui
insistem em apontar o que seria uma derrota histórica do partido (???), havendo
mesmo quem anteveja, santo Deus!, até a sua extinção?
Vamos lá
Embora Obama tenha sido eleito e reeleito segundo as regras
vigentes na democracia americana, é visto, por deslumbrados de lá e daqui, não
como um procurador daqueles valores, mas como um seu reformador. Em certa
medida, algo análogo acontece, no Brasil, com o lulo-petismo. Como a “igualdade
e o bem-estar social” (aquilo que a China também promove…) tomaram o lugar da
liberdade como valor essencial da democracia e como o presidente é visto como a
encarnação desses valores, opor-se a ele fugiria da esfera da luta democrática.
Os republicanos, assim, não seriam representantes de uma parcela da população
americana — simbolicamente, nesta eleição, a metade! — que discorda de suas
medidas, de suas políticas, de suas escolhas! Nada disso! Seriam apenas
porta-vozes do atraso, sabotadores, defensores de privilégios, insensíveis
sociais que não estariam atentos ao novo momento.
Se os EUA se fizeram (e até Obama lembrou isso no discurso
da vitória) articulando suas diferenças e divergências — e falamos de um povo
que fez uma das guerras civis mais cruentas da história —, esse momento da
democracia vigiado por minorias militantes, por alcaides do pensamento e por censores
bem-intencionados excomunga o contraditório. À oposição, assim, não cabe nem
mesmo o papel de vigiar as escolhas de Obama — muito menos de recusá-las. A ela
estaria reservado o silêncio obsequioso, já que o mandato deste presidente não
viria apenas das urnas, mas também dessa espécie de encarnação de utopias
coletivas e igualitárias.
A VEJA.com publicou ontem uma boa síntese do que escreveram
sobre o resultado das eleições alguns jornais americanos. O Wall Street Journal
vislumbra severas dificuldades para os republicanos (com, reitero, 48,1% dos
votos totais!!!) porque o partido teria sido escolhido, principalmente, pela
população branca e mais velha — que está em declínio. Poderia ter incluído
também “os homens”. Assim, este seria o retrato da “reação” na América: macho,
branco e coroa. Newt Gingrich, derrotado por Romney nas primárias, não perde a
chance de embarcar no equívoco. Afirmou que seu partido enfrenta um “grande
desafio institucional”: descobrir como se conectar com os eleitores das
minorias que compõem uma parcela cada vez maior da sociedade americana. “O
Partido Republicano simplesmente tem de aprender a parecer mais inclusivo para
as minorias, particularmente hispânicos”. Repete, mais ou menos, o juízo asnal
de alguns tucanos no Brasil, que estão convictos de que o PSDB deve disputar o
eleitorado cativo do PT… “Ah, mas um dia os brancos serão minoria, e aí…” Bem,
é preciso ver se os descendentes dos latinos, em 20 ou 30 anos, continuarão
seduzidos pela pauta democrata, não é?
Os republicanos construíram, eis a verdade, uma alternativa
real de poder — refiro-me à questão política; no conteúdo, os dois candidatos
foram sofríveis, especialmente nos temas internos. E o fizeram, no que concerne
aos valores, sendo quem são. Os números e a história demonstram que a virtude
da democracia americana, ao contrário do que tenho ouvido por aí, está
justamente na polarização. “Mas os republicanos quase levam os EUA ao calote,
Reinaldo!” Não! Os republicanos se utilizaram de uma garantia constitucional
para não permitir que o Executivo impusesse a sua vontade. Obama foi obrigado a
negociar, e eis aí o homem reeleito.
O New York Times (aquele jornal que aceita anúncio
conclamando católicos a deixar de ser católicos, mas recusa o que conclama
muçulmanos a abandonar a sua religião) foi mais longe. Viu na reeleição de
Obama “um repúdio à era Reagan” no que diz respeito ao corte exagerado dos
impostos e às políticas de “intolerância, medo e desinformação”. Uau! É um
triplo salto carpado dialético e tanto, não sei se já sob a influência de Mark
Thompson, ex-chefão da BBC e contratado para ser o chefão do jornal americano.
