Em 25 anos, o programa de construção de casas populares do
governo de Cingapura tirou 1,3 milhão de pessoas de terras invadidas, favelas e
colônias de assentamento. Hoje, 82% da população da cidade-estado vivem em
imóveis construídos pelo governo em um conceito de cidades compactas, onde
emprego, serviços públicos, lazer e moradia estão a poucos quilômetros.
Um dos responsáveis por essa transformação, ocorrida após o
fim do período de colonização britânica, a partir dos anos 1960, foi o
arquiteto e urbanista malaio Liu Thai Ker, que esteve à frente da Autoridade de
Desenvolvimento Urbano de Cingapura por 20 anos. Presidente da consultoria
Center for Liveable Cities (Centro de Cidades Habitáveis), Liu está envolvido
em projetos de planejamento urbano em 12 países.
Em sua primeira visita ao Brasil, onde participará hoje do
fórum internacional de arquitetura e urbanismo ArqFuturo, Liu pretende mostrar
como a experiência de Cingapura pode ajudar a resolver problemas de moradia do
Brasil. Segundo ele, uma das chaves para a questão é planejar as cidades na
menor unidade possível, bairros de 100 mil a 200 mil pessoas, para, a partir
daí, criar metrópoles onde se possa viver melhor.
Em entrevista ao GLOBO, o urbanista afirma que a experiência
de Cingapura ao construir casas populares em larga escala poderia ser perfeitamente
aplicada no Brasil e que, com planejamento, o tamanho do país e a falta de
dinheiro “não são desculpas”.
O que o senhor
pretende mostrar a respeito do programa de casas populares de Cingapura?
Quando os britânicos saíram de Cingapura, tínhamos 1,9 milhões
de habitantes. Desses, 1,3 milhões de pessoas viviam como invasores ou em
favelas. Foram 25 anos, de 1960 a 1985, para colocar todas essas pessoas em
casas populares. Em 1985 não tínhamos mais invasores.
Como foi possível
eliminar os sem-teto?
No começo, tínhamos que construir casas para os pobres. Mas
não para os mais pobres, e sim para aqueles que poderiam pagar aluguel. Do
contrário, teríamos falido. Com isso, a indústria da construção se tornou mais
forte. Depois, começamos a fazer casas para aquelas famílias que poderiam pagar
pela compra do imóvel. E fomos aumentando a faixa dos beneficiários do programa
aos poucos. Com esse dinheiro, pudemos construir casas para aqueles que não
tinham como pagar nem pelo aluguel. Hoje, qualquer família que ganha menos de
US$ 10 mil por mês pode concorrer a uma casa popular. Imóveis são tão caros em
Cingapura que, mesmo que você ganhe esse valor, não consegue comprar. Além
disso, 82% da população lá vivem em casas populares. E desses, 91% são
proprietários. Mesmo aqueles que, no início, pagavam aluguel tiveram a opção de
comprar. Você não vai achar isso em nenhum outro país.
Como os bairros foram
projetados?
Em cada um desses novos bairros temos pessoas que eram
invasoras, pessoas que eram muito pobres, profissionais liberais, jovens
empresários. Então, nossa cidade não tem guetos de pobres nem áreas nobres.
Quando construímos um novo empreendimento, deixamos áreas para casas próprias,
para aqueles que ganham bem. Então, os ricos não querem ficar em condomínios
afastados: você tem um espectro da sociedade. Não construímos só uma
cidade-dormitório, mas sim uma comunidade.
Os serviços públicos
foram planejados junto?
Numa região onde moram 100 mil, 200 mil pessoas, 44% da
terra são para casas. O resto é usado para vias, hospitais, escolas, parques,
indústrias. Fizemos uma grande análise de dados. Sabemos que, para esse tanto
de população, precisamos de uma escola primária ou secundária. Esse tipo de
coisas a população não tem como saber. Fizemos o plano, desenhamos todos os
prédios, fizemos os contratos com as construtoras e fizemos a gerência dos
empreendimentos, o que é muito importante. A maior parte das pessoas pode viver
lá, trabalhar lá. Isso dá qualidade de vida para as pessoas. Você não perde
tempo viajando. E isso reduz o número de congestionamentos.
O senhor acha que o
trabalho foi mais fácil por envolver apenas uma esfera de governo? No Brasil,
temos a União, os estados e os municípios.
Certamente, por só ter um governo, que é nacional e
municipal, o processo de tomada de decisões em Cingapura é muito mais rápido.
Hoje, a cidade tem 5,4 milhões de pessoas. Por outro lado, não importa o
tamanho do país. Quando você quer construir casas, você tem que quebrar o país
em províncias; as províncias, em cidades; as cidades, em bairros. O problema de
planejamento urbano não tem a ver com o tamanho do país, mas com o tamanho da
região que você vai transformar. Tenho falado no conceito de
cidades-constelação. Você tem que dividir essa cidade em cidades menores,
separadas por cinturões verdes. Depois, separa em distritos, novos bairros.
Pessoalmente, acho que a experiência de Cingapura é aplicável em qualquer país,
de qualquer tamanho, desde que você esteja pensando em cidades, não no país
inteiro.
Os governos costumam
dizer que não têm dinheiro para dar escala a programas de habitação popular.
Como Cingapura lidou com isso?
A despeito de termos subsidiado a construção de casas para
81% da população, acho que o governo está ganhando dinheiro no fim. Primeiro,
tem-se que desapropriar a terra para fazer a casa. O valor é dividido de acordo
com o uso que essa terra tem hoje. Se o proprietário não a está usando, o valor
é mais baixo. Além disso, o que não é moradia não é subsidiado. Se você quer
construir uma loja ou uma fábrica naquele bairro que está sendo reurbanizado,
tem que pagar ao governo. Estacionamento é outra coisa. Se você quer usar um
carro, tem que pagar pelo uso das ruas e pelo lugar onde vai deixá-lo. Além
disso, depois de ter as casas, as pessoas conseguem emprego e pagam impostos. A
taxa de desemprego hoje é de 1,6%. Então você cria um círculo virtuoso.
Estamos enfrentando
em São Paulo um problema grave de falta d’água. O que Cingapura pode dar de
exemplo?
Compramos água da Malásia, mas o país disse que quer cortar
o abastecimento. O governo deve sempre pensar muito à frente. Hoje estamos a
ponto de ser totalmente autossuficientes em água. Continuamos com a água da
Malásia, mas hoje temos um sistema que reserva 60% de toda a água da chuva e
esperamos aumentar isso para 90%. Além disso, temos um dos maiores parques de
dessalinização de água do mundo.