O BRASIL PRECISA DE EXEMPLOS
O legado do ministro Joaquim Barbosa transcende a prisão de
um bando de corruptos poderosos. Ele mostrou que é possível fazer a coisa certa
sem precisar transigir ou flertar com o que existe de errado
Texto de Daniel Pereira, com reportagem de Robson Bonin e
Hugo Marques, publicado em edição impressa de VEJA
O mineiro Joaquim Barbosa sempre acreditou no esforço
pessoal. Filho de um pedreiro e uma dona de casa, estudou em escola pública,
formou-se numa universidade federal e assumiu importantes cargos depois de ser
aprovado em concurso. À carreira no Ministério Público, acrescentou uma sólida
história acadêmica, com passagens, como estudante e professor, por renomadas
instituições de ensino do Brasil e do exterior.
Barbosa construiu sua trajetória sem a ajuda de padrinhos
influentes e sem pedir favores. Numa sociedade acostumada a atalhos duvidosos e
ao jeitinho, preferiu o árduo caminho da meritocracia. Essa biografia chamou a
atenção do presidente Lula. Em 2003, ele indicou Barbosa para o cargo de ministro
do Supremo Tribunal Federal (STF).
O objetivo de Lula era nomear pela primeira vez um negro
para a mais alta corte do Judiciário e, assim, tirar do papel a agenda de
políticas afirmativas do governo. O que Lula não sabia é que a escolha renderia
frutos bem maiores. Ele escalara o homem certo, na hora certa, para desferir o
mais duro golpe contra a corrupção na história recente do país. Sorte dos
brasileiros de bem, azar do PT.
Em 2012 e 2013, durante mais de sessenta sessões plenárias,
Barbosa comandou o julgamento do mensalão, como relator do processo e, depois,
também como presidente do STF. O resultado criminal é conhecido: o Supremo
concluiu que o PT subornou parlamentares para se perpetuar no poder, durante o
primeiro mandato de Lula, e condenou a antiga cúpula do partido à prisão.a
charge joaquim barbosa indo emboraO
resultado simbólico também é conhecido: a Justiça finalmente se fez valer para
todos, sem distinção, o que foi considerado um divisor de águas na luta contra
a impunidade que há séculos privilegia os poderosos no Brasil. Anunciadas as
penas e decretadas as prisões, Barbosa se tornou uma espécie de herói nacional,
o cavaleiro vingador da capa preta, aplaudido nas ruas e assediado para
disputar as eleições.
Mas esse era apenas um dos lados da moeda. A outra face,
menos evidente, levou o ministro a anunciar, na quinta-feira, que deixará o
Supremo em junho, onze anos antes do prazo fixado para sua aposentadoria
compulsória. “Minha missão está cumprida”, disse Barbosa.
Em fevereiro, VEJA revelou que o ministro cogitava antecipar
a aposentadoria. Essa possibilidade ganhou força depois de o plenário derrubar
a condenação por formação de quadrilha imposta aos mensaleiros. Barbosa, que se
acostumara a formar a maioria, acabou derrotado na votação.
Ele suspeitava que dali para a frente, devido à nova
composição do tribunal, tenderia a ser sempre derrotado nos embates criminais
mais polêmicos. “Essa é uma tarde triste para o Supremo. Com argumentos pífios,
foi reformada, jogada por terra, extirpada do mundo jurídico, uma decisão
plenária sólida e extremamente bem fundamentada”, lamentou o ministro.
O PODER NA PRISÃO — Apesar das pressões e ameaças, inclusive
de morte, Barbosa foi implacável com os mensaleiros. José Dirceu foi condenado
a sete anos e onze meses e José Genoino a quatro anos e oito meses de cadeia
por crime de corrupção (Fotos: Ailton de Freitas/Agência O Globo :: Marlene
Bergamo/Folhapress)
A reação estava diretamente relacionada às dificuldades
presentes no caso. Lula e o PT jogaram pesado para adiar o início do
julgamento, numa tentativa de facilitar a prescrição de certos crimes. Também
procuraram ministros para convencê-los a reduzir as penas da companheirada e
suavizar o enredo criminoso.
Quando o julgamento finalmente começou, Barbosa teve de
comprar uma série de brigas para tirar o tribunal de uma espécie de zona de
conforto. Uma zona de conforto que, registre-se, sempre contribuiu para
dificultar a condenação de políticos, empresários e banqueiros.
Barbosa bateu de frente com os próprios colegas para
garantir e acelerar as votações. Chegou a agredi-los verbalmente, acusá-los de
cumplicidade com chicanas e acabou isolado dentro do tribunal. Pagou um custo
pessoal que, segundo seus assessores, foi compensado pelo benefício
proporcionado à sociedade.
O ministro também partiu para um duelo aberto com os maiores
criminalistas do país. Recusou-se a recebê-los para conversas informais.
Parece irrelevante, mas não é. Não são poucos os magistrados que fazem questão
de agradar aos grandes nomes da advocacia nacional, mesmo que por meio de
pequenos gestos.
De origem humilde, Barbosa teve coragem de romper com esses
“rapapés aristocráticos”, conforme expressão lapidar cunhada pelo antropólogo
Roberto DaMatta. O custo pessoal, novamente, não foi pequeno.
