Imaginem por um curto instante o estado de choque em que
ficariam o comitê central do PT, seus milhares de militantes e sua agressiva (e
cada vez mais cara) máquina de propaganda, se esta revista, para dar um exemplo
de entendimento bem fácil, publicasse um texto no qual o povo brasileiro fosse
chamado de "essa gente". Mais: que "essa gente" está
cometendo uma enorme "ingratidão" ao protestar contra o governo,
depois de todos os presentes que tem ganhado das nossas mais altas autoridades.
O mundo viria abaixo - eis aí, diria a esquerda nacional, a prova definitiva da
sordidez sem limites da "grande mídia" brasileira. Mas, graças ao bom
Deus, quem disse isso não foi VEJA, e sim o secretário-geral (com nível de
ministro) Gilberto Carvalho, descrito como homem de importância praticamente
sobrenatural dentro e fora do Palácio do Planalto. Será que foi mesmo ele? Sim,
está provado que foi, numa viagem recente a Porto Alegre. "Fizemos tanto
por essa gente", queixou-se Carvalho, "e agora eles se levantam
contra nós." Essa gente? Eles? Ingratidão? É um concentrado de insultos à
população que parece ter saído diretamente da linguagem utilizada no Brasil
antes da abolição da escravatura.
Está tudo errado nessa declaração, a começar pelo sujeito da
frase. "Fizemos"? Quem "fizemos"? É como se o ministro e
seus companheiros estivessem tirando dinheiro do próprio bolso para dar aos
pobres; mas quem banca tudo é o povo, a cada tostão que tem de pagar em
impostos quando compra um palito de fósforo que seja. Ao mesmo tempo, está tudo
certo, certíssimo: a frase do companheiro é provavelmente a tomografia mais
fiel já feita até hoje dos verdadeiros sentimentos que os donos atuais do
Brasil têm em relação à sociedade brasileira. O secretário, simplesmente, disse
em público aquilo em que ele e os companheiros acreditam em particular. Foi uma
espécie de hora da verdade — por distração, ou sabe-se lá por quê, Carvalho
esqueceu a regra-base de seu partido, que manda os chefes não falarem como
pensam e, mais do que tudo, não agirem como falam. "Essa gente" a que
se refere o companheiro Carvalho, exatamente como os barões do café falavam no
Brasil do atraso, é a mesma de sempre: o povão da fila do ônibus ou da sala de
espera do SUS, essa grande massa sem rosto ou nome, ignorante, preguiçosa,
inepta, desinformada, capaz de ler não mais do que três palavras juntas na
telinha do celular, sem noção de seus direitos, só utilizável para o trabalho
braçal e ainda por cima ingrata. Quando um dos mais notáveis lordes do
almirantado petista fala como falou sobre a nossa "gente", aparece à
vista de todos o real projeto das forças que estão no governo: reinar sobre uma
opinião pública obediente, inconsciente e boçal, que tem de agradecer quando
recebe um pouco daquilo a que tem direito. O que querem é manter o Brasil
exatamente como está e sempre esteve, mas com a astúcia de fingirem que estão
mudando tudo.
O governo do ex-presidente Lula, de Dilma Rousseff e do PT é
uma das mais bem-sucedidas farsas jamais levadas ao público na história
política brasileira. Por conta de progressos ocorridos nos níveis de bem-estar,
os mesmos que dezenas de outros países alcançaram nos últimos anos (ou até
menos do que muitos deles conseguiram), Lula e seu entorno, com endosso de
gente séria pelo mundo afora, garantem que sua missão de fazer uma revolução
social no Brasil foi um espetáculo — o tipo da operação concluída com sucesso,
como dizem as vozes que desbloqueiam cartões de crédito pelo telefone. Mas não
mudou nada no modo como o país é governado, nem como o poder é distribuído, nem
como o bolo é fatiado; não houve nenhuma "mudança estrutural", que é
a maneira de os economistas dizerem que foi trocada a pintura do carro, mas não
se mexeu em nada no motor. De concreto, mesmo, é o compromisso do governo
petista de manter intacto o Brasil do passado — injusto, desigual, atrasado,
onde o importante não é ser cidadão brasileiro, e sim depender de quem está no
governo. Lula e seu auditório tinham prometido acabar com esse Brasil obsoleto
e colocar em seu lugar uma nação pronta para o século XXI. Onze anos após eles
chegarem à Presidência da República, o Brasil, na sua essência, está idêntico
ao que receberam em janeiro de 2003 — e seus melhores aliados são justamente os
chefes políticos que equivalem, hoje, aos senhores de engenho de ontem. Com
certeza não houve revolução nenhuma em todo esse período. Como estava, ficou.
