segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Ruth Cardoso por Fernando Henrique Cardoso

Reportagem de Armando Antenore publicada pela revista Bravo! em 7 de maio de 2012.

O ex-presidente FHC fala sobre o legado acadêmico, a atuação política e a vida doméstica da antropóloga Ruth Cardoso, que tem ensaios reunidos em livro

A antropóloga Ruth Cardoso, de 77 anos, morrera um dia antes. Portadora de doença coronariana, sofreu uma arritmia cardíaca grave e desmaiou na cozinha do apartamento que dividia com o marido. Quando o socorro chegou, já não havia o que fazer. Eram 20h40 de uma terça-feira bastante fria.

Na quarta, 25 de junho de 2008, ao longo do velório, Fernando Henrique não se cansava de acariciar a fronte de Ruth e tirou os óculos diversas vezes para enxugar as lágrimas. Mal avistou Lula, permitiu que o sucessor lhe desse um abraço prolongado. O petista ficou na cerimônia por uns 30 minutos.

Ao partir, consolou novamente o tucano e lhe disse: “Se precisar de mim, peça. Estou à disposição”. Durante aquele breve período, os dois principais líderes políticos do Brasil contemporâneo baixaram armas e abdicaram das farpas que costumam trocar.

O velório atraiu, igualmente, acadêmicos de múltiplas tendências e variados espécimes do Distrito Federal, alguns até mais antagônicos do que Lula e FHC. Navegantes das redes sociais, blogueiros e a mídia convencional enxergaram na comunhão temporária de adversários um símbolo daquilo que Ruth despertou enquanto viveu: a unanimidade.

Conforme tais interpretações, a ex-primeira-dama e uma das fundadoras do PSDB se notabilizou por conquistar, dentro e fora da universidade, o respeito e a admiração de gregos e troianos, seja sob a faceta de professora e orientadora, seja à frente do Comunidade Solidária.

O programa do governo Fernando Henrique, engendrado pela antropóloga, estimulou as ações conjuntas entre ONGs, empresários, movimentos populares e o Estado com o objetivo de erradicar a pobreza.

Como poetas, romancistas, músicos e pintores, os intelectuais – e os políticos – sobrevivem à morte não apenas em razão do que produziram mas também graças à imagem póstuma que se constroi deles. A da pesquisadora ganhou os contornos iniciais justamente na Sala São Paulo.

Em setembro de 2009, o desenho adquiriu maior nitidez com a criação do Centro Ruth Cardoso, que se impôs a meta de preservar e disseminar o legado da homenageada. Um ano depois, apareceu Fragmentos de uma Vida, perfil da docente que a editora Globo encomendou para o escritor Ignácio de Loyola Brandão.

Depois, chegou às livrarias Ruth Cardoso – Obra Reunida. A coletânea de 567 páginas, lançada pela Mameluco, agrupa todos os artigos acadêmicos da ex-primeira-dama. São 41 textos – o mais velho, de 1959; o mais recente, de 2004. A antropóloga Teresa Pires do Rio Caldeira, amiga e discípula de Ruth que leciona na Universidade da Califórnia, em Berkeley, se encarregou de organizar e apresentar o volume.

Um time de quatro renomadas pensadoras a ajudou: Céline Sachs-Jeantet, Esther Império Hambúrguer, Eunice Ribeiro Durham e Helena Sampaio.

Quem vasculha o site do Centro, atravessa o perfil assinado por Loyola ou destrincha o prefácio da coletânea sai com uma impressão francamente positiva da professora. Sobram aprovações, faltam pontos de vista menos parciais.

Espirituosa, discreta, sempre atenta às novidades, educadora nata, cosmopolita, vocacionada para a atuação em equipe, interlocutora brilhante, exímia dona de casa, mãe e avó carinhosas são as qualificações que vêm à cabeça de internautas e leitores. Uma boutade, cunhada pela própria Ruth, resumiria à perfeição o seu caráter, segundo Loyola. “Isto não está de acordo com nossos padrões araraquarenses”, proclamava, irônica, quando se flagrava diante de circunstâncias em que o recato e a ética despencavam ladeira abaixo.

O gracejo, claro, se refere à cidade do interior paulista onde a acadêmica nasceu e se criou. Ela só trocaria Araraquara pela capital do estado em 1946, aos 15 anos, para ingressar num tradicional colégio católico, o extinto Des Oiseaux.

