Se você estiver entediado e quiser apimentar um pouco a sua
rotina, não hesite: ligue o computador, mergulhe no mundo mágico das redes
sociais, reúna uma dúzia de amigos mais ou menos ociosos, combine com eles uma
causa (pode ser “tédio nunca mais”), pinte o slogan em algumas cartolinas, saia
às ruas com o seu grupinho revolucionário e feche uma das principais avenidas
da cidade. Qualquer uma. Mas feche mesmo: interrompa totalmente o trânsito,
pelo tempo que você quiser.
Não tenha medo. As autoridades não estragarão o seu desfile.
Recentemente, algumas dúzias de manifestantes bloquearam a Avenida Rio Branco,
principal via do Centro do Rio, durante sete horas. A cidade parou, foi uma
beleza — pelo menos para a polícia, para os guardas de trânsito, para o
prefeito e para o governador, que cruzaram os braços e assistiram impávidos à
singela arquitetura do caos. Ou talvez não tenham assistido, porque têm mais o
que fazer.
Por algum motivo transcendental, as autoridades resolveram
aceitar os bloqueios de trânsito. Passou a vigorar um novo princípio legal: a
rua é do militante (qualquer um). Se ele deixar, a cidade pode ir e vir. No Rio
de Janeiro, em especial, não se pode mais sair para qualquer lugar sem dar uma
busca na internet ou no rádio. É preciso descobrir que bairro está sitiado
naquela hora, ou naquele dia, por conta dos protestos contra tudo isso que aí
está.
É uma piada (péssima). Em qualquer cidade séria do mundo
isso seria impensável. O poder público, escondido em algum lugar entre a
covardia e a vagabundagem, resolveu não cansar a sua beleza com a garantia da
livre circulação. Desistiu de cumprir a lei. E o que é pior: a população se
sujeita a isso calada — como se fosse vítima de uma nevasca, furacão ou
enchente. As pencas de institutos e ONGs que passam a vida matraqueando a
palavra cidadania, entupindo a mídia e os espaços públicos com suas cartilhas
politicamente corretas, também não dão um pio diante desse escárnio.
Cumpre informar a todos os papagaios de clichês moderninhos:
a cidadania no Rio de Janeiro foi revogada. A não ser que se conceba a
meia-cidadania, ou a cidadania em meia pista.
Como explicar esse apagão de civilidade? Como entender que o
poder público lave as mãos diante dessa “solidariedade” egoísta — que pode
custar a vida de um enfartado, ou torturar uma grávida em trabalho de parto? Em
nome de que, afinal, as autoridades liberaram a bandalha em forma de passeata?
Provavelmente tem a ver com populismo (essa praga que
dominou o continente na última década), e com uma noção subdesenvolvida de
bondade e tolerância. O marqueteiro mandou não contrariar. E o mais triste é
que a suposta explosão cívica, tolerada pelas autoridades, é ainda mais
subdesenvolvida do que quem a tolera. Para quais mudanças reais o “povo na rua”
está de fato apontando?
Nenhuma. Depois da grita contra o aumento na tarifa de
ônibus, a palavra de ordem “não são só 20 centavos” enunciou um abrangente
movimento de massa. Teve até político afinando a voz — como o irremovível Renan
Calheiros, acusado de promiscuidade com empreiteira. Calheiros virou militante
do passe livre. E continuou presidindo o Senado, numa boa.
O governo Dilma, com seus 40 ministérios, bateu o recorde de
gastos públicos improdutivos no auge das manifestações (o Banco Central teve
que elevar a projeção de déficit para 2,7% do PIB em 2013). A sagrada
sublevação das ruas jamais apontou um dedo para qualquer dos ralos do governo
popular — origem da inflação que aperta os brasileiros, não só na roleta do
ônibus. A nova onda de superfaturamentos no Dnit — alvo da “faxina”! — nem foi
notada por ninjas, black blocs, foras do eixo e foras de órbita.
Nesse meio tempo, chegou ao Congresso o pedido da CPI da
Copa. A enxurrada de dinheiro público em estádios bilionários como Mané
Garrincha e Itaquerão (projetado após o golpe que “desclassificou” o Morumbi)
iria enfim ser investigada. Sabem o que aconteceu com a CPI da Copa, queridos
revolucionários? Foi enterrada antes de nascer. Sem nem um cartaz criativo no
velório, sem nem uma ruela obstruída para pressionar os deputados coveiros.
O ministro do Desenvolvimento, Fernando Pimentel, que
faturou alto com consultorias invisíveis para a indústria mineira, não só
permanece no cargo, como dali toca sua campanha para governador. E ainda dá
palpite sobre o dólar (“tem espaço para chegar a R$ 2,50”!), bajulando assim
seus amigos empresários e bagunçando ainda mais o ambiente econômico. É típico
do parasitismo petista, que não incomoda os fechadores de rua.
Um dos grandes agentes da pacificação no Rio, José Junior,
líder do AfroReggae, está há dois meses jurado de morte por Fernandinho
Beira-Mar. Sua instituição foi metralhada no Complexo do Alemão. Não se viu uma
única passeata pela vida de Junior, e contra essa vergonha de presos em
segurança máxima comandando o crime.
No entanto, há uma favelinha ninja ocupando, há meses, duas
faixas da Avenida Delfim Moreira, a pretexto de pedir a saída do governador.
Prezadas autoridades: tomem vergonha, cumpram a lei contra
os lunáticos e devolvam as ruas ao cidadão.