Às vésperas dos 50 anos do golpe militar torna-se necessário
um resgate da História para entendermos o presente. Em 1964 o Brasil era um
país politicamente repartido. Dividido e paralisado. Crise econômica, greves,
ameaça de golpe militar, marasmo administrativo. O clima de radicalização era
agravado por velhos adversários da democracia. A direita brasileira tinha uma
relação de incompatibilidade com as urnas. Não conseguia conviver com uma
democracia de massas num momento de profundas transformações. Temerosa do novo,
buscava um antigo recurso: arrastar as Forças Armadas para o centro da luta
política, dentro da velha tradição inaugurada pela República, que já havia
nascido com um golpe de Estado.
A esquerda comunista não ficava atrás. Sempre estivera nas
vizinhanças dos quartéis, como em 1935, quando tentou depor Getúlio Vargas por
meio de uma quartelada. Depois de 1945, buscou incessantemente o apoio dos
militares, alcunhando alguns de "generais e almirantes do povo". Ser
"do povo" era comungar com a política do Partido Comunista Brasileiro
(PCB) e estar pronto para atender ao chamado do partido numa eventual aventura
golpista. As células clandestinas do PCB nas Forças Armadas eram apresentadas
como uma demonstração de força política.
À esquerda do PCB havia os adeptos da guerrilha. O Partido
Comunista do Brasil (PCdoB) era um deles. Queria iniciar a luta armada e
enviou, em março de 1964, o primeiro grupo de guerrilheiros para treinar na
Academia Militar de Pequim. As Ligas Camponesas, que desejavam a reforma
agrária "na lei ou na marra", organizaram campos de treinamento no
País em 1962 - com militantes presos foram encontrados documentos que
vinculavam a guerrilha a Cuba. Já os adeptos de Leonel Brizola julgavam que
tinham ampla base militar entre soldados, marinheiros, cabos e sargentos.
Assim, numa conjuntura radicalizada, esperava-se do
presidente um ponto de equilíbrio político. Ledo engano. João Goulart
articulava sua permanência na Presidência e necessitava emendar a Constituição.
Sinalizava que tinha apoio nos quartéis para, se necessário, impor pela força a
reeleição (que era proibida). Organizou um "dispositivo militar" que
"cortaria a cabeça" da direita. Insistia em que não podia governar
com um Congresso Nacional conservador, apesar de o seu partido, o PTB, ter a
maior bancada na Câmara dos Deputados após o retorno do presidencialismo e não
ter encaminhado à Casa os projetos de lei para tornar viáveis as reformas de
base.
Veio 1964. E de novo foram construídas interpretações para
uso político, mas distantes da História. A associação do regime militar
brasileiro com as ditaduras do Cone Sul (Argentina, Uruguai, Chile e Paraguai)
foi a principal delas. Nada mais falso. O autoritarismo aqui faz parte de uma
tradição antidemocrática solidamente enraizada e que nasceu com o Positivismo,
no final do Império. O desprezo pela democracia rondou o nosso país durante cem
anos de República. Tanto os setores conservadores como os chamados
progressistas transformaram a democracia num obstáculo à solução dos graves
problemas nacionais, especialmente nos momentos de crise política. Como se a
ampla discussão dos problemas fosse um entrave à ação.
O regime militar brasileiro não foi uma ditadura de 21 anos.
Não é possível chamar de ditadura o período 1964-1968 - até o Ato Institucional
n.º 5 (AI-5) -, com toda a movimentação político-cultural que havia no País.
Muito menos os anos 1979-1985, com a aprovação da Lei de Anistia e as eleições
diretas para os governos estaduais em 1982. Que ditadura no mundo foi assim?
Nos últimos anos se consolidou a versão de que os militantes
da luta armada combateram a ditadura em defesa da liberdade. E que os militares
teriam voltado para os quartéis graças às suas heroicas ações. Num país sem
memória, é muito fácil reescrever a História.
A luta armada não passou de ações isoladas de assaltos a
bancos, sequestros, ataques a instalações militares e só. Apoio popular?
Nenhum. Argumenta-se que não havia outro meio de resistir à ditadura a não ser
pela força. Mais um grave equívoco: muitos desses grupos existiam antes de 1964
e outros foram criados pouco depois, quando ainda havia espaço democrático. Ou
seja, a opção pela luta armada, o desprezo pela luta política e pela
participação no sistema político, e a simpatia pelo foquismo guevarista
antecederam o AI-5, quando, de fato, houve o fechamento do regime. O terrorismo
desses pequenos grupos deu munição (sem trocadilho) para o terrorismo de Estado
e acabou sendo usado pela extrema direita como pretexto para justificar o
injustificável: a barbárie repressiva.
A luta pela democracia foi travada politicamente pelos
movimentos populares, pela defesa da anistia, no movimento estudantil e nos
sindicatos. Teve em setores da Igreja Católica importantes aliados, assim como
entre os intelectuais, que protestavam contra a censura. E o MDB, este nada
fez? E os seus militantes e parlamentares que foram perseguidos? E os cassados?
Os militantes da luta armada construíram um discurso eficaz.
Quem os questiona é tachado de adepto da ditadura. Assim, ficam protegidos de
qualquer crítica e evitam o que tanto temem: o debate, a divergência, a
pluralidade, enfim, a democracia. Mais: transformam a discussão política em
questão pessoal, como se a discordância fosse uma espécie de desqualificação
dos sofrimentos da prisão. Não há relação entre uma coisa e outra: criticar a
luta armada não legitima o terrorismo de Estado. Temos de refutar as versões
falaciosas. Romper o círculo de ferro construído, ainda em 1964, pelos
adversários da democracia, tanto à esquerda como à direita. Não podemos ser
reféns, historicamente falando, daqueles que transformaram o antagonista em
inimigo; o espaço da política, em espaço de guerra.