Política, ao menos na democracia, é diálogo. A condição para
o diálogo é a disposição genuína de ouvir --isto é, de mudar de ideia. O
fanático não dialoga, prega. Ele pretende converter o interlocutor, mas não
contempla a hipótese de rever suas próprias convicções. No fundo, almeja um
poder absoluto: moldar o outro segundo o figurino de crenças que selecionou
como verdadeiro. O artigo “Desvendando Marina”, de Rogério Cezar de Cerqueira
Leite (Folha, 31/8), não desvenda a candidata do PSB/Rede, mas atesta a virulência
antidemocrática dos fanáticos da Razão.
O articulista classifica Marina Silva como uma
fundamentalista cristã. No universo da ciência política, o conceito de
fundamentalismo religioso aplica-se às correntes que exigem a subordinação das
instituições públicas e da vida civil aos dogmas de uma fé. Os fundamentalistas
querem substituir o livro das leis (o contrato constitucional) pela Lei do
Livro (a Bíblia, o Corão ou a Torá). Marina não é, portanto, uma
fundamentalista --e, assim como a teoria da evolução, tal conclusão não é uma
questão de opinião.
O pensamento científico assenta-se sobre modelos e
evidências, abrindo-se ao teste da falseabilidade. Do alto de uma torre erguida
com a argamassa da arrogância, o fanático da Razão viola as regras que simula
seguir, operando por espasmos de subjetividade. Cerqueira Leite escandaliza-se
com as “crenças íntimas” de Marina, mas nem tenta apontar nas propostas
políticas da candidata alguma contaminação fundamentalista. Marina defende a
laicidade do Estado, sugere submeter o tema do aborto a plebiscito e alinha-se
com a decisão do STF sobre a união civil de homossexuais. São posições
semelhantes às de Dilma e Aécio, que também não reproduzem o catecismo do
movimento LGBT. No fim, o “desconforto” do Inquisidor da Razão é com a
liberdade de religião.
As grandes fogueiras da Igreja apagaram-se no passado, ainda
que suas brasas continuem queimando aqui e ali. No Ocidente, as fogueiras do
último século foram acesas por Estados totalitários que falavam a linguagem da
Razão. A URSS de Stálin e a China de Mao eliminaram milhões de pessoas em nome
da Ciência da História, que decifrara o enigma do futuro da humanidade. A
Alemanha de Hitler construiu as engrenagens do exterminismo sobre o alicerce da
Ciência da Raça, que prometia a salvação nacional no Reich de mil anos. O
fanático da Razão, tanto quanto o da religião, quer um governo que administre
as almas, não as coisas. Na democracia, contudo, as almas não fazem parte da
esfera de autoridade do Estado.
A pecha de fundamentalista religiosa lançada contra Marina
circula no submundo da internet, propagada por blogueiros governistas
sustentados por patrocínios de empresas estatais. Simultaneamente, e de acordo
com uma calculada lógica da duplicidade, o governo ensaia reativar um projeto
de lei que concede benefícios tributários às igrejas. Mas o Inquisidor da Razão
parece não sentir “desconforto” com a privatização partidária da máquina
pública nem com a transgressão do princípio elementar da separação entre Estado
e religião. Ele se incomoda, de fato, com “crenças íntimas”.
Sou agnóstico. Acho graça nos mitos religiosos da Criação - e
aborreço-me com pregadores que têm a exagerada pretensão de retificar minhas “crenças
íntimas”. Só existem superficiais diferenças de linguagem entre eles e os
intragáveis pregadores do ateísmo, que querem matar Deus, erradicando-o da
mente dos seres humanos. Uns e outros sonham com um Estado inquisitorial,
aparelhado para desentranhar as “ideias daninhas” que envenenam seus
concidadãos.
Marina já não é uma esfinge. A candidata divulgou um extenso
programa de governo, atravessado por tensões e não isento de contradições.
Melhor criticá-lo que acender uma fogueira com os galhos secos da árvore da
intolerância.