Reportagem de Armando Antenore publicada pela revista
Bravo! em 7 de maio de 2012.
O ex-presidente FHC fala sobre o legado acadêmico, a atuação
política e a vida doméstica da antropóloga Ruth Cardoso, que tem ensaios
reunidos em livro
A antropóloga Ruth Cardoso, de 77 anos, morrera um dia
antes. Portadora de doença coronariana, sofreu uma arritmia cardíaca grave e
desmaiou na cozinha do apartamento que dividia com o marido. Quando o socorro
chegou, já não havia o que fazer. Eram 20h40 de uma terça-feira bastante fria.
Na quarta, 25 de junho de 2008, ao longo do velório,
Fernando Henrique não se cansava de acariciar a fronte de Ruth e tirou os
óculos diversas vezes para enxugar as lágrimas. Mal avistou Lula, permitiu que
o sucessor lhe desse um abraço prolongado. O petista ficou na cerimônia por uns
30 minutos.
Ao partir, consolou novamente o tucano e lhe disse: “Se
precisar de mim, peça. Estou à disposição”. Durante aquele breve período, os
dois principais líderes políticos do Brasil contemporâneo baixaram armas e
abdicaram das farpas que costumam trocar.
O velório atraiu, igualmente, acadêmicos de múltiplas
tendências e variados espécimes do Distrito Federal, alguns até mais
antagônicos do que Lula e FHC. Navegantes das redes sociais, blogueiros e a
mídia convencional enxergaram na comunhão temporária de adversários um símbolo
daquilo que Ruth despertou enquanto viveu: a unanimidade.
Conforme tais interpretações, a ex-primeira-dama e uma das
fundadoras do PSDB se notabilizou por conquistar, dentro e fora da
universidade, o respeito e a admiração de gregos e troianos, seja sob a faceta
de professora e orientadora, seja à frente do Comunidade Solidária.
O programa do governo Fernando Henrique, engendrado pela
antropóloga, estimulou as ações conjuntas entre ONGs, empresários, movimentos
populares e o Estado com o objetivo de erradicar a pobreza.
Como poetas, romancistas, músicos e pintores, os
intelectuais – e os políticos – sobrevivem à morte não apenas em razão do que
produziram mas também graças à imagem póstuma que se constroi deles. A da
pesquisadora ganhou os contornos iniciais justamente na Sala São Paulo.
Em setembro de 2009, o desenho adquiriu maior nitidez com a
criação do Centro Ruth Cardoso, que se impôs a meta de preservar e disseminar o
legado da homenageada. Um ano depois, apareceu Fragmentos de uma Vida, perfil
da docente que a editora Globo encomendou para o escritor Ignácio de Loyola
Brandão.
Depois, chegou às livrarias Ruth Cardoso – Obra Reunida. A
coletânea de 567 páginas, lançada pela Mameluco, agrupa todos os artigos
acadêmicos da ex-primeira-dama. São 41 textos – o mais velho, de 1959; o mais
recente, de 2004. A antropóloga Teresa Pires do Rio Caldeira, amiga e discípula
de Ruth que leciona na Universidade da Califórnia, em Berkeley, se encarregou
de organizar e apresentar o volume.
Um time de quatro renomadas pensadoras a ajudou: Céline
Sachs-Jeantet, Esther Império Hambúrguer, Eunice Ribeiro Durham e Helena
Sampaio.
Quem vasculha o site do Centro, atravessa o perfil assinado
por Loyola ou destrincha o prefácio da coletânea sai com uma impressão
francamente positiva da professora. Sobram aprovações, faltam pontos de vista
menos parciais.