Cozinhas comunitárias
Filha única de um guarda-livros com uma farmacêutica que dava aulas de botânica, química e biologia, Ruth Corrêa Leite Cardoso estudou ciências sociais entre 1949 e 1952. À época, as turmas que frequentavam o curso da Universidade de São Paulo somavam uma dúzia de alunos, se tanto.

Foi também na USP que, em 1957, a jovem socióloga virou assistente do lendário Egon Schaden, catedrático de antropologia. Começou, assim, uma duradoura carreira no ensino superior. Perto de intelectuais da mesma geração, escreveu pouco e publicou menos ainda. Divulgou o grosso de seus ensaios nos círculos restritos da “alta cultura”: mesas de reuniões científicas, jornais e revistas de pequena tiragem, seminários e debates. Sobressaiu-se bem mais como orientadora de pós-graduandos e como agente política em contínuo diálogo com a sociedade civil.

Pioneira da antropologia urbana
Muitos lhe conferem o mérito de introduzir no país a antropologia urbana – pioneirismo que assumiu junto de Eunice Durhan, Gilberto Velho e outros. Investigando as cidades, se interessou por detectar e analisar processos socioculturais emergentes, capazes de transformar o cotidiano, em especial o das áreas pobres.

Não à toa, se debruçou sobre a rotina das favelas, a integração dos migrantes japoneses no Brasil, as novas configurações da juventude, o feminismo, os meios de comunicação, o terceiro setor, as cozinhas comunitárias e a adoção de crianças pelas classes baixas.

Em fevereiro de 1953, se casou com FHC, que mais tarde despontaria como sociólogo. Os dois geraram Paulo Henrique, Luciana e Beatriz.

Não raro, a trajetória do marido exigiu renúncias da antropóloga. De 1964 a 1968, por exemplo, Ruth morou no Chile e na França, já que a ditadura militar empurrou Fernando Henrique para o exílio. O afastamento compulsório da USP fez a pesquisadora adiar o doutorado, só concluído em 1972.

Na década de 1990, voltou a abandonar as pesquisas, agora premida pela eleição do cônjuge à Presidência da República, de que tomaria posse em 1º de janeiro de 1995. Tornou-se primeira-dama a contragosto, mas acabou revitalizando a função, que exerceu durante oito anos (1995-2003). Até então, nenhuma intelectual alcançara aquele status no país. De modo idêntico, nunca a mulher de um presidente concebera e dirigira um programa social tão intrincado e abrangente quanto o Comunidade Solidária.

O panegírico desumaniza a pessoa morta
Semanas atrás, o jornalista e curador Marcelo Rezende, colaborador de BRAVO!, redigiu um artigo em que comenta o abrupto e prematuro falecimento de outro jornalista: Daniel Piza. A reflexão se encontra no blog do Instituto Moreira Salles. Ali, Rezende analisa o substantivo “panegírico”: “Trata-se de um discurso, de uma louvação (…). É geralmente aquilo que os vivos decidem realizar quando estão diante da evidência concreta da morte”.

Tributos do gênero, pondera o autor, transcendem o mero elogio, uma vez que se escoram apenas no superlativo. O panegírico desumaniza o morto. Santifica-o, lhe esculpe feições de herói. Já o elogio “permite a contradição, o contraponto infeliz na existência de alguém e do personagem desse mesmo alguém”. Certamente, Ruth Cardoso merece vários dos adjetivos risonhos que lhe imputam. Mas será que fazia jus aos exageros? Como ela própria avaliaria a mitificação latente nos panegíricos que inspirou?

Para discutir a questão e relembrar a professora, BRAVO! entrevistou Fernando Henrique durante três horas, em São Paulo. Uma parte da conversa ocorreu no instituto que leva o nome do sociólogo, no centro da cidade. A outra, no apartamento no bairro de Higienópolis onde o ex-presidente, 80 anos, viveu com a antropóloga.

O legado intelectual
Está em curso um movimento para consolidar a imagem de dona Ruth Cardoso como a de uma figura exemplar…
[Interrompendo o repórter] Sim, mas nenhuma iniciativa partiu da família. As homenagens nasceram de maneira espontânea. São os amigos, os alunos e os colaboradores de Ruth que se atribuem a tarefa de reverenciá-la. Eu e meus filhos não pedimos nada a ninguém.

