Ecoam no mundo as homenagens que enaltecem a memória daquele
que é considerado uma das maiores personalidades da política do século 20,
Nelson Mandela, o homem que conseguiu acabar pacificamente com a segregação
racial legal e reconciliar seu país consigo mesmo. O êxito de Mandela na luta
contra o apartheid e para lançar as bases da democracia na África do Sul
deveu-se à sua capacidade de convencer, principalmente a imensa maioria negra,
ao lado da qual lutava, de que o sangrento conflito racial que mantinha o país
preso ao passado só poderia terminar no dia em que negros e brancos se
reconhecessem mutuamente, para além de suas profundas diferenças, como cidadãos
iguais perante a lei. E que, como tal, se respeitassem.
Se é fácil imaginar a carga de preconceito que os brancos
precisaram superar para aceitar a conciliação com os negros, mais fácil ainda é
entender até que ponto o absolutamente compreensível rancor de uma imensa
maioria negra historicamente perseguida e oprimida se apresentava como um
obstáculo aparentemente intransponível ao projeto de conciliação defendido por
Mandela. Mas uma inabalável convicção e uma inquebrantável perseverança
mantiveram o grande líder firme e determinado mesmo nos momentos, certamente
muitos, em que se viu confrontado pelo ceticismo e pelo inconformismo, quando
não pela desconfiança de seus companheiros. Mandela, genuíno homem público,
sabia que existe uma enorme diferença entre convencer e agradar e que muitas
vezes é preciso pagar o preço das verdades duras, dos argumentos ásperos, para
colher mais adiante o bem comum. Mandela, definitivamente, não era um
populista.
Já no Brasil...
Em contradição com tudo o que Nelson Mandela pregou e
realizou, aquele que se considera o nosso maior e mais importante líder
político, Luís Inácio Lula da Silva, incorpora o mais refinado figurino
populista do cenário latino-americano. Refinado, explico, apenas por conta de
que Lula consegue ser o grande ilusionista que é num país onde, por questões
históricas peculiares, as instituições democráticas são mais sólidas do que as
daqueles em que a falácia do "bolivarismo" sustenta a liderança de populistas
simplesmente patéticos.
Mandela dedicou a vida à conciliação dos sul-africanos. Lula
prega o confronto entre os brasileiros. Nosso eterno líder sindical se
convenceu, desde sempre, de que na política só existem "nós ou eles"
e esse mantra segue sendo a síntese de seu, digamos assim, pensamento político,
muito especialmente em períodos eleitorais.
Durante os primeiros 20 anos de existência do PT Lula foi o
ferrabrás que era contra "tudo isso que está aí". Para se eleger em
2002 converteu-se provisoriamente em "Lulinha paz e amor", o que
incluía desdizer quase tudo o que sempre dissera nos palanques. Mas, eleito e
estimulado por índices estratosféricos de apoio popular, gradativamente voltou
a ser o velho Lula rancorosamente hostil com os "inimigos" e pragmaticamente
impositivo tanto na ação governamental quanto na partidária.
Lula exige que sua palavra seja lei. E a lei de Lula manda,
primeiro, privilegiar ações de governo populistas, como um bolsismo necessário,
mas incompetente e de viés claramente demagógico, e, depois, lançar a culpa de
tudo o que não funciona ou dá errado sobre os ombros de um inimigo difuso,
jamais denominado, que tanto podem ser as "elites" quanto todo e
qualquer vivente que ouse a ele se opor. Por inspiração do Grande Chefe e com o
toque de glamour fornecido pelo marketing, o discurso e a ação do governo
baseiam-se hoje num tripé: a promessa, a versão e o porrete. Promessa de
inesgotáveis bondades de grande apelo popular, versão edulcorada - ou puramente
mendaz - dos desacertos provocados por sua própria incompetência de gestão e
porrete no lombo da tigrada inimiga.
Haverá quem afirme que qualquer governo faz o mesmo, no
mundo inteiro. É uma generalização talvez um tanto depreciativa, mas, enfim,
governos são os homens que os integram e todos sabemos que o homem está longe
de ser a obra mais perfeita do Criador. Tudo, porém, tem um limite, como diria
o conselheiro Acácio. E em política o limite de tolerância para os malfeitos
dos políticos - imperdoável corrupção à parte - é o da traição aos princípios
que sempre defenderam. Nelson Mandela foi um exemplo de coerência. Lula traiu
suas origens ao fazer, por apego ao poder, o Brasil ressuscitar com toda a
força o secular patrimonialismo estatal que transformou o estamento burocrático
em verdadeiro dono do poder, conforme Raymundo Faoro diagnosticara muito antes
do advento do lulopetismo.
O próprio Lula revelou-se, ele mesmo, lá do pináculo de sua
onipotência, um patrimonialista tão irredimível quanto os tradicionais coronéis
da política aos quais se aliou, ao demonstrar que não distingue o público do
privado: ao apagar das luzes de seu governo, teve o caradurismo de mandar
distribuir passaportes diplomáticos para seus petizes e dias depois, já
ex-presidente, refestelou-se com a família em aprazível propriedade da Marinha
no Guarujá, para um merecido descanso à custa do erário. Exemplos aparentemente
sem maior importância, mas suficientes para desnudar o rei.
Neste ano eleitoral, o tripé petista está armado de modo a
garantir para a turma de Lula e seus aliados de mão grande mais quatro anos de
patrimonialismo explícito, defendido na base da porretada, até mesmo contra o
Judiciário. Dilma Rousseff aparentemente já conseguiu conciliar essa estratégia
com seu próprio passado, simplesmente olhando para o outro lado, enquanto Lula
decide o que deve ser dito nos palanques e quais devem ser os alvos da
artilharia pesada. O recente e feroz ataque ao ex-aliado Eduardo Campos é uma
pequena amostra do que vem por aí.
Tudo a demonstrar que entre Lula e Nelson Mandela c'è di
mezzo il mare...