Na empresa britânica, ele se tornou célebre por declarar que, por lá,
permitia-se zombar de Jesus, mas não de Maomé. Evoco essas questões laterais
porque elas compõem a metafísica de um tempo. Então vamos ver. Talvez eu não
tenha entendido direito o “raciossímio” do Times. Em 1980, Reagan venceu Carter
em 44 estados — o democrata ficou com apenas 6 (50,7% dos votos a 41%). No
Colégio, o placar foi de 489 a 49. E Carter era presidente! Em 1984, o
republicano foi reeleito de forma humilhante para os democratas: sagrou-se
vitorioso em 49 estados (58,8% a 40,6%). Deixou apenas um para o adversário; no
colégio, 525 a 13! O presidente fez o seu sucessor, Bush pai, que triunfou em
40 estados (426 a 111): 53,37% a 45,65%. Não obstante, a era Reagan teria sido
repudiada agora, e a evidência estaria na vitória de Obama em apenas 26 estados
(contra 24 do adversário), por um placar com 2,3 pontos de diferença. Clinton
venceu em 33 estados na primeira eleição (1992) e em 32 na segunda (1996). E manteve
os fundamentos da economia da era Reagan. Eis a verdade traduzida em números da
afirmação feita pelo jornal.
Que fique claro!
A mim me importam menos as respectivas pautas de cada
candidato do que essa cultura de aversão à democracia que vai se espalhando. E
que, por óbvio, não nos é estranha. Também entre nós o exercício da oposição,
agora que “progressistas” estão no poder, vai se tornando algo malvisto, mero
exercício de sabotagem e de oposição àqueles que seriam os interesses do povo.
Dou um exemplo evidente: as cotas raciais foram impostas às universidades
federais sem nem mesmo debate no Parlamento. A simples crítica à medida é
apontada como ódio aos pobres, às minorias, aos oprimidos — todas aquelas
tolices fantasiosas que compõem o estoque de agressões dos autoritários.
Os republicanos? Ah, eles tiveram a coragem de enfrentar o
tal “Obamacare”, o que parecia, à primeira vista, suicídio político e, mais uma
vez, obrigaram o governo a negociar. E sabem por que o fizeram? Porque tinham
mandato de seus eleitores para fazê-lo. E agiram dentro das regras
estabelecidas pela democracia americana. “Ah, mas olhe aí o resultado!” Sim,
olho e vejo um partido que era uma real alternativa de poder. E só o era — e
como as emissoras de TV suaram frio desta vez, não é? — porque, em vez de
aderir à pauta do adversário — que, afinal, do adversário é —, fez a sua
própria ao longo dos quatro anos de mandato de Obama. Reitero: não entro no
mérito; talvez, nos EUA, eu apoiasse o plano de saúde de Obama. O ponto não é
esse: estou advogando o direito que tem a oposição de ser contra ele. Se é por
bons ou por maus motivos, isso o processo político evidencia. Chega a espantoso
que muitos cobrem da oposição brasileira coragem para enfrentar o PT, mas
adiram alegremente à satanização dos republicanos porque estes fazem lá —
reitero: não estou tratando de conteúdo — o que a oposição brasileira não
aprendeu a fazer aqui.
Fala-se, finalmente, de um país dividido. É? Melhor do que
outro em que um partido, com pretensões hegemônicas, recorre a expedientes
criminosos para eliminar a oposição. Os “decadentes” republicanos terão, por
exemplo, o domínio da Câmara. Não existem PMDB e PSD nos EUA, aqueles que não
são “nem de esquerda, nem de direita, nem de centro”. Os derrotados do dia
anterior não são os vitoriosos do dia seguinte — ou, para ficar na espécie
(como diria Marco Aurélio), derrotados e vitoriosos num mesmo dia… O que se
chama um “país rachado” é um país que reconhece, ainda!!!, instituições por
meio das quais se articulam essas divergências.
O valor exclusivo da democracia é a liberdade. E a
característica exclusiva da liberdade é poder dizer “não”.