De que modo a ex-primeira-dama reagiria diante de tantos aplausos? O senhor já pensou no assunto?
Já. Imagino que reagiria bem, ainda que timidamente. Ruth não almejava os holofotes. Nunca sonhou, por exemplo, que implantariam uma cátedra com o nome dela na Universidade Columbia, em Nova York, como aconteceu há uns três anos. Aquela antropóloga toda aplicada, na verdade, não se preocupava nem sequer em arquivar o que escrevia. Não ficava lambendo a cria. Era mais desleixada do que eu nesse sentido – e menos autoconfiante. Padecia de insegurança.

Insegurança? Não dava a menor impressão.
De fato: os inseguros costumam parecer afirmativos. No fundo, Ruth ignorava o próprio valor. Não possuía uma autoestima muito elevada. A minha sempre se revelou maior.

Tanto que, em casa, meus filhos brincam: “Pai, você precisa fazer uma lipoaspiração no ego!” [risos] É engraçado… As pessoas me chamam de vaidoso, de ambicioso, de sei lá o quê. Falam que, desde criancinha, eu queria ocupar a Presidência. Bobagem! Pura fantasia! Quando jovem – e mesmo na maturidade -, jamais cogitei me eleger presidente.

As coisas foram se desenrolando. Tampouco me considero vaidoso. Ou, pelo menos, não do jeito que o senso comum define a palavra. Tenho vaidade intelectual. Sob outros ângulos, porém, sou mais descuidado do que cuidadoso. Não cultivo vaidade física, pessoal. Nunca liguei além da conta para esse negócio de roupa, de elegância.

Dona Ruth se sentia insegura em que aspectos?
Apenas intelectualmente. No papel de mulher, de mãe ou de professora, não. Desempenhava-os com tranquilidade e confiança. Só nutria dúvidas sobre sua competência como pensadora.

Por isso escreveu pouco?
É provável. Ela adorava lecionar. Preparava as aulas demoradamente, expressava-se bem em classe, zelava pelos alunos. Entretanto, sofria para escrever. Talvez até desconhecesse o prazer da escrita. Era muito crítica. E quem é muito crítico acaba se descobrindo autocrítico demais.

Não por acaso, Ruth normalmente rejeitava o que produzia – rabiscava o texto, mexia e remexia nas frases, torturava-se. Também não ambicionava publicar. Tinha ideias relevantes, mas nem sempre julgava necessário estruturá-las num ensaio, construir teorias. Preferia ensinar, fazer observações de campo e agir socialmente.

O senhor, em contrapartida, escreveu bastante e publicou trabalhos de grande repercussão. Conviver com um intelectual tão fértil inibiu dona Ruth?
Não acredito. Tratava-se mais de uma exigência dela em relação a si própria. Mesmo porque nós não competíamos. Pelo contrário: nos ajudávamos, um apoiava o outro. Encontro tanto casal disputando espaço… Nós, não.

Eu, inclusive, mostrava a Ruth tudo o que escrevia: livros, ensaios e artigos de jornal. Ela os lia antes da publicação. E opinava, corrigia, discordava.

 Não há o risco de se estar supervalorizando o legado acadêmico de dona Ruth por razões políticas?
De maneira nenhuma. Os que resgatam a contribuição de Ruth não têm relações diretas com o jogo partidário. Pegue a série de artigos recém-lançada. As organizadoras da coletânea são pesquisadoras de alto nível, que se conservam longe da política.

Ninguém de bom senso negará a importância de Ruth para a modernização da antropologia no Brasil. Ela e a Eunice (Durham) constituíram o time de antropólogos que primeiro se interessaram pelo urbano. Tradicionalmente, a disciplina se dedica à análise dos povos ágrafos, que não dispõem da escrita.

Ruth, no entanto, sempre achou mais pertinente esmiuçar o universo das cidades, talvez por ser de uma geração que viu o país se urbanizar.

 A ex-primeira-dama influenciou o senhor como intelectual?
Sim. Vou lhe citar alguns exemplos. Eu estudei as teses de Claude Lévi-Strauss [antropólogo] superficialmente. Mas a Ruth as conhecia muito. Em 1962 e 63, frequentou seminários dele na França. Ela, então, me ensinava o que sabia.

Conversávamos sobre Lévi-Strauss e outros autores que me são menos familiares: o Manuel Castells [sociólogo], o Michel Foucault [filósofo] e o próprio Alain Touraine [sociólogo], com quem tive aulas. Ruth ainda me alertou para a força dos movimentos sociais.

