“Entrevista? Eu?”
- Sim, camarada Stalin... Estamos em um momento histórico
importante... O camarada está sendo relembrado em tantos países, inclusive na
Rússia. O camarada está na moda...
- Você é do Brasil, não é? Saudades do Prestes... Ele está
onde?
- Morreu e deve estar por aqui.
- Aqui neste limbo onde estou não tem ninguém. É o
purgatório dos ditadores; não há ninguém para nos ouvir. Imenso céu branco e
vazio. Esta é a nossa punição.
- Você está feliz aqui, “tovarich”?
- Eu virei uma sombra do que fui; sou até usado como
xingamento, confundido com os fascistas e nazistas que eram uma imitação barata
do bolchevismo. Esses merdas deviam me agradecer porque não existiriam se eu
não tivesse mandado aqueles comunas alemães não votar na social-democracia,
nossa principal inimiga. Aí, o nazismo ganhou. Se não fosse eu, o Hitler não
tinha subido...
- Você tem orgulho do comunismo?
- O comunismo, camarada, é o substituto do sonho de
“imortalidade” dos cristãos. Comunista não morre; vira um conceito. O homem é
um ser social, não é? Pois é: o ser social nunca morre. O indivíduo é uma
ilusão que criou essa dor melodramática. Quem morre é pequeno-burguês.
- Mas, na boa, camarada, você matou muita gente...
- Me acusam muito de crueldade, mas fazíamos uma mutação na
vida humana e é impossível fazer uma revolução sem crueldade, sem tirania… O
próprio Hitler, que me plagiava, disse: “Temos de ser cruéis. Temos de manter a
consciência tranquila de sermos cruéis”. E eu digo que se não fôssemos cruéis
não teríamos o socialismo. Como é que eu ia coletivizar a agricultura sem matar
uns 800 mil “kulaks”, aqueles camponeses alienados, chupa-sangues, vampiros?
- Mas, camarada, você não exagerou?
- Ora, tanto faz. A morte de uma pessoa é uma tragédia; a de
milhões, uma estatística. Temos de combater essas inibições pequeno-burguesas.
Tivemos que dar muito conhaque para meus militares baterem um recorde: 28 mil
traidores fuzilados em quatro semanas. Sete mil por semana. Os soldados, ainda
calouros no bolchevismo, tinham de beber muito para cumprir minhas ordens...
Vomitavam, choravam, mas deram conta. Foi um dos meus recordes. Sem contar os
40 mil oficiais do Exército que fuzilei. A única frase do canalha do Trotsky
que presta é: “Quem foi que inventou que a vida humana é sagrada?”.
- Mas o camarada não sentia culpa?
- Nada. A compaixão é um sentimento de enfermeiras, assim
como a gratidão é uma doença de cachorros... Cá entre nós, não tenho mais de
esconder nada, a euforia que me tomava com a morte de milhares de homens por
minhas ordens era uma deliciosa vertigem. Muita gente que justicei não tinha
noção da maravilha que era construir o Homem Novo. Eu comecei a construção do
soviético essencial: frio, fiel escravo do Partido que está sempre certo. Vocês
têm na terra um bom exemplo: a Coreia do Norte. Mas aquele garoto é um estúpido
feito o pai. São um exército de imbecis. Você viu o ridículo: todo mundo
fingindo chorar quando morreu o papai do garoto? Eu fazia uma história nova;
não esta historinha burguesa não, mas a História! Já pensou: milhões de homens
iguais a mim? Eu, eu, eu, milhões de Stalins? O Homem Novo não sente falta da
individualidade perdida. Ele ganha o encanto infinito da servidão, a religião,
a alegria de pertencer a um partido infalível. Dá um alívio não ter que pensar,
só obedecer. Ainda bem que os camponeses russos eram analfabetos e não podiam
ler jornais e livros do país. Aliás, Hitler escreveu: “Que sorte para os
ditadores que os homens não pensem.” A construção do Homem Novo custou muito
sangue, eu sei, mas não tinha outro jeito. Difícil foi na Ucrânia, quando
proibi comida naquele buraco de traidores e de “kulaks” reacionários. Morreram
mais de 4 milhões de fome, teve até canibalismo, dizem, mas a Ideia justifica
tudo.
- Mas, camarada, você sempre falou que almejava a
democracia…
- Eu falei foi sobre o centralismo democrático do Partido;
não essa besteira de democracia burguesa sem controle, sem comando. Eu comandei
a democracia interna sempre. Quando tive de expurgar agentes trotskistas, foi
também uma festa poder limpar as estrebarias do Comitê Central. Dos 139
membros, fuzilei 98... Ah... Saudades do Zinoviev, Kamenev, Rykov, Bukharin…
- Eles tiveram liberdade de defesa?
- “Liberdade para quê?”, como respondeu Lenin quando
vencemos. Com liberdade não teríamos fuzilado a família do czar Nicolau II; só
um bolchevique profundo teria sangue frio para ver as criancinhas morrendo sob
balas. Esse é o preço da liberdade: a vigilância absoluta. Mas, o Brasil está
seguro contra os perigosos agentes de direita, neoliberais e espiões do
imperialismo. Vocês sabem que nós criamos os “sovietes” na Rússia, os
conselhos, como chamam vocês... Parabéns. Os conselhos são um primeiro passo
para controlar essa besteira de democracia representativa, que vocês tiveram a
sabedoria de usar, mas agora atrapalha a construção do bolivarianismo (ah, esse
meu filhote bastardo...). Ao menos minhas ideias ainda repercutem… Veja a
Venezuela, Argentina, tantos seguidores. A única coisa que importa é o controle
da sociedade. Temos de tutelá-la. Eu já disse uma vez: o povo deve ser educado
com o mesmo cuidado com que um jardineiro cultiva uma árvore de estimação. As
ideias são muito mais poderosas do que as armas. Nós não permitimos que nossos
inimigos tenham armas, por que deveríamos permitir que tenham ideias? Acho que
seu país está no bom caminho: controlar a mídia, como vocês chamam hoje. A
imprensa é a arma mais poderosa de nosso partido e vocês vão seguir nosso
exemplo. Toda propaganda tem que ser popular e acomodar-se à compreensão dos
menos inteligentes. Como você vê, estou repetindo as frases da besta do Hitler.
Mas ele nos deu um bom conselho, que serve muito para seu país, caro
jornalista: “Quanto maior a mentira, maior é a chance de ela ser acreditada”. O
povão não sabe nada. É isso aí, cumpanheiros: vão em frente que a luta
continua...