Espirituosa, discreta, sempre atenta às novidades, educadora
nata, cosmopolita, vocacionada para a atuação em equipe, interlocutora
brilhante, exímia dona de casa, mãe e avó carinhosas são as qualificações que
vêm à cabeça de internautas e leitores. Uma boutade, cunhada pela própria Ruth,
resumiria à perfeição o seu caráter, segundo Loyola. “Isto não está de acordo
com nossos padrões araraquarenses”, proclamava, irônica, quando se flagrava
diante de circunstâncias em que o recato e a ética despencavam ladeira abaixo.
O gracejo, claro, se refere à cidade do interior paulista
onde a acadêmica nasceu e se criou. Ela só trocaria Araraquara pela capital do
estado em 1946, aos 15 anos, para ingressar num tradicional colégio católico, o
extinto Des Oiseaux.
Cozinhas comunitárias
Filha única de um guarda-livros com uma farmacêutica que
dava aulas de botânica, química e biologia, Ruth Corrêa Leite Cardoso estudou
ciências sociais entre 1949 e 1952. À época, as turmas que frequentavam o curso
da Universidade de São Paulo somavam uma dúzia de alunos, se tanto.
Foi também na USP que, em 1957, a jovem socióloga virou
assistente do lendário Egon Schaden, catedrático de antropologia. Começou,
assim, uma duradoura carreira no ensino superior. Perto de intelectuais da
mesma geração, escreveu pouco e publicou menos ainda. Divulgou o grosso de seus
ensaios nos círculos restritos da “alta cultura”: mesas de reuniões
científicas, jornais e revistas de pequena tiragem, seminários e debates.
Sobressaiu-se bem mais como orientadora de pós-graduandos e como agente
política em contínuo diálogo com a sociedade civil.
Pioneira da
antropologia urbana
Muitos lhe conferem o mérito de introduzir no país a
antropologia urbana – pioneirismo que assumiu junto de Eunice Durhan, Gilberto
Velho e outros. Investigando as cidades, se interessou por detectar e analisar
processos socioculturais emergentes, capazes de transformar o cotidiano, em
especial o das áreas pobres.
Não à toa, se debruçou sobre a rotina das favelas, a
integração dos migrantes japoneses no Brasil, as novas configurações da
juventude, o feminismo, os meios de comunicação, o terceiro setor, as cozinhas
comunitárias e a adoção de crianças pelas classes baixas.
Em fevereiro de 1953, se casou com FHC, que mais tarde
despontaria como sociólogo. Os dois geraram Paulo Henrique, Luciana e Beatriz.
Não raro, a trajetória do marido exigiu renúncias da
antropóloga. De 1964 a 1968, por exemplo, Ruth morou no Chile e na França, já
que a ditadura militar empurrou Fernando Henrique para o exílio. O afastamento
compulsório da USP fez a pesquisadora adiar o doutorado, só concluído em 1972.
Na década de 1990, voltou a abandonar as pesquisas, agora
premida pela eleição do cônjuge à Presidência da República, de que tomaria
posse em 1º de janeiro de 1995. Tornou-se primeira-dama a contragosto, mas
acabou revitalizando a função, que exerceu durante oito anos (1995-2003). Até
então, nenhuma intelectual alcançara aquele status no país. De modo idêntico,
nunca a mulher de um presidente concebera e dirigira um programa social tão
intrincado e abrangente quanto o Comunidade Solidária.
O panegírico
desumaniza a pessoa morta
Semanas atrás, o jornalista e curador Marcelo Rezende,
colaborador de BRAVO!, redigiu um artigo em que comenta o abrupto e prematuro
falecimento de outro jornalista: Daniel Piza. A reflexão se encontra no blog do
Instituto Moreira Salles. Ali, Rezende analisa o substantivo “panegírico”:
“Trata-se de um discurso, de uma louvação (…). É geralmente aquilo que os vivos
decidem realizar quando estão diante da evidência concreta da morte”.