Recordo que, lá pela década de 1970, grupos da periferia de São Paulo reivindicavam do governo avanços na área da saúde pública. Eu olhava aquilo e previa: “Não vai resultar em nada”. Sob o meu prisma, os grupos pressionavam o Estado à toa porque as exigências populares se perderiam no gabinete do burocrata.

Ruth não raciocinava desse jeito. Ela já notava que existia a chance de aquelas ações causarem – como realmente causaram – mudanças mais profundas, mais políticas na estrutura do Estado. Ou melhor: que daqueles grupos surgiriam vereadores, deputados e outras lideranças capazes de agir efetivamente dentro da máquina estatal.

Influenciado pelo marxismo, eu acreditava que as transformações só iriam decorrer da luta de classes – do choque entre o proletariado e a burguesia. Ruth me corrigia: “Não, a luta não precisa ser apenas de classes. A luta também pode ser do povo contra o Estado”.

Quer dizer que ela se opunha à predominância das interpretações marxistas na USP da época?
Exato. Eu, Ruth, Paul Singer [economista], José Arthur Gianotti, Bento Prado Júnior [ambos filósofos], Octavio Ianni [sociólogo] e outros participamos do famoso seminário sobre O Capital, de Karl Marx, que se iniciou em 1958. Ao longo de seis anos, nossa turma se reunia periodicamente para debater os diversos volumes do livro. Ruth, portanto, tinha intimidade com as teorias de Marx.

Acontece que nunca adotou uma visão estritamente marxista. Ela ia na contramão de todos nós e não enxergava a luta de classes como o único motor da história. Daí se interessar tanto pelo conceito de sociedade civil – uma ideia extramarxista, digamos.

A atuação como primeira-dama
Dona Ruth não desejava que o senhor virasse político. Por quê?
Na década de 1950, quando a gente se formou, havia o consenso de que a carreira acadêmica é uma espécie de sacerdócio. Deveríamos viver para o ensino e a pesquisa. Eu próprio considerava pecado receber dinheiro por qualquer atividade que não a de professor.

Embora descenda de uma família com larga trajetória política (meu bisavô governou Goiás, meu tio-avô ocupou o cargo de ministro da Guerra, meu pai se elegeu deputado), procurei evitar tal caminho na juventude. Não participei nem mesmo do movimento estudantil enquanto cursava ciências sociais. Os militares só me mandaram para o exílio após o golpe de 1964 porque eu defendia reformas na universidade – mudanças que os conservadores taxavam de subversivas.

Não me expulsaram do país em razão de militância partidária ou algo do gênero. Logo depois que voltei, resisti à ditadura intelectualmente, fazendo pesquisas, escrevendo artigos em jornais de oposição e promovendo conferências. Ruth também se comportava desse modo. Queríamos protestar, mas continuávamos sem a intenção de ingressar na política propriamente dita.

Ocorre que, com o passar dos anos, as circunstâncias me levaram para o Senado e, depois, para o Executivo. Ruth, sobretudo no início, discordava de minha resolução. Temia perder a privacidade. Arrepiava-se diante da ideia de nossa vida se tornar mais pública, mais institucional, repleta de pompa. Mesmo assim, nunca deixou de se engajar em minhas campanhas eleitorais. E, quando cheguei à Presidência, desempenhou brilhantemente as funções que atribuiu para si.

Entretanto, não gostava que a chamassem de primeira-dama.
Ruth, na verdade, refutava o conceito muito norte-americano de que a primeira-dama ocupa um cargo. “Não, quem ocupa um cargo é o presidente da República”, argumentava. “Ele, sim, tem obrigações previstas pela lei. A primeira-dama precisa apenas se manter autônoma e desempenhar os papéis que julgar adequados. Cada uma deve agir como achar melhor, sem tarefas definidas.”

Tanto que Ruth sempre defendeu a Marisa [Letícia, mulher de Lula]. As duas se portaram de forma bem diferente em Brasília. Marisa, todos sabemos, abdicou de qualquer protagonismo. E Ruth a apoiava: “Ela está se respeitando. Não trai a própria personalidade, não é exibida, não interfere no governo. Por que vou criticá-la?”
Como dona Ruth lidava com o gigantesco cerimonial da Presidência?

Não apreciava nada daquilo, lógico, mas se conformava. Curiosamente, no final de meu segundo mandato, já demonstrava grande apreço pelas seguranças que a acompanhavam. Professora em tempo integral, quando resolvia ver um espetáculo, fazia questão de que as moças assistissem à peça também. Não deixava que a esperassem na porta do teatro.

