domingo, 14 de setembro de 2014

Um país de analfabetos científicos

Uma pesquisa nacional mostra que 79% dos brasileiros não conseguem entender um manual de instrução para usar aparelhos domésticos
CAMILA GUIMARÃES
A maioria da população brasileira não domina a linguagem científica necessária para lidar com situações cotidianas, tais como ler resultados de exames de sangue, calcular se o tanque tem gasolina suficiente para uma viagem, relacionar e entender o impacto de ações no meio ambiente ou entender a cobrança da conta de luz.
Essa é a conclusão da primeira pesquisa nacional que mede o índice de letramento científico (ILC) do brasileiro, feita pelo Instituto Abramundo, em parceria com o Instituto Paulo Montenegro, do Grupo IBOPE, e a ONG Ação Educativa.
Quase 65% da população metropolitana entre 14 e 50 anos, com mais de quatro anos de estudos, têm um ILC, no máximo, rudimentar. Pouco menos de um terço (31%) consegue entender textos com um grau um pouco maior de dificuldade, como interpretar a tabela de nutrientes em rótulos de produtos e especificações técnicas de produtos eletroeletrônicos. A maioria absoluta, 79%, além de não conseguir entender os termos científicos que lê, é incapaz de aplicar isso em situações cotidianas, como ler um manual de instrução para usar um aparelho doméstico. 
O Brasil que não sabe ler e fazer ciência
A pesquisa do ILC convidou os entrevistados a resolverem situações do cotidiano. Ele avalia o domínio da linguagem científica, como o conhecimento científico é colocado em prática no cotidiano e como tais conhecimentos pautam a visão de mundo dessas pessoas.
Escala de proficiência
Habilidades
% da população metropolitana de 14 a 50 anos, com 4 anos ou mais de estudo:
Nível 1 – Letramento Não-Científico
Consegue localizar informações explícitas em textos simples (tabelas ou gráficos, textos curtos) envolvendo temas do cotidiano: consumo de energia em conta de luz, dosagem em bula de remédio, identificação de riscos imediatos à saúde. Sem a exigência de domínio de conhecimentos científicos.
16%
Nível 2 – Letramento Científico Rudimentar
Resolvem problemas cotidianos que exigem o domínio de linguagem científica básica. Interpretam e comparam informações apresentadas de diferentes formas (gráficos, rótulos, textos jornalísticos, textos científicos, legislação). Compreendem fenômenos naturais e impactos ambientais.
48%
Nível 3 – Letramento Científico Básico
Elaboram propostas para resolver problemas em diferentes contextos (doméstico ou científico), a partir de evidências científicas em manuais de produtos, infográficos mais elaborados, ou conjunto de tabelas e gráficos com maior número de variáveis. Os temas abordados incluem a leitura de nutrientes em rótulos de produtos, especificações técnicas de produtos eletroeletrônicos, efeitos e riscos de fenômenos atmosféricos e climáticos e a evolução de população de bactérias.
31%
Nível 4 – Letramento Científico Proficiente
Elaboram respostas com argumentos científicos. Para justificar essas respostas, são capazes de incluir informações extras às apresentadas no problema. Usam uma linguagem que está relacionada a uma visão científica do mundo. Argumentam, por exemplo, sobre potência do chuveiro, temperatura global, biodiversidade, astronomia e genética.
5%
"Nós já esperávamos um resultado ruim, mas o que veio foi péssimo”, afirma Ricardo Uzal, presidente do Abramundo. “Nós sabemos o quanto a ausência do domínio científico impede o exercício da cidadania. Quem tem esse domínio se coloca de forma diferente diante de problemas do dia a dia, ele sabe questionar, propor soluções, testar alternativas”. Uzal diz ainda que a pesquisa mostra que faltam políticas públicas adequadas para melhorar o ensino de ciências nas escolas. Os resultados da pesquisa da Abramundo evidenciam ainda a falta de habilidade matemática aplicada no dia a dia. “A matemática serve como base para todas as outras ciências”, afirma Uzal.
Entre os que fazem ou fizeram curso superior, apenas 11% podem ser considerados proficientes. Há uma parcela significativa, de 37%, que não passa do nível rudimentar. Entre os que estudaram até o ensino médio, a situação é ainda mais crítica: apenas 1% é proficiente e mais da metade (52%), tem domínio rudimentar.
Na mais prestigiada avaliação internacional de alunos, o PISA, feito pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), ciências é a disciplina em que os alunos brasileiros estão mais defasados.
Na última prova, de 2013, o Brasil ficou 59º lugar, entre 65 países. Não houve avanço em relação ao desempenho de 2009. Para os organizadores da pesquisa do ILC, o resultado mostra a urgência de se criar políticas públicas de educação, para melhorar a eficiência do ensino da disciplina no ensino fundamental e médio. Em uma outra prova, o Pisa avaliou a capacidade dos alunos de resolver problemas de lógica. O Brasil se deu mal novamente, ficou em 38º lugar, entre 44 países. 
Educação sem ciência
Mesmo entre os que fazem ou fizeram um curso superior, o domínio da linguagem e de conceitos científicos, bem como as habilidades de aplicar isso no dia a dia, é baixo.