O Brasil seria um país bem melhor se Carvalho fosse uma
exceção — um "ponto fora da curva", como se diz hoje. Infelizmente,
não é assim. Na verdade, o secretário-geral da Presidência é a própria curva —
um espelho que reflete sem piedade a vida como ela é no ano 11 da Era Lulista.
Mais que isso, reflete o exemplo de conduta que o homem recebe de quem está
acima, e quem está acima dele é a presidente da República. Essa última viagem
de Dilma à Suíça e a Cuba, por exemplo, é um perfeito improviso do falso
esquerdismo do governo, que tenta ocultar, com palavrório, notas oficiais de
sintaxe primitiva e a pura e simples mentira, os hábitos de sultão que seus
barões adotam na realidade do cotidiano: falam de um jeito, vivem de outro. O
que poderia comprovar melhor seu desprezo pelo cidadão comum do que a mentira
que a presidente obrigou seu ministro do Exterior a dizer em público, para
esconder os motivos de uma escala "não programada" que fez em
Portugal - e, ainda por cima, uma mentira incompetente, incapaz de resistir a
24 horas de investigação? A atitude oficial é: "Inventem aí uma coisa
qualquer para dizer ao público". Para piorar, Dilma hospedou-se num hotel
onde a diária da principal suíte passa dos 8 000 euros, soma de meter medo em
qualquer campeão das nossas elites mais vorazes. Pode uma coisa dessas? Não
pode. Não é uma questão legal; é uma questão de compostura, só isso. A
governante número 1 de um país com as misérias do Brasil simplesmente não tem o
direito moral de gastar 8 000 euros do Tesouro Nacional para pagar uma noite de
sono. O conserto ficou pior que o defeito quando Dilma decidiu esclarecer uma
conta de cerca de 300 reais que pagou em seu jantar em Lisboa. "Paguei com
o meu dinheiro", disse ela. "Se o dinheiro é meu, eu como onde
quiser. Estou pagando." Há linguajar que reproduza tão bem o vocabulário
truculento da elite brasileira, nos seus piores momentos de onipotência,
grosseria e mania de grandeza? Nada de admirar, no fundo, quando se sabe que a
presidente aluga um caminhão só para levar suas roupas em viagens internacionais
— ou acha comum requisitar hospedagem para 45 assessores, como nesse último
passeio. É um dos vícios públicos brasileiros que mais agradam ao PT — a ideia
de "aproveitar" até o bagaço tudo o que o "governo está
pagando".
O fato é que existe hoje, nas massas que habitam a máquina
estatal, uma imensa distância separando a pregação revolucionária que fazem no
palanque das ações que praticam na vida diária. Para manter a pose de
"esquerda", e ao contrário do que ensina o dito popular, o cidadão come
presunto Pata Negra, mas arrota mortadela da venda. Quer falar como socialista
e, ao mesmo tempo, viver como burguês; não pode dar certo. Há um preço mínimo a
pagar para sustentar uma imagem, e esse preço exige que se enfrente um pouco de
desconforto para segurar a onda de herói popular. Fidel Castro, por exemplo,
hospedou-se num pulgueiro do Harlem em sua primeira visita a Nova York — não no
Excelsior de Roma ou no Ritz Four Seasons de Lisboa, como fez sua companheira
Dilma. Demagogia? Fidel achou que não; parece que sabia o que estava fazendo.