Depois, lhes indagava sobre a montagem e dava explicações sobre o dramaturgo, o diretor e o elenco. Às vezes, havia atores nus em cena – e as seguranças se horrorizavam. No enterro de Ruth, algumas viajaram para São Paulo e quiseram carregar o caixão. Criou-se uma relação de afeto.

O senhor dividia com dona Ruth os problemas do governo?
Não sei se o verbo correto é dividir, porque Ruth evitava se meter diretamente na minha administração. Ela observava à distância. Não bancava o pistolão em área nenhuma. Dirigia o Comunidade Solidária e ponto.

Agora, nós conversávamos intensamente sobre quase tudo. Certos temas a seduziam menos. Economia, por exemplo – o câmbio, as estratégias do Banco Central. As atenções de Ruth se voltavam mais para a educação, a saúde e a cultura.

Ela discordava muito do senhor?
Ô! E abertamente! Em inúmeras ocasiões.

Mencione uma, pelo menos.
Ruth detestava os partidos clientelistas – aqueles que não abraçam propriamente uma ideologia, um programa, e só almejam mamar nas tetas do Estado. Os adesistas, né? Em virtude disso, ela jamais suportou determinados setores do extinto PFL e não aceitava o acordo que firmei com os pefelistas.

Na teoria, Ruth tinha consciência de que apenas os ditadores governam sem alianças. Só que na prática… Ela reclamava: “Como assim?! Você precisa dizer tal coisa para fulano!” Eu respondia: “Um político não deve ir tão direto ao ponto. Se disser tal coisa, me derrubarão!”

Quem está fora da disputa partidária analisa as situações e as pessoas sob a ótica dos estereótipos. No entanto, quando se aproxima delas, termina reformulando o julgamento. Vai soar estranho, mas em qualquer partido existem canalhas do bem e canalhas do mal, canalhas que traem e canalhas que não traem, canalhas inteligentes e canalhas obtusos, canalhas competentes e canalhas incompetentes. Para distinguir uns dos outros, é preciso estrada. Ruth, no começo, não dispunha de tanta vivência. Depois, foi aprendendo.

Em 1994, a futura primeira-dama criticou publicamente o senador Antônio Carlos Magalhães, um dos caciques do PFL. Associou-o à ditadura e às oligarquias.
Pois é… Ruth não se permitia intimidades com o ACM. Conhecedor das restrições dela, Antônio Carlos tratava de agradá-la. Ele podia ser uma serpente ou um encantador de serpentes. Dependia dos ventos.

Com a Ruth, costumava exibir os melhores modos.

Mas não adiantava. Certa vez, o convidei para tomar um café em casa. Tasso Jereissati [um dos líderes do PSDB] nos acompanhou. Ruth, que se encontrava no apartamento, resolveu preparar o café e se dirigiu à cozinha. Pronto: o Antônio Carlos subiu na tribuna do Senado e proferiu um discurso sobre o episódio. “A mulher do presidente abre mão de empregados e tem o desprendimento de fazer o próprio café.”

Como dona Ruth encarava as privatizações que o governo do senhor incentivou? O processo sempre recebeu pesadas críticas. Agora, inclusive, um livro-reportagem que aborda o assunto se transformou em best-seller: A Privataria Tucana, do jornalista Amaury Ribeiro Jr.
Ela concordava com as privatizações. À época, todo mundo concordava. Somente um pequeno grupo de ultranacionalistas, não apenas do PT, se posicionava contra. Preconizava que iríamos sucatear as indústrias brasileiras. Imagine! Sobre o livro do rapaz…

O senhor o leu?
Não.

Pretende lê-lo?
Não. Vou ler livro de malandro? O autor trabalhava para os petistas [durante as eleições presidenciais de 2010, a Polícia Federal indiciou Ribeiro Jr. sob a acusação de que ele quebrou o sigilo fiscal de tucanos com o intuito de produzir dossiês; o jornalista nega]. O propósito da reportagem é criar uma cortina de fumaça, tirar o foco da herança deixada por Lula: as corrupções que pipocam no governo federal. Você leu o livro? Conte-me algo que aparece lá.