“As grandes marcas dele, infelizmente, são a truculência no
trato e a intolerância com os pontos de vista que não convergiam com os dele”,
afirma Alberto Toron, advogado do petista João Paulo Cunha, o ex-presidente da
Câmara encarcerado na Papuda. Barbosa, de fato, nem sempre lida bem com a
divergência.
Muitas vezes, mostrou-se iracundo e autoritário. Certa vez,
mandou um jornalista “chafurdar na lama” porque ele ousou lhe fazer uma
pergunta. Para o ministro aposentado do STF Carlos Velloso, Barbosa pecou na
forma, mas, no caso do mensalão, acertou em cheio no conteúdo. “As instituições
valem por si, mas a grandeza depende das pessoas que fazem funcionar as
instituições.
Barbosa conduziu com firmeza um julgamento exemplar de um
processo tormentoso, com muitos réus, e não eram réus quaisquer”, diz Velloso.
Se não tivesse coragem de enfrentar tantas trincheiras, talvez o STF estivesse
até hoje às voltas com requerimentos, petições, questões de ordem…
Depois do mensalão, Barbosa definiu duas prioridades. Uma delas
era participar do julgamento sobre as perdas decorrentes dos planos econômicos.
Trata-se de um processo bilionário que opõe correntistas a instituições
financeiras. No STF, especulava-se que o ministro, após mandar políticos e
empresários para a cadeia, votaria contra os bancos.
Com a análise desse caso econômico adiada novamente, Barbosa
decidiu antecipar a aposentadoria. A outra prioridade era garantir a eficácia
das penas aplicadas aos mensaleiros.
Barbosa se insurgiu contra os privilégios concedidos a eles
na cadeia. Recentemente, suspendeu a autorização de trabalho externo. Com base
num laudo médico, revogou a prisão domiciliar de José Genoino. O ex-ministro
José Dirceu nunca recebeu aval para trabalhar fora do presídio.
Os advogados dos mensaleiros recorreram dessas decisões ao
plenário do STF. Não está certo se o julgamento do recurso ocorrerá antes ou
depois da aposentadoria de Barbosa.
Se a saída tiver acontecido, será sorteado um novo relator,
e a presidência já estará sob a responsabilidade de Ricardo Lewandowski.
Afilhado político da ex-primeira-dama Marisa Letícia, Lewandowski é lhano no
trato, tem boas relações com os colegas e os advogados e defendeu a absolvição
de Dirceu e Genoino no processo. Especialista nos “rapapés aristocráticos”, ele
é a antítese de Barbosa.
O PT não vê a hora de seu algoz sair de cena. De certa
forma, também se cansou da briga. “A postura dele não foi de um estadista do
Poder Judiciário. Constatamos uma postura carregada de ódio que não caberia a
um juiz”, disse o deputado Vicentinho, líder do PT na Câmara, ao comentar a
aposentadoria.
Essa declaração é legítima e faz parte do jogo democrático.
Pena que o PT não pare por aí. Militantes do partido na internet, como VEJA
mostrou, chegaram a ameaçar Barbosa de morte. “Contra Joaquim Barbosa toda
violência é permitida, porque não se trata de um ser humano, mas de um monstro
e de uma aberração moral das mais pavorosas. Joaquim Barbosa deve ser morto”,
escreveu um deles.
Extenuado, o ministro quer se afastar da artilharia petista
e, mais importante, virar a página do mensalão. Para ele, o assunto está
encerrado, pacificado.
Não é à toa. Sob sua batuta, o Supremo deu aos brasileiros
uma lição de moralidade e intransigência com as roubalheiras. Uma lição que até
desafetos, como o ministro Marco Aurélio, fizeram questão de ressaltar: “O
Supremo, como colegiado, acabou por reafirmar que a lei é lei para todos
indistintamente e que não se agradece a esse ou aquele ato a partir da ocupação
da cadeira no Supremo”.
Barbosa não agradeceu a Lula, o que permitiu ao país dar um
passo importante em sua escalada civilizatória. Eis aí um grande legado.
A meritocracia do esforço
Muito pobre na infância, Joaquim Barbosa estudou, trabalhou,
foi aprovado em concurso público e chegou à mais alta corte de Justiça do país
sem precisar de amigos influentes, favores ou uma mãozinha de políticos
1. Nascido em uma família humilde de Paracatu (MG), Joaquim
Barbosa teve de trabalhar desde cedo para sustentar a casa. Filho de um
pedreiro e uma dona de casa, ajudava o pai a fabricar tijolos e a entregar
lenha
2. Aos 16 anos, Barbosa foi sozinho para Brasília, arrumou
emprego em uma gráfica, e terminou o ensino médio, sempre estudando em colégio
público
3. Aos 22 anos, tornou-se oficial de chancelaria do
Ministério das Relações Exteriores. Depois acabou reprovado num concurso para
diplomatas devido, diz ele, a preconceito racial
4. Formado em direito, foi aprovado no concurso para
procurador da República. Fez doutorado na Sorbonne, em Paris, foi professor
visitante na Universidade Colúmbia, em Nova York, e na Universidade da
Califórnia
5. Em 2003, Joaquim Barbosa estava nos Estados Unidos quando
foi convidado pelo ex-presidente Lula a assumir a vaga no STF