Os fatos, essa coisa irritante, oferecem muitos outros
exemplos da obra de falsificação construída por Lula, Dilma e pelo PT para
convencer a plateia de que a "direita", os "ricos" e os que
querem a volta do pelourinho e da chibata são os únicos brasileiros que
discordam do governo. É o contrário: estes todos, no mundo das realidades,
estão casados com o PT e o PT está casado com eles. Basta olhar um pouco. Não
há um único trabalhador no ministério do Partido dos Trabalhadores; em onze
anos de governo, e num país com 200 milhões de habitantes, não conseguiram
encontrar nenhum até agora, um só que fosse. Ao longo desses anos todos, não
foi eliminado no Brasil nem um privilégio sequer, essa praga que mantém nossa
vida pública amarrada no século XIX. Não foi cortado um único dos 20 000 a 25
000 cargos públicos para os quais a presidente, seus ministros, os burocratas
mais lustrosos e os onos do poder podem nomear quem bem entenderem. A
propriedade privada continua sendo sagrada para quem conta com amizades
"lá em cima" — sobretudo depois que tantos companheiros passaram a
desfrutar dos seus aspectos mais agradáveis. Usineiros continuam, como acontece
há séculos, recebendo dinheiro do contribuinte para resolver seus problemas —
só neste ano de 2014, levarão perto de 400 milhões de reais para casa. Os
"rentistas", maldição-mor na linguagem da moda entre os economistas
de esquerda, nunca viveram tão bem com as suas rendas.
Empresários amigos, e amigos dos amigos, continuam
desfrutando o caixa do BNDES, a juros inferiores a 1% ao ano, como sempre
desfrutaram durante os governos a serviço da "alta burguesia". Tem
sido especialmente simpático com frigoríficos, gente da celulose, capitães da
"indústria nacional" e empreendedores da modalidade Eike Batista, a
quem conseguiu emprestar 200 milhões de reais para reformar um hotel no Rio de
Janeiro; Eike não reformou um único mictório, a carcaça do hotel já foi vendida
e o BNDES, naturalmente, ainda não recebeu um centavo de volta. As empreiteiras
de obras públicas vivem uma nova época de ouro, tão rentável como viviam nos
governos de "direita". Uma delas, a Odebrecht, despacha direto com
Lula na construção de um incompreensível estádio para o Corinthians, e
construiu para Cuba, com dinheiro do povo brasileiro cedido por Dilma. um porto
avaliado em quase 1 bilhão de dólares.
O FGTS virou uma festa para milionários. Não há dinheiro que
pertença de forma mais clara e direta ao trabalhador — na verdade, existe uma
lista, nome por nome, de quem é proprietário das somas ali depositadas e
quanto, exatamente, cada um tem na sua conta. O Partido dos Trabalhadores,
porém, permite que o governo gaste como bem entender o dinheiro do trabalhador:
inventou um "Fundo de Investimento" para o FGTS investir os recursos
que recebe todo mês através da folha salarial das empresas, e já tinha, segundo
revelação recente da revista EXAME, quase 30 bilhões de reais em carteira no
fim de 2013. Três quartos dessa montanha de dinheiro estão aplicados — onde
mais poderia ser? — em títulos de dívidas e ações de empresas privadas, muitas
de capital fechado. Se algo der errado com elas, as garantias que o FGTS terá
serão os papéis de companhias quebradas. Belo investimento para o trabalhador
brasileiro, não? Só mesmo um governo dos trabalhadores cuidaria tão bem dos
seus interesses financeiros. Na maior parte esse dinheiro está espalhado pela
finíssima flor da elite que o PT fala todos os dias em exterminar: a incansável
Odebrecht, a Friboi, construtores de sondas para a Petrobras, empreiteiras de
obras, construção naval e por aí afora. Deu para entender? O melhor da história
é como se decide quem vai receber o dinheiro do fundo. Um conselho de doze
membros é quem realmente manda - e ali o governo tem seis representantes, mais
três que vêm dessas entidades chapa-branca como Confederação Nacional da
Indústria etc. E não há ninguém para falar pelo trabalhador? Sim, um só — um
cartola da CUT. Se no lugar dele se sentasse o marajá de Baroda, os
trabalhadores brasileiros estariam mais bem representados.
É difícil levar adiante essa vigarice de "governo do
povo" quando se considera, além de tudo o que já foi dito, que a
presidente da República, como se cogita com certa angústia no Palácio do
Planalto, está ameaçada de não poder ir a nenhum jogo da Copa do Mundo, para
não levar uma vaia de 24 quilates. Que "governo popular" é esse? O
companheiro Carvalho está achando que é uma tremenda injustiça. Mas o que se
vai fazer? "Essa gente" é mesmo uma dor de cabeça.