quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Boris González Arenas (de Cuba): “Fui preso e demitido por querer falar”

Fiquei quatro dias na cadeia e perdi meu emprego de professor. Tudo porque decidi participar de um protesto contra o regime. Na cela, vi que o castrismo é mais duro quando os opositores são pobres

30 de dezembro de 2014, havana, cuba.

Poucos dias depois da aproximação diplomática entre Cuba e Estados Unidos, anunciada ao mundo em 17 de dezembro, a artista cubana Tania Bruguera decidiu realizar uma nova apresentação de sua performance O sussurro de Tatlin, na Praça da Revolução, no centro de Havana. A obra tivera uma primeira versão em 2009. Na ocasião, Tania tivera autorização para usar uma sala da 10a Bienal de Arte de Havana. Lá, dispôs um palanque e um microfone aberto ao público. Quem quisesse discursar poderia subir ao palanque, onde dois atores vestidos de soldados colocavam uma pomba branca na cabeça ou no ombro do orador da vez e decidiam quanto tempo ele poderia falar.

Com a reapresentação de O sussurro de Tatlin, na Praça da Revolução, Tania buscava inverter a lógica de um estilo de comunicação estabelecido em Cuba desde a chegada de Fidel Castro ao poder em 1959. Fidel escolheu a tribuna da Praça da Revolução como seu palco para comunicar ao povo cubano suas disposições. Tania  pretendia chamar a população cubana a mudar a ordem e a exercer na Praça da Revolução um papel oposto do tradicional. Um microfone estaria disponível por um minuto para qualquer interessado em se expressar. Nós, os cubanos, poderíamos passar a ser os sujeitos de nossas próprias afirmações, independentemente de ideologias ou posições. Em resumo, todos poderíamos, por um minuto, ocupar o lugar de tribunos que, de tanto falar, perderam seus ouvidos.
Se o verbo escutar fizesse algum sentido para o regime político castrista, a performance de Tania Bruguera teria sido realizada sem grandes problemas. Mas não foi assim. Na madrugada da terça-feira 30 de dezembro, data marcada para a intervenção artística, Tania foi detida pelas autoridades cubanas. Obviamente, ela não pôde comparecer à Praça da Revolução às 3 da tarde, onde algumas dezenas de pessoas a esperavam. Muitos que até lá se dirigiram foram detidos ao deixar o espaço – público, vale lembrar. Eu fui uma dessas pessoas. Com o pintor Luis Trápaga, me preparava para entrar em um carro e ir para casa quando fui impedido de sair por agentes da segurança do Estado. Meus companheiros de jornalismo, Waldo Fernández, Ernesto Santana e Pablo Pascual, foram detidos pouco depois.

Fomos todos conduzidos a uma área sob sombra, onde havia um grande número de agentes à paisana. O contraste entre a sombra escolhida por eles e o sol forte sob o qual havíamos esperado a artista não me passou despercebido. Para o repressor, no entanto, não importam os detalhes que oferecem a luz. Essa incapacidade para perceber os pormenores foi a mesma exibida pelo oficial que me interrogou em uma  unidade militar para onde fomos levados em seguida. Previsivelmente, ele não entendeu nenhuma das palavras que eu disse – ou preferiu compreendê-las de seu jeito próprio. Ao ler o documento onde, supostamente, estariam transcritas minhas declarações oficiais, pude constatar que as palavras que disse acerca dos direitos do cidadão foram traduzidas pelo oficial como “contrarrevolução”. Minha presença em uma praça pública virara um ato escandaloso. E minha reclamação por não poder usar o direito – previsto em lei – de telefonar para familiares se transformara numa utopia.

No centro de detenções, convivi por quatro dias com outros 13 presos. Na medida do possível, tentamos transformar esse contato em proveitoso e agradável. A maior dificuldade foi lidar com a greve de fome de quatro integrantes do grupo. Por respeito a eles, nos abstivemos de falar de comida. No terceiro dia, diante da clara deterioração física dos colegas que não comiam, nos contínhamos em falar até sobre uma grande paixão cubana, o café, apesar de uma nuvem aromática da bebida, vinda de umas casinhas próximas, invadir nossa cela, de tempos em tempos.

No cárcere, estive com pessoas das mais variadas origens. Comprovei, pelas histórias contadas pelos mais humildes, que o castrismo é mais duro quando os opositores que o denunciam são pobres. Ao ouvir as histórias, fiquei indignado que práticas executadas por mais de meio século sejam repetidas todos os dias sem que imprensa nenhuma de nosso país tenha jamais descrito algumas delas. Três organizações de oposição ao regime cubano estavam representadas naquela cela. Andrés Pérez Suárez, presidente da Comissão de Atenção a Presos Políticos e Seus Familiares (CAPPF), foi preso com outros membros da associação. Pavel Herrera Hernández, da Cuba Independente e Democrática (CID), mesmo após quatro dias de greve de fome, mantinha o bom humor de alguém recém-saído de um bom almoço. Omar Sayut, membro da União Patriótica Cubana (Unpacu), honrou em cada minuto o prestígio da organização que representa.

As ações da polícia repressiva não acabaram após sermos colocados em liberdade,  no dia 2 de janeiro. Três dias depois, voltei a meu trabalho, como coordenador da cátedra de humanidades da Escola Internacional de Cinema e Televisão de San Antonio de los Baños, município a 26 quilômetros de Havana. Após uma jornada tranquila, fui surpreendido com uma convocação para uma reunião com o diretor-geral da escola. Ao chegar a sua sala, fui informado de que, depois de horas de reunião, ele e alguns companheiros de muitos anos haviam concluído que eu não era mais confiável para exercer o papel de professor naquela instituição. Fui demitido, sob a alegação de que minhas ações e alguns textos de colaboração para veículos de comunicação fora de Cuba tinham se tornado inaceitáveis para a ideologia da escola. É um argumento que não para de pé quando se percebe que a decisão de me demitir, que poderia ter sido tomada muito antes, aconteceu apenas agora.

O grupo de pessoas reunidas naquela sala, em que fui informado de minha demissão, não cometeu delito algum. Mas, ao consentirem com a punição de uma pessoa que foi sequestrada e afastada por quatro dias de todos os seus direitos, participaram de uma ação pouco nobre, que criminaliza a vítima.  Esse estilo ofensivo de encadear eventos desestruturantes na vida dos dissidentes é tão natural para a segurança cubana, tão cotidiano, que não deveria nem ser mais considerado surpreendente. Depois da retomada das relações diplomáticas com os Estados Unidos, a oposição ao regime castrista ficou em alerta. Era previsível uma ação repressiva nos dias seguintes. Era evidente que Raúl Castro necessitava deixar claro que o recente ímpeto amistoso do governo era voltado apenas para o antigo arqui-inimigo e não se estendia ao povo cubano. Mesmo assim, comove-me a constatação de que os ataques começam com a polícia e vão se aproximando até envolver as pessoas mais próximas a você.


A aproximação do governo cubano com os Estados Unidos acabou com o argumento da vilania americana, tão usado em Cuba e que sempre responsabiliza os “yankees” por nossas mazelas. Agora, os países da América Latina deveriam jogar um papel mais ativo – e criativo, por que não – no combate à violência do regime castrista. Não se trata de romper vínculos com Cuba. Mas de deixar claro que são inaceitáveis todas as diversas formas de repressão costumeiramente usadas pelo castrismo para limitar a liberdade de seus cidadãos.