Enquanto, na França, dezenas de milhares saíam às ruas para
dizer “Eu sou Charlie”, professores universitários brasileiros saíam de suas
tocas para celebrar o terror. Não começou agora: é uma reedição das sentenças
asquerosas pronunciadas na esteira do 11 de setembro de 2001. São sinais
notáveis da contaminação tóxica de nossa vida intelectual e, especificamente,
da célere conversão de departamentos universitários em latas de lixo do
pensamento.
A mensagem dos franceses foi um tributo à vida e à
civilização. “Eu sou Charlie” não significa que concordo com qualquer uma das
sátiras do Charlie Hebdo.
Significa que concordo com a premissa nuclear das sociedades
abertas: a liberdade de expressão é, sempre, a liberdade daquele com quem não
concordo.
Isso, porém, nunca entrará na cabeça de nossos mensageiros
da morte.
Seu discurso padrão começa com uma condenação ritual do ato
terrorista: “É claro que não estou defendendo os ataques”, esclareceu de
antemão uma dessas tristes figuras, antes de entregar-se à defesa, na forma
previsível da condenação das vítimas “justiçadas”.
“Não se deve fazer humor com o outro”, sentenciou
pateticamente Arlene Clemesha, que ostenta o título de professora de História
Árabe na USP, para concluir com uma adesão irrestrita à lógica do terror
jihadista. É preciso, disse, “tentar entender” o significado do ataque: “um
atentado contra um jornal que publicou charges retratando o profeta Maomé,
coisa que é considerada muito ofensiva para qualquer muçulmano”.
Clemesha é só uma, numa pequena multidão acadêmica
consagrada à delinquência intelectual. No mesmo dia trágico, Williams
Gonçalves, professor de Relações Internacionais na Uerj, esqueceu-se do cínico
aceno prévio para expor logo sua aguda visão sobre o “controle social da mídia”
e, de passagem, candidatar-se a porta-voz oficial do Estado Islâmico: “Quem faz
uma provocação dessas”, explicou, referindo-se aos cartunistas assassinados,
“não poderia esperar coisa muito diferente”.
O curioso, nas Clemeshas e nos Gonçalves, é que eles rezam
pela mesma cartilha que Marine Le Pen, apenas com sinal invertido. O nome dessa
cartilha é “choque de civilizações”.
Na onda de islamofobia que varre a França, surfam dois
lançamentos recentes. O livro “Le suicide français”, do jornalista
ultraconservador Éric Zemmour, alerta contra a destruição da cultura francesa
por vagas sucessivas de imigração muçulmana.
O romance “Soumission”, de Michel Houellebecq, imagina a
França governada por um partido islâmico no ano agourento de 2022. Segundo a
gramática do “choque de civilizações”, o Islã não cabe na França: um muçulmano
só pode ser um francês se, antes, renunciar à sua fé.
Os nossos Gonçalves e Clemeshas estão de acordo com isso
–mas preferem que, para acolher os muçulmanos, a França renuncie a suas leis e
a seus valores, entre os quais a laicidade do Estado. E, no entanto, apesar de
Zemmour, Houellebecq, Clemesha, Gonçalves e Le Pen, milhares de muçulmanos
franceses exibiram nas ruas os cartazes com a inscrição “Eu sou Charlie”…
Karl Marx escreveu cartas elogiosas a Abraham Lincoln. Leon
Trostsky contou com a colaboração inestimável do filósofo liberal John Dewey
para demolir as falsificações dos Processos de Moscou. Entre um evento e outro,
o socialista August Bebel qualificou o antissemitismo como “o socialismo dos
idiotas”.
Em outros lugares e outros tempos, o pensamento de esquerda
confundiu-se com o cosmopolitismo e produziu as mais comoventes defesas das
liberdades civis. No Brasil de hoje, com honoráveis exceções, reduziu-se a um
pátio fétido habitado por “black blocs” iletrados, mas fanaticamente
antiamericanos e antissemitas.
“Não se deve fazer humor com o outro”, está escrito na
lápide definitiva que cobre o túmulo do humor. Raqqa, a sede do califado, é
aqui. “Eu sou Charlie”.