Tributos do gênero, pondera o autor, transcendem o mero
elogio, uma vez que se escoram apenas no superlativo. O panegírico desumaniza o
morto. Santifica-o, lhe esculpe feições de herói. Já o elogio “permite a
contradição, o contraponto infeliz na existência de alguém e do personagem
desse mesmo alguém”. Certamente, Ruth Cardoso merece vários dos adjetivos
risonhos que lhe imputam. Mas será que fazia jus aos exageros? Como ela própria
avaliaria a mitificação latente nos panegíricos que inspirou?
Para discutir a questão e relembrar a professora, BRAVO!
entrevistou Fernando Henrique durante três horas, em São Paulo. Uma parte da
conversa ocorreu no instituto que leva o nome do sociólogo, no centro da
cidade. A outra, no apartamento no bairro de Higienópolis onde o ex-presidente,
80 anos, viveu com a antropóloga.
O legado intelectual
Está em curso um
movimento para consolidar a imagem de dona Ruth Cardoso como a de uma figura
exemplar…
[Interrompendo o repórter] Sim, mas nenhuma iniciativa
partiu da família. As homenagens nasceram de maneira espontânea. São os amigos,
os alunos e os colaboradores de Ruth que se atribuem a tarefa de reverenciá-la.
Eu e meus filhos não pedimos nada a ninguém.
De que modo a
ex-primeira-dama reagiria diante de tantos aplausos? O senhor já pensou no
assunto?
Já. Imagino que reagiria bem, ainda que timidamente. Ruth
não almejava os holofotes. Nunca sonhou, por exemplo, que implantariam uma
cátedra com o nome dela na Universidade Columbia, em Nova York, como aconteceu
há uns três anos. Aquela antropóloga toda aplicada, na verdade, não se
preocupava nem sequer em arquivar o que escrevia. Não ficava lambendo a cria.
Era mais desleixada do que eu nesse sentido – e menos autoconfiante. Padecia de
insegurança.
Insegurança? Não dava
a menor impressão.
De fato: os inseguros costumam parecer afirmativos. No
fundo, Ruth ignorava o próprio valor. Não possuía uma autoestima muito elevada.
A minha sempre se revelou maior.
Tanto que, em casa, meus filhos brincam: “Pai, você precisa
fazer uma lipoaspiração no ego!” [risos] É engraçado… As pessoas me chamam de
vaidoso, de ambicioso, de sei lá o quê. Falam que, desde criancinha, eu queria
ocupar a Presidência. Bobagem! Pura fantasia! Quando jovem – e mesmo na
maturidade -, jamais cogitei me eleger presidente.
As coisas foram se desenrolando. Tampouco me considero
vaidoso. Ou, pelo menos, não do jeito que o senso comum define a palavra. Tenho
vaidade intelectual. Sob outros ângulos, porém, sou mais descuidado do que
cuidadoso. Não cultivo vaidade física, pessoal. Nunca liguei além da conta para
esse negócio de roupa, de elegância.
Dona Ruth se sentia
insegura em que aspectos?
Apenas intelectualmente. No papel de mulher, de mãe ou de
professora, não. Desempenhava-os com tranquilidade e confiança. Só nutria
dúvidas sobre sua competência como pensadora.
Por isso escreveu pouco?
É provável. Ela adorava lecionar. Preparava as aulas
demoradamente, expressava-se bem em classe, zelava pelos alunos. Entretanto,
sofria para escrever. Talvez até desconhecesse o prazer da escrita. Era muito
crítica. E quem é muito crítico acaba se descobrindo autocrítico demais.
Não por acaso, Ruth normalmente rejeitava o que produzia –
rabiscava o texto, mexia e remexia nas frases, torturava-se. Também não
ambicionava publicar. Tinha ideias relevantes, mas nem sempre julgava
necessário estruturá-las num ensaio, construir teorias. Preferia ensinar, fazer
observações de campo e agir socialmente.
O senhor, em
contrapartida, escreveu bastante e publicou trabalhos de grande repercussão.
Conviver com um intelectual tão fértil inibiu dona Ruth?
