sexta-feira, 6 de junho de 2014

O ministro Joaquim Barbosa é um dos motivos pelos quais o Brasil tem esperança. O que ele deixa para trás no STF vai muito além do mensalão

O BRASIL PRECISA DE EXEMPLOS

O legado do ministro Joaquim Barbosa transcende a prisão de um bando de corruptos poderosos. Ele mostrou que é possível fazer a coisa certa sem precisar transigir ou flertar com o que existe de errado

Texto de Daniel Pereira, com reportagem de Robson Bonin e Hugo Marques, publicado em edição impressa de VEJA

O mineiro Joaquim Barbosa sempre acreditou no esforço pessoal. Filho de um pedreiro e uma dona de casa, estudou em escola pública, formou-se numa universidade federal e assumiu importantes cargos depois de ser aprovado em concurso. À carreira no Ministério Público, acrescentou uma sólida história acadêmica, com passagens, como estudante e professor, por renomadas instituições de ensino do Brasil e do exterior.

Barbosa construiu sua trajetória sem a ajuda de padrinhos influentes e sem pedir favores. Numa sociedade acostumada a atalhos duvidosos e ao jeitinho, preferiu o árduo caminho da meritocracia. Essa biografia chamou a atenção do presidente Lula. Em 2003, ele indicou Barbosa para o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).

O objetivo de Lula era nomear pela primeira vez um negro para a mais alta corte do Judiciário e, assim, tirar do papel a agenda de políticas afirmativas do governo. O que Lula não sabia é que a escolha renderia frutos bem maiores. Ele escalara o homem certo, na hora certa, para desferir o mais duro golpe contra a corrupção na história recente do país. Sorte dos brasileiros de bem, azar do PT.

Em 2012 e 2013, durante mais de sessenta sessões plenárias, Barbosa comandou o julgamento do mensalão, como relator do processo e, depois, também como presidente do STF. O resultado criminal é conhecido: o Supremo concluiu que o PT subornou parlamentares para se perpetuar no poder, durante o primeiro mandato de Lula, e condenou a antiga cúpula do partido à prisão.a charge joaquim barbosa  indo emboraO resultado simbólico também é conhecido: a Justiça finalmente se fez valer para todos, sem distinção, o que foi considerado um divisor de águas na luta contra a impunidade que há séculos privilegia os poderosos no Brasil. Anunciadas as penas e decretadas as prisões, Barbosa se tornou uma espécie de herói nacional, o cavaleiro vingador da capa preta, aplaudido nas ruas e assediado para disputar as eleições.

Mas esse era apenas um dos lados da moeda. A outra face, menos evidente, levou o ministro a anunciar, na quin­ta-feira, que deixará o Supremo em junho, onze anos antes do prazo fixado para sua aposentadoria compulsória. “Minha missão está cumprida”, disse Barbosa.

Em fevereiro, VEJA revelou que o ministro cogitava antecipar a aposentadoria. Essa possibilidade ganhou força depois de o plenário derrubar a condenação por formação de quadrilha imposta aos mensaleiros. Barbosa, que se acostumara a formar a maioria, acabou derrotado na votação.

Ele suspeitava que dali para a frente, devido à nova composição do tribunal, tenderia a ser sempre derrotado nos embates criminais mais polêmicos. “Essa é uma tarde triste para o Supremo. Com argumentos pífios, foi reformada, jogada por terra, extirpada do mundo jurídico, uma decisão plenária sólida e extremamente bem fundamentada”, lamentou o ministro.

O PODER NA PRISÃO — Apesar das pressões e ameaças, inclusive de morte, Barbosa foi implacável com os mensaleiros. José Dirceu foi condenado a sete anos e onze meses e José Genoino a quatro anos e oito meses de cadeia por crime de corrupção (Fotos: Ailton de Freitas/Agência O Globo :: Marlene Bergamo/Folhapress)
A reação estava diretamente relacionada às dificuldades presentes no caso. Lula e o PT jogaram pesado para adiar o início do julgamento, numa tentativa de facilitar a prescrição de certos crimes. Também procuraram ministros para convencê-los a reduzir as penas da companheirada e suavizar o enredo criminoso.

Quando o julgamento finalmente começou, Barbosa teve de comprar uma série de brigas para tirar o tribunal de uma espécie de zona de conforto. Uma zona de conforto que, registre-se, sempre contribuiu para dificultar a condenação de políticos, empresários e banqueiros.

Barbosa bateu de frente com os próprios colegas para garantir e acelerar as votações. Chegou a agredi-los verbalmente, acusá-los de cumplicidade com chicanas e acabou isolado dentro do tribunal. Pagou um custo pessoal que, segundo seus assessores, foi compensado pelo benefício proporcionado à sociedade.

O ministro também partiu para um duelo aberto com os maiores criminalistas do país. Recu­sou-se a recebê-los para conversas informais. Parece irrelevante, mas não é. Não são poucos os magistrados que fazem questão de agradar aos grandes nomes da advocacia nacional, mesmo que por meio de pequenos gestos.

De origem humilde, Barbosa teve coragem de romper com esses “rapapés aristocráticos”, conforme expressão lapidar cunhada pelo antropólogo Roberto DaMatta. O custo pessoal, novamente, não foi pequeno.

