O Brasil é um país fantástico. Mais ainda, é um país do
realismo fantástico, onde ficção se mistura com história e produz releituras ao
sabor dos acontecimentos. A última tem como tema a morte do ex-presidente João
Goulart, o Jango, na Argentina.
A Câmara dos Deputados fez uma investigação, ouviu dezenas
de testemunhas e elaborou um longo relatório. Concluiu que não havia indícios
de assassinato. Em entrevista a Geneton Moraes Neto, publicada no livro “Dossiê
Brasil: as histórias por trás da História recente do país”, a senhora Maria
Tereza Goulart descartou qualquer suspeita de assassinato do seu marido: “Eu
estava ao lado de Jango o tempo todo, nos últimos dias. Jango morreu do
coração. Tinha feito um regime violento e mal controlado. Chegou a perder 17 quilos
em dois meses. E estava fumando muito. O médico já tinha dito que ele não
poderia fumar.”
Jango era um cardiopata. E de longa data. No México, a 10 de
abril de 1962, em visita oficial, assistindo a uma exibição do balé folclórico
mexicano, no Teatro Belas Artes, o presidente teve um ataque cardíaco. Ficou
desfalecido por um minuto. Atendido por médicos mexicanos, ficou
impossibilitado de continuar a cumprir a agenda presidencial, sendo substituído
por San Tiago Dantas. No retorno ao Brasil, o grande assunto era o estado de
saúde de Jango e a possibilidade de que renunciasse à Presidência. Afinal, era
o segundo ataque cardíaco em apenas oito meses. Dois meses depois, quando da
recepção em palácio da seleção brasileira que partiria para a Copa do Mundo no
Chile, Pelé manifestou preocupação com a saúde do presidente: “Presidente, como
vão estas coronárias?” E Jango respondeu: “Estão boas, mas não tanto quanto as
suas.”
Às vésperas do célebre comício da Central (13 de março de
1964), seu estado de saúde inspirava cuidados. Foi advertido que poderia ter
sérias complicações com o coração. Jango desdenhou e manteve seu ritmo
costumeiro de vida sedentária, alimentação inadequada, excesso no consumo de
bebidas e vivendo em permanente estresse. No exílio uruguaio, também devido aos
problemas com o coração, foi atendido pelo dr. Zerbini. Na França, onde esteve
várias vezes, foi cuidar do coração e chegou a tentar uma consulta com o dr.
Christian Barnard, na África do Sul, médico que dirigiu a equipe que fez o primeiro
transplante de coração.
A transformação de Jango em um perigoso adversário do regime
militar — tanto que o seu assassinato teria sido planejado pela Operação Condor
— não passa de uma farsa. No exílio uruguaio, especialmente nos anos 1970, não
tinha qualquer atuação política.
Tudo não passa de mais uma tentativa de mitificação, da
hagiografia política sempre tão presente no Brasil. O figurino de democrata,
reformista e comprometido com os deserdados foi novamente retirado do
empoeirado armário. Agora pelos seus antigos adversários, os petistas. Mero
oportunismo. É que a secretária dos Direitos Humanos, Maria do Rosário,
pretende ser candidata ao Senado pelo Rio Grande do Sul. E, como boa petista,
não se importa de reescrever a história ao seu bel-prazer.
O cinquentenário dos acontecimentos de março/abril de 1964 é
uma boa oportunidade para rever o governo Jango. O início dos anos 1960 esteve
marcado pela agudização das mais variadas contradições. O esgotamento do ciclo
econômico que alcançou seu auge na presidência JK era evidente. A grande
migração tinha criado uma sociedade urbana e novas demandas que os governos não
sabiam como atender. A tensão gerada pela Guerra Fria azedava qualquer
conflito, por mais comezinho que fosse.
É nesta conjuntura que Jango tentou governar. E foi um
desastre. Raciocinava sempre imaginando algum tipo de ação que significasse o
abandono da política, do convencimento do adversário. Era tributário de uma
tradição golpista, típica da política brasileira da época.
Nunca fez questão de esconder seu absoluto desinteresse
pelas questões mais complexas da administração pública, distantes da
politicagem do dia a dia. Celso Furtado, nas suas memórias (“A fantasia
desorganizada”), relatou que entregou o Plano Trienal — que buscava planejar a
economia nos anos 1963-1965 — ao presidente depois de exaustivas semanas de
trabalho. Jango mal passou os olhos pela primeira página. Em entrevista à
revista “Playboy”, em abril de 1999, Furtado foi direto: Jango “era um
primitivo, um pobre de caráter”.
No polo ideológico oposto, o embaixador Roberto Campos,
também nas suas memórias (“A lanterna na popa”), contou que escreveu um
documento de 30 páginas relatando os contenciosos do Brasil com os Estados
Unidos, em 1962, quando da visita do presidente a Washington. San Tiago Dantas,
ministro das Relações Exteriores, pediu ao embaixador que reduzisse ao máximo a
extensão do texto, pois com aquele volume de páginas o presidente não leria.
Obediente, o embaixador sintetizou os problemas em cinco páginas, que foram
consideradas excessivas. Diminuiu para três páginas. Mesmo assim, segundo
Campos, Jango não leu o documento.
As reformas de base, palavra de ordem repetida à exaustão
naqueles tempos, nunca foram apresentadas no seu conjunto. A definição — ainda
que vaga — apareceu somente na mensagem presidencial encaminhada ao Congresso
Nacional quando do início do ano legislativo, a 15 de março de 1964. E lembrar
que foram apresentadas como soluções de curto prazo — mesmo sendo mudanças
estruturais — durante três anos...
Deixou um país dividido, uma economia em estado caótico e
com as instituições desmoralizadas. E abriu caminho para duas décadas de
arbítrio.