Se você sente náuseas com blogueiros bancados por estatais,
espere até assistir um filme “baseado em fatos reais” patrocinado por elas. Bem
vindo à era da história reescrita pelo cinema nacional chapa-branca.
Como filme, “Getúlio” não inova em nada. A fotografia é
óbvia, a trilha é burocrática, a narrativa é claramente inspirada em “A Queda –
As Últimas Horas de Hitler (2004)”, as atuações esquemáticas, com momentos
constrangedores como quando os atores tentam falar com sotaque gaúcho. Como
registro histórico, “Getúlio” é um acinte a serviço de uma agenda política.
Para não deixar dúvidas, João Jardim, diretor e
co-roteirista do filme, disse: “é bom lançar o filme em ano de eleição, para
fazer com que as pessoas reflitam antes de votar”. Em diversas entrevistas,
Jardim deixa claro que vê similaridades entre o momento político atual
brasileiro e aqueles 19 dias que separaram o atentado a Carlos Lacerda na Rua
Tonelero e o suicídio de Vargas.
O Getúlio Vargas de João Jardim é o defensor dos
trabalhadores que criou a Petrobras, uma das patrocinadoras do filme, o que
teria colocado o ex-presidente em oposição aos militares. Em que país João
Jardim foi encontrar militares opositores de estatais? No Brasil é que não foi.
O regime militar iniciado em 1964 encontrou um país com 50 estatais e devolveu
com mais de 500. Se esses são os militares que não gostam de estatais, imagino
o que fariam se gostassem.
A Petrobras foi criada a partir de uma campanha
ultranacionalista encabeçada pelo general Felicíssimo Cardoso, que entrou para
a história como o “general do petróleo”. Felicíssimo esteve à frente da
campanha “O Petróleo é Nosso”, criou um think tank (Centro de Estudos e Defesa
do Petróleo e da Economia Nacional) e uma revista com o objetivo explícito de
pressionar o governo a criar a estatal. Se alguém pode ser considerado o “pai”
da Petrobras é o general Felicíssimo Cardoso, mas como ele é também tio do ex-presidente
Fernando Henrique Cardoso fica fácil entender porque seu nome está sendo
apagado da história e não é lembrado nos filmes que a Petrobras hoje patrocina.
De todos os crimes e licenças do roteiro, o mais grave é
relativizar algo que é fato (o atentado a Carlos Lacerda, que vitimou o major
Rubens Vaz) e dar como certa a inocência de Vargas, o que está longe de ser um
ponto pacífico da história brasileira. O diretor de “Getúlio” tem todo direito
de não acreditar que o ex-ditador, líder de um dos regimes mais autoritários e
sangrentos da história do país, o famigerado Estado Novo, não estava
diretamente envolvido com o atentado, mas colocar a questão como resolvida e
Vargas como inocente é reescrever a história.
O cinema praticamente nasceu produzindo libelos políticos. O
clássico “O Nascimento de uma Nação” (D. W. Griffith, 1915) já defendia a
agenda política racista do Partido Democrata americano e do presidente da
época, Woodrow Wilson, colocando negros como uma sub-raça e enaltecendo a Ku
Klux Klan. Griffith inspirou Serguei Eisenstein, seu fã confesso e
cineasta-militante do bolchevismo soviético. Desde então, o cinema nunca parou
de defender, explicitamente ou não, causas políticas, especialmente os
produzidos com patrocínio direto ou indireto de governos.
Em “Getúlio”, o roteiro pretende resolver uma das maiores
polêmicas da história do Brasil: Vargas estava envolvido ou não na tentativa de
assassinato de Carlos Lacerda? Para o filme, não estava e pronto. Não
satisfeito, o roteiro dá piscadelas para teorias conspiratórias lisérgicas como
sugerir que Lacerda pudesse ter simulado o próprio atentado, algo que nem o
getulista mais empedernido ousaria pensar.
O filme quer passar a idéia de que Vargas, defensor do povo
e das estatais, foi vítima de uma armação política suja com o apoio da imprensa
golpista. O protagonista do filme tem pouca noção do que seus auxiliares mais
próximos faziam dentro do palácio e sua boa fé acabou por custar seu governo. O
Getúlio de João Jardim é, evidentemente, o Lula do ideário petista, um pai dos
pobres vilipendiado por uma trama que unia a imprensa e a direita
inescrupulosa, antidemocrática e sedenta de poder.
Ao colocar Tony Ramos no papel principal, logo o ator mais
querido e popular do Brasil, João Jardim buscou criar uma identificação
imediata do público com o ex-presidente, uma opção para que o espectador não
tivesse qualquer dúvida de quem apoiar desde o início. Já nos créditos finais,
o filme subestima mais uma vez a capacidade do público de tirar suas próprias
conclusões e coloca uma frase de Tancredo Neves, num didatismo gritante,
afirmando que o suicídio de Vargas em 1954 atrasou o golpe militar em dez anos.
“Getúlio” é uma peça de propaganda ideológica dissimulada,
com uma leitura muito particular e ideológica da história do Brasil, que faz
escolhas que tentam recontar a época torcendo episódios para que se encaixem na
narrativa que interessa ao diretor e aos patrocinadores do filme.
Se “Getúlio” for o marco inicial de uma safra de filmes
militantes, é mais um motivo para arrumar as malas e buscar o Galeão que tanto
assombrava Vargas, um mártir da própria consciência que levou para o túmulo a
verdade sobre a tentativa de assassinato de um opositor, o único crime
comprovadamente ocorrido naqueles 19 dias de agosto de 1954.