quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Lucas Berlanza: O que diz o anão diplomático?

Entre todas as muitas coisas que precisam mudar no Brasil, a nosso ver, destacaríamos duas como as mais urgentes. A primeira, e mais óbvia, é a intrusão além dos limites do razoável de uma heterodoxia intervencionista na política macroeconômica do país, como tão bem têm apontado, com muito mais propriedade do que nós poderíamos fazer, os prezados economistas – aqueles que não estão comprometidos com o (des)governo atual, naturalmente.  A recessão técnica está aí para não deixá-los mentir, e dificuldades deverão nos aguardar, inevitavelmente, como colheita dos anos de plantio desregrado. A segunda, não menos importante, é a política externa. Importante, porque somente pela sua reorientação poderemos resgatar nossa dignidade perante o mundo.

No último dia 16 de outubro, o Auditório Pedro Calmon, no campus da UFRJ na Praia Vermelha, recebeu, em evento especial organizado pelo Centro Brasileiro de Relações Internacionais, ninguém menos que o petista histórico Marco Aurélio Garcia, Assessor Especial da Presidência da República para Assuntos Internacionais. Uma boa plateia o aguardava, entre professores, estudantes – indecisos ou decididos (alguns adesivos de Dilma Rousseff podiam ser vistos presos às vestes do público) – e profissionais da imprensa.

O assessor não fez feio: não decepcionou quem já estava convencido, e pode ter seduzido quem não está “nem aí com a hora do Brasil” com uma palestra entremeada de colocações bem-humoradas e um discurso mais intelectual e repleto de referências históricas. Limitou-se a ironizar os críticos dos alinhamentos internacionais do Brasil e a atacar um suposto discurso de ódio irracional dos políticos e ideólogos de oposição – como se tais características não fossem inerentes ao modo de fazer política da legenda da estrela vermelha desde seu nascedouro. Depois disso, é que vieram as asneiras mais revoltantes, algumas tristemente recebidas com aplausos.

Não reproduziremos tudo que foi dito. Destacamos alguns pontos da exposição que mostram a fragilidade das ginásticas retóricas com que o PT, a essa altura do campeonato, insiste em mentir sobre seus próprios atos e sua própria história, da forma mais sórdida e, em muitos momentos, inacreditável para qualquer um com o mínimo de pudor.

Em primeiro lugar, Marco Aurélio sustenta