Nível 1
Nível 2
Nível 3
Nível 4
Ensino fundamental
29%
50%
20%
1%
Ensino Médio
14%
52%
29%
4%
Ensino Superior
4%
37%
48%
11%
Mesmo entre as pessoas mais proficientes, são poucos os que se sentem à vontade na hora de realizar pequenas tarefas ou ações que envolvem conhecimento científico. Combater um pequeno incêndio seguindo as instruções escritas nos equipamentos contra fogo, por exemplo. 27%   da turma mais proficiente, a do Nível 4, declarou que teria dificuldade ou não seriam capazes de fazer isso. A mesma proporção apareceu entre os de Nível 3. Ler manuais para instalar aparelhos domésticos é outro desafio para 18% dos mais proficientes, 20% dos de nível básico e 27% para os de letramento rudimentar.
Pequenos desafios cotidianos
Mesmo entre os mais proficientes, algumas atividades que envolvem conhecer e aplicar conceitos científicos são complicadas. (Proporção de pessoas que declararam que teriam dificuldades ou não seriam capazes de fazer determinadas atividades, por nível de proficiência)

Nível 1
Nível 2
Nível 3
Nível 4
Compreender as contraindicações de um remédio, lendo a bula
37%
26%
16%
11%
Conferir a conta de luz
40%
28%
18%
8%
Ler manuais de instalação de aparelhos domésticos
39%
27%
20%
18%
Combater um pequeno incêndio seguindo instruções escritas no equipamento contra fogo
45%
40%
27%
27%
Consultar dados sobre saúde e remédios na internet
58%
41%
24%
16%
Leia abaixo uma questão para cada um dos níveis e confira em qual deles você se enquadraria (as respostas estão mais abaixo):
Nível 1
Melco Aspirina 500
Indicações: Dor de cabeça, dores musculares, dor reumática, , dor de dente, dor de ouvido. Alivia os sintomas da gripe comum.
Dose oral: 1 a 2 comprimidos de 6 em 6 horas, de preferência após as refeições, durante 7 dias no máximo.
Precauções: Não use para gastrite ou úlcera p´ptica. Não use se estiver tomando medicamentos anticoagulantes, ou se tiver sangramentos frequentes.
Ingredientes: Cada comprimedo contém: 500 mg de ácido acetilsalicílico. Excipiente: C.B.P 1 comprimido.

Questão: Por quanto tempo, no máximo, você pode tomar esse remédio?

Nível 2
Leia o texto abaixo:
CHUVA, MENOR ATRITO DOS PNEUS
Ao dirigir na chuva, tenha em mente: os freios param as rodas, mas são os pneus que param o carro. A mesma advertência vale para o caso de dirigir na lama, sobre a areia, com óleo na pista ou em outras circunstâncias que alterem as condições de atrito.
Pneus desgastados, sem estrias, na chuva, aumentam a probabilidade  de perda de aderência e consequente controle do veículo, pois a água não escoará e o pneu deslizará sobre ela.

Questão: O que faz com que o pneu com estrias aumente a segurança quando a pista está molhada?
 

Nível 3
Os gráficos a seguir mostram a evolução de populações de bactérias ao longo do tempo em duas pessoas infectadas com a mesma bactéria. Nos dois casos, os doentes tomaram antibióticos.


Questão: Formule hipóteses sobre o que pode ter ocorrido para justificar a diferença nos gráficos dos dois casos. 
Nível 4
A Organização das Nações Unidas (ONU) produz estudos que permitem fazer projeções sobre a concentração de dióxido de carbono na atmosfera e o aumento da temperatura global. É com base nesses estudos que foi produzido o gráfico a seguir:


Questão: Por que o gráfico apresenta dois traçados, um para o "cenário otimista" e outro para o "cenário pessimista".

Exemplos de respostas corretas
Nível 1
Por, no máximo, 7 dias.

Nível 2
O pneu com estrias facilita o escoamento da água, diminuindo a perda de atrito, a perda de aderência.

Nível 3
O segundo paciente (caso B) pode ter interrompido o tratamento, quando os sintomas diminuíram, fazendo voltar assim a infecção. Ou as bactérias desenvolveram resistência/mutação/evolução. Ou o remédio não matou todas as bactérias. Não tomou o remédio conforme indicava a bula ou o médico.

Nível 4
Deve mencionar termos que tenham o sentido de “depende”, “probabilidade” ou “possibilidade” / São duas possibilidades diferentes, conforme o comportamento humano e da atmosfera / Depende das emissões de carbono. / Não se sabe exatamente o acontecerá, os gráficos lidam com probabilidades/projeções/estimativa.