“As grandes marcas dele, infelizmente, são a truculência no trato e a intolerância com os pontos de vista que não convergiam com os dele”, afirma Alberto Toron, advogado do petista João Paulo Cunha, o ex-presidente da Câmara encarcerado na Papuda. Barbosa, de fato, nem sempre lida bem com a divergência.

Muitas vezes, mostrou-se iracundo e autoritário. Certa vez, mandou um jornalista “chafurdar na lama” porque ele ousou lhe fazer uma pergunta. Para o ministro aposentado do STF Carlos Velloso, Barbosa pecou na forma, mas, no caso do mensalão, acertou em cheio no conteúdo. “As instituições valem por si, mas a grandeza depende das pessoas que fazem funcionar as instituições.

Barbosa conduziu com firmeza um julgamento exemplar de um processo tormentoso, com muitos réus, e não eram réus quaisquer”, diz Velloso. Se não tivesse coragem de enfrentar tantas trincheiras, talvez o STF estivesse até hoje às voltas com requerimentos, petições, questões de ordem…

Depois do mensalão, Barbosa definiu duas prioridades. Uma delas era participar do julgamento sobre as perdas decorrentes dos planos econômicos. Trata-se de um processo bilionário que opõe correntistas a instituições financeiras. No STF, especulava-se que o ministro, após mandar políticos e empresários para a cadeia, votaria contra os bancos.

Com a análise desse caso econômico adiada novamente, Barbosa decidiu antecipar a aposentadoria. A outra prioridade era garantir a eficácia das penas aplicadas aos mensaleiros.

Barbosa se insurgiu contra os privilégios concedidos a eles na cadeia. Recentemente, suspendeu a autorização de trabalho externo. Com base num laudo médico, revogou a prisão domiciliar de José Genoi­no. O ex-ministro José Dirceu nunca recebeu aval para trabalhar fora do presídio.

Os advogados dos mensaleiros recorreram dessas decisões ao plenário do STF. Não está certo se o julgamento do recurso ocorrerá antes ou depois da aposentadoria de Barbosa.

Se a saída tiver acontecido, será sorteado um novo relator, e a presidência já estará sob a responsabilidade de Ricardo Lewandowski. Afilhado político da ex-primeira-dama Marisa Letícia, Lewandowski é lhano no trato, tem boas relações com os colegas e os advogados e defendeu a absolvição de Dirceu e Genoino no processo. Especialista nos “rapapés aristocráticos”, ele é a antítese de Barbosa.

O PT não vê a hora de seu algoz sair de cena. De certa forma, também se cansou da briga. “A postura dele não foi de um estadista do Poder Judiciário. Constatamos uma postura carregada de ódio que não caberia a um juiz”, disse o deputado Vicentinho, líder do PT na Câmara, ao comentar a aposentadoria.

Essa declaração é legítima e faz parte do jogo democrático. Pena que o PT não pare por aí. Militantes do partido na internet, como VEJA mostrou, chegaram a ameaçar Barbosa de morte. “Contra Joaquim Barbosa toda violência é permitida, porque não se trata de um ser humano, mas de um monstro e de uma aberração moral das mais pavorosas. Joaquim Barbosa deve ser morto”, escreveu um deles.

Extenuado, o ministro quer se afastar da artilharia petista e, mais importante, virar a página do mensalão. Para ele, o assunto está encerrado, pacificado.

Não é à toa. Sob sua batuta, o Supremo deu aos brasileiros uma lição de moralidade e intransigência com as roubalheiras. Uma lição que até desafetos, como o ministro Marco Aurélio, fizeram questão de ressaltar: “O Supremo, como colegiado, acabou por reafirmar que a lei é lei para todos indistintamente e que não se agradece a esse ou aquele ato a partir da ocupação da cadeira no Supremo”.

Barbosa não agradeceu a Lula, o que permitiu ao país dar um passo importante em sua escalada civilizatória. Eis aí um grande legado.

A meritocracia do esforço

Muito pobre na infância, Joaquim Barbosa estudou, trabalhou, foi aprovado em concurso público e chegou à mais alta corte de Justiça do país sem precisar de amigos influentes, favores ou uma mãozinha de políticos

1. Nascido em uma família humilde de Paracatu (MG), Joaquim Barbosa teve de trabalhar desde cedo para sustentar a casa. Filho de um pedreiro e uma dona de casa, ajudava o pai a fabricar tijolos e a entregar lenha

2. Aos 16 anos, Barbosa foi sozinho para Brasília, arrumou emprego em uma gráfica, e terminou o ensino médio, sempre estudando em colégio público

3. Aos 22 anos, tornou-se oficial de chancelaria do Ministério das Relações Exteriores. Depois acabou reprovado num concurso para diplomatas devido, diz ele, a preconceito racial

4. Formado em direito, foi aprovado no concurso para procurador da República. Fez doutorado na Sorbonne, em Paris, foi professor visitante na Universidade Colúmbia, em Nova York, e na Universidade da Califórnia

5. Em 2003, Joaquim Barbosa estava nos Estados Unidos quando foi convidado pelo ex-presidente Lula a assumir a vaga no STF