Não acredito. Tratava-se mais de uma exigência dela em
relação a si própria. Mesmo porque nós não competíamos. Pelo contrário: nos
ajudávamos, um apoiava o outro. Encontro tanto casal disputando espaço… Nós,
não.
Eu, inclusive, mostrava a Ruth tudo o que escrevia: livros,
ensaios e artigos de jornal. Ela os lia antes da publicação. E opinava,
corrigia, discordava.
Não há o risco de se estar supervalorizando o legado acadêmico de dona
Ruth por razões políticas?
De maneira nenhuma. Os que resgatam a contribuição de Ruth
não têm relações diretas com o jogo partidário. Pegue a série de artigos
recém-lançada. As organizadoras da coletânea são pesquisadoras de alto nível,
que se conservam longe da política.
Ninguém de bom senso negará a importância de Ruth para a
modernização da antropologia no Brasil. Ela e a Eunice (Durham) constituíram o
time de antropólogos que primeiro se interessaram pelo urbano.
Tradicionalmente, a disciplina se dedica à análise dos povos ágrafos, que não
dispõem da escrita.
Ruth, no entanto, sempre achou mais pertinente esmiuçar o
universo das cidades, talvez por ser de uma geração que viu o país se
urbanizar.
A ex-primeira-dama influenciou o senhor como intelectual?
Sim. Vou lhe citar alguns exemplos. Eu estudei as teses de
Claude Lévi-Strauss [antropólogo] superficialmente. Mas a Ruth as conhecia
muito. Em 1962 e 63, frequentou seminários dele na França. Ela, então, me
ensinava o que sabia.
Conversávamos sobre Lévi-Strauss e outros autores que me são
menos familiares: o Manuel Castells [sociólogo], o Michel Foucault [filósofo] e
o próprio Alain Touraine [sociólogo], com quem tive aulas. Ruth ainda me
alertou para a força dos movimentos sociais.
Recordo que, lá pela década de 1970, grupos da periferia de
São Paulo reivindicavam do governo avanços na área da saúde pública. Eu olhava
aquilo e previa: “Não vai resultar em nada”. Sob o meu prisma, os grupos
pressionavam o Estado à toa porque as exigências populares se perderiam no
gabinete do burocrata.
Ruth não raciocinava desse jeito. Ela já notava que existia
a chance de aquelas ações causarem – como realmente causaram – mudanças mais
profundas, mais políticas na estrutura do Estado. Ou melhor: que daqueles
grupos surgiriam vereadores, deputados e outras lideranças capazes de agir
efetivamente dentro da máquina estatal.
Influenciado pelo marxismo, eu acreditava que as
transformações só iriam decorrer da luta de classes – do choque entre o
proletariado e a burguesia. Ruth me corrigia: “Não, a luta não precisa ser
apenas de classes. A luta também pode ser do povo contra o Estado”.
Quer dizer que ela se
opunha à predominância das interpretações marxistas na USP da época?
Exato. Eu, Ruth, Paul Singer [economista], José Arthur
Gianotti, Bento Prado Júnior [ambos filósofos], Octavio Ianni [sociólogo] e
outros participamos do famoso seminário sobre O Capital, de Karl Marx, que se
iniciou em 1958. Ao longo de seis anos, nossa turma se reunia periodicamente
para debater os diversos volumes do livro. Ruth, portanto, tinha intimidade com
as teorias de Marx.
Acontece que nunca adotou uma visão estritamente marxista.
Ela ia na contramão de todos nós e não enxergava a luta de classes como o único
motor da história. Daí se interessar tanto pelo conceito de sociedade civil –
uma ideia extramarxista, digamos.
A atuação como
primeira-dama
Dona Ruth não
desejava que o senhor virasse político. Por quê?
Na década de 1950, quando a gente se formou, havia o
consenso de que a carreira acadêmica é uma espécie de sacerdócio. Deveríamos
viver para o ensino e a pesquisa. Eu próprio considerava pecado receber
dinheiro por qualquer atividade que não a de professor.