O repórter procura demonstrar que o ex-governador José Serra, do PSDB, e alguns parentes se beneficiaram financeiramente das privatizações.
O Serra? Impossível! Coloco minha mão no fogo. Serra não teve nenhuma relação com as privatizações. Nada! Zero! Zero! E outra coisa: quem rouba uma hora se entrega. Nunca vi ladrão que, cedo ou tarde, não transpareça. Vamos verificar se algo mudará no padrão do Serra. Vamos verificar se a família dele ostentará riqueza…

A vida doméstica
Dona Ruth apoiava com veemência as causas feministas. Como tal engajamento reverberava dentro de casa?
Desde o namoro, e até antes, nós transitávamos num círculo ilustrado, culto, que preconizava a equivalência entre homens e mulheres. Compartilhávamos, portanto, de ideias similares sobre o tema. Mas existia uma diferença importante em nossas posturas – a mesma que distingue o liberal do igualitário. O liberal aceita, tolera. O igualitário bota em prática.

Eu, liberal, concordava teoricamente com as reivindicações do feminismo. Ruth, igualitária, tratava de fazê-las acontecer. Ela sempre quis, por exemplo, que todos da família ajudassem no trabalho doméstico. Para um homem da minha geração, assumir atribuições dessa natureza beira o absurdo. Mesmo assim, às vezes, eu tirava a louça da mesa após as refeições. Foi o máximo de concessão que me permiti.

Ainda hoje, recolho a louça no meu apartamento ou no de amigos. À época da Presidência, também recolhia. Já lavar os pratos me custa mais. Se necessário, lavo – só que me desagrada. Na década de 1980, passamos uma temporada em Berkeley [na Califórnia, Estados Unidos]. Há uma foto do período que me flagra lavando louça. Ruth garantia que a imagem é falsa, que aquele milagre jamais ocorreu. [risos]

Os filósofos Jean Paul Sartre e Simone de Beauvoir visitaram o Brasil em 1960. Na ocasião, o senhor os recebeu para um jantar. O que dona Ruth sentiu quando travou contato com uma lenda do feminismo?
Decepcionou-se. Simone nos pareceu tão bonita quanto distante, fria e dura. Antipática, enfim. Para piorar, tratava o Sartre – um tipo sorridente, carismático – como criança: “Não faça isso, não faça aquilo!” E titubeou diante da sopa de mandioquinha que Ruth preparou.

Na hora da sobremesa, nos vingamos. Servimos goiabada com queijo, combinação que desagradou ainda mais a Simone. Ela torceu o nariz e acabou engolindo o doce por mera educação.

Apesar de feminista e intelectual, Ruth prezava as tarefas de casa. Cozinhava bem, tricotava, costurava e adorava jardinagem. Só não entendia direito de contas. Não gastava excessivamente, mas se atrapalhava com cheques e números. Não tinha noção de preço.

Na contramão de Lula e dona Marisa, que costumam demonstrar carinho em público, o senhor e dona Ruth se comportavam de maneira sóbria. Faltava romantismo entre vocês?
Não. Na intimidade, nos mostrávamos calorosos. A discrição se manifestava apenas publicamente – um recato que cultivamos desde a juventude.

Além do mais, em casamentos longos como o nosso, cria-se uma base afetiva que é estável, independentemente das aparências, dos altos e baixos, das oscilações pontuais.

Em 2009, o senhor reconheceu como filho o adolescente Tomás, que teria nascido de uma relação extraconjugal. O rapaz já fez 20 anos. Recentemente, porém, testes de DNA demonstraram que o senhor não é o pai dele. Em que momento dona Ruth soube da história?
No momento em que o filho surgiu.

E qual a reação dela?
Ruim, né? Mas também compreensiva. Ruth conhecia a vida. Estava ciente de que o ser humano passa por períodos de variação.

O senhor cogitou se separar?
Não. Nunca me enxerguei sem a Ruth. Desculpe… Não gostaria de alongar o assunto, em nome da reserva que pautava meu casamento.

Acrescento apenas que, a despeito do DNA, sigo mantendo um relacionamento muito bom com Tomás, tanto em termos afetivos quanto cíveis. Posso afirmar igualmente que Ruth morreu numa ótima fase de nossa união. À semelhança de qualquer casal, atravessamos etapas de maior e menor cumplicidade. Até criar nossos filhos, nos conservamos bem próximos. Depois, houve certo distanciamento.


E, nos últimos 15 anos, uma reaproximação intensa – de tal maneira que a morte dela me afetou como um raio em dia de sol.