Embora descenda de uma família com larga trajetória política
(meu bisavô governou Goiás, meu tio-avô ocupou o cargo de ministro da Guerra,
meu pai se elegeu deputado), procurei evitar tal caminho na juventude. Não
participei nem mesmo do movimento estudantil enquanto cursava ciências sociais.
Os militares só me mandaram para o exílio após o golpe de 1964 porque eu
defendia reformas na universidade – mudanças que os conservadores taxavam de
subversivas.
Não me expulsaram do país em razão de militância partidária
ou algo do gênero. Logo depois que voltei, resisti à ditadura intelectualmente,
fazendo pesquisas, escrevendo artigos em jornais de oposição e promovendo
conferências. Ruth também se comportava desse modo. Queríamos protestar, mas
continuávamos sem a intenção de ingressar na política propriamente dita.
Ocorre que, com o passar dos anos, as circunstâncias me
levaram para o Senado e, depois, para o Executivo. Ruth, sobretudo no início,
discordava de minha resolução. Temia perder a privacidade. Arrepiava-se diante
da ideia de nossa vida se tornar mais pública, mais institucional, repleta de
pompa. Mesmo assim, nunca deixou de se engajar em minhas campanhas eleitorais.
E, quando cheguei à Presidência, desempenhou brilhantemente as funções que
atribuiu para si.
Entretanto, não
gostava que a chamassem de primeira-dama.
Ruth, na verdade, refutava o conceito muito norte-americano
de que a primeira-dama ocupa um cargo. “Não, quem ocupa um cargo é o presidente
da República”, argumentava. “Ele, sim, tem obrigações previstas pela lei. A
primeira-dama precisa apenas se manter autônoma e desempenhar os papéis que
julgar adequados. Cada uma deve agir como achar melhor, sem tarefas definidas.”
Tanto que Ruth sempre defendeu a Marisa [Letícia, mulher de
Lula]. As duas se portaram de forma bem diferente em Brasília. Marisa, todos
sabemos, abdicou de qualquer protagonismo. E Ruth a apoiava: “Ela está se
respeitando. Não trai a própria personalidade, não é exibida, não interfere no
governo. Por que vou criticá-la?”
Como dona Ruth lidava com o gigantesco cerimonial da
Presidência?
Não apreciava nada daquilo, lógico, mas se conformava.
Curiosamente, no final de meu segundo mandato, já demonstrava grande apreço
pelas seguranças que a acompanhavam. Professora em tempo integral, quando
resolvia ver um espetáculo, fazia questão de que as moças assistissem à peça
também. Não deixava que a esperassem na porta do teatro.
Depois, lhes indagava sobre a montagem e dava explicações
sobre o dramaturgo, o diretor e o elenco. Às vezes, havia atores nus em cena –
e as seguranças se horrorizavam. No enterro de Ruth, algumas viajaram para São Paulo
e quiseram carregar o caixão. Criou-se uma relação de afeto.
O senhor dividia com
dona Ruth os problemas do governo?
Não sei se o verbo correto é dividir, porque Ruth evitava se
meter diretamente na minha administração. Ela observava à distância. Não
bancava o pistolão em área nenhuma. Dirigia o Comunidade Solidária e ponto.
Agora, nós conversávamos intensamente sobre quase tudo.
Certos temas a seduziam menos. Economia, por exemplo – o câmbio, as estratégias
do Banco Central. As atenções de Ruth se voltavam mais para a educação, a saúde
e a cultura.
Ela discordava muito
do senhor?
Ô! E abertamente! Em inúmeras ocasiões.
Mencione uma, pelo
menos.
Ruth detestava os partidos clientelistas – aqueles que não
abraçam propriamente uma ideologia, um programa, e só almejam mamar nas tetas
do Estado. Os adesistas, né? Em virtude disso, ela jamais suportou determinados
setores do extinto PFL e não aceitava o acordo que firmei com os pefelistas.
Na teoria, Ruth tinha consciência de que apenas os ditadores
governam sem alianças. Só que na prática… Ela reclamava: “Como assim?! Você
precisa dizer tal coisa para fulano!” Eu respondia: “Um político não deve ir
tão direto ao ponto. Se disser tal coisa, me derrubarão!”
Quem está fora da disputa partidária analisa as situações e
as pessoas sob a ótica dos estereótipos. No entanto, quando se aproxima delas,
termina reformulando o julgamento. Vai soar estranho, mas em qualquer partido
existem canalhas do bem e canalhas do mal, canalhas que traem e canalhas que
não traem, canalhas inteligentes e canalhas obtusos, canalhas competentes e
canalhas incompetentes. Para distinguir uns dos outros, é preciso estrada.
Ruth, no começo, não dispunha de tanta vivência. Depois, foi aprendendo.
Em 1994, a futura
primeira-dama criticou publicamente o senador Antônio Carlos Magalhães, um dos
caciques do PFL. Associou-o à ditadura e às oligarquias.
Pois é… Ruth não se permitia intimidades com o ACM.
Conhecedor das restrições dela, Antônio Carlos tratava de agradá-la. Ele podia
ser uma serpente ou um encantador de serpentes. Dependia dos ventos.
Com a Ruth, costumava exibir os melhores modos.
Mas não adiantava. Certa vez, o convidei para tomar um café
em casa. Tasso Jereissati [um dos líderes do PSDB] nos acompanhou. Ruth, que se
encontrava no apartamento, resolveu preparar o café e se dirigiu à cozinha.
Pronto: o Antônio Carlos subiu na tribuna do Senado e proferiu um discurso sobre
o episódio. “A mulher do presidente abre mão de empregados e tem o
desprendimento de fazer o próprio café.”
Como dona Ruth
encarava as privatizações que o governo do senhor incentivou? O processo sempre
recebeu pesadas críticas. Agora, inclusive, um livro-reportagem que aborda o
assunto se transformou em best-seller: A Privataria Tucana, do jornalista
Amaury Ribeiro Jr.
Ela concordava com as privatizações. À época, todo mundo
concordava. Somente um pequeno grupo de ultranacionalistas, não apenas do PT,
se posicionava contra. Preconizava que iríamos sucatear as indústrias
brasileiras. Imagine! Sobre o livro do rapaz…
O senhor o leu?
Não.
Pretende lê-lo?
Não. Vou ler livro de malandro? O autor trabalhava para os
petistas [durante as eleições presidenciais de 2010, a Polícia Federal indiciou
Ribeiro Jr. sob a acusação de que ele quebrou o sigilo fiscal de tucanos com o
intuito de produzir dossiês; o jornalista nega]. O propósito da reportagem é
criar uma cortina de fumaça, tirar o foco da herança deixada por Lula: as
corrupções que pipocam no governo federal. Você leu o livro? Conte-me algo que
aparece lá.
O repórter procura
demonstrar que o ex-governador José Serra, do PSDB, e alguns parentes se
beneficiaram financeiramente das privatizações.
O Serra? Impossível! Coloco minha mão no fogo. Serra não
teve nenhuma relação com as privatizações. Nada! Zero! Zero! E outra coisa:
quem rouba uma hora se entrega. Nunca vi ladrão que, cedo ou tarde, não
transpareça. Vamos verificar se algo mudará no padrão do Serra. Vamos verificar
se a família dele ostentará riqueza…
A vida doméstica
Dona Ruth apoiava com
veemência as causas feministas. Como tal engajamento reverberava dentro de
casa?
Desde o namoro, e até antes, nós transitávamos num círculo
ilustrado, culto, que preconizava a equivalência entre homens e mulheres.
Compartilhávamos, portanto, de ideias similares sobre o tema. Mas existia uma
diferença importante em nossas posturas – a mesma que distingue o liberal do
igualitário. O liberal aceita, tolera. O igualitário bota em prática.
Eu, liberal, concordava teoricamente com as reivindicações
do feminismo. Ruth, igualitária, tratava de fazê-las acontecer. Ela sempre
quis, por exemplo, que todos da família ajudassem no trabalho doméstico. Para
um homem da minha geração, assumir atribuições dessa natureza beira o absurdo.
Mesmo assim, às vezes, eu tirava a louça da mesa após as refeições. Foi o
máximo de concessão que me permiti.
Ainda hoje, recolho a louça no meu apartamento ou no de
amigos. À época da Presidência, também recolhia. Já lavar os pratos me custa
mais. Se necessário, lavo – só que me desagrada. Na década de 1980, passamos
uma temporada em Berkeley [na Califórnia, Estados Unidos]. Há uma foto do
período que me flagra lavando louça. Ruth garantia que a imagem é falsa, que
aquele milagre jamais ocorreu. [risos]
Os filósofos Jean
Paul Sartre e Simone de Beauvoir visitaram o Brasil em 1960. Na ocasião, o
senhor os recebeu para um jantar. O que dona Ruth sentiu quando travou contato
com uma lenda do feminismo?
Decepcionou-se. Simone nos pareceu tão bonita quanto
distante, fria e dura. Antipática, enfim. Para piorar, tratava o Sartre – um
tipo sorridente, carismático – como criança: “Não faça isso, não faça aquilo!”
E titubeou diante da sopa de mandioquinha que Ruth preparou.
Na hora da sobremesa, nos vingamos. Servimos goiabada com
queijo, combinação que desagradou ainda mais a Simone. Ela torceu o nariz e
acabou engolindo o doce por mera educação.
Apesar de feminista e intelectual, Ruth prezava as tarefas
de casa. Cozinhava bem, tricotava, costurava e adorava jardinagem. Só não
entendia direito de contas. Não gastava excessivamente, mas se atrapalhava com
cheques e números. Não tinha noção de preço.
Na contramão de Lula
e dona Marisa, que costumam demonstrar carinho em público, o senhor e dona Ruth
se comportavam de maneira sóbria. Faltava romantismo entre vocês?
Não. Na intimidade, nos mostrávamos calorosos. A discrição
se manifestava apenas publicamente – um recato que cultivamos desde a
juventude.
Além do mais, em casamentos longos como o nosso, cria-se uma
base afetiva que é estável, independentemente das aparências, dos altos e
baixos, das oscilações pontuais.
Em 2009, o senhor
reconheceu como filho o adolescente Tomás, que teria nascido de uma relação
extraconjugal. O rapaz já fez 20 anos. Recentemente, porém, testes de DNA
demonstraram que o senhor não é o pai dele. Em que momento dona Ruth soube da
história?
No momento em que o filho surgiu.
E qual a reação dela?
Ruim, né? Mas também compreensiva. Ruth conhecia a vida.
Estava ciente de que o ser humano passa por períodos de variação.
O senhor cogitou se
separar?
Não. Nunca me enxerguei sem a Ruth. Desculpe… Não gostaria
de alongar o assunto, em nome da reserva que pautava meu casamento.
Acrescento apenas que, a despeito do DNA, sigo mantendo um
relacionamento muito bom com Tomás, tanto em termos afetivos quanto cíveis.
Posso afirmar igualmente que Ruth morreu numa ótima fase de nossa união. À
semelhança de qualquer casal, atravessamos etapas de maior e menor
cumplicidade. Até criar nossos filhos, nos conservamos bem próximos. Depois,
houve certo distanciamento.
E, nos últimos 15 anos, uma reaproximação intensa – de tal
maneira que a morte dela me afetou como um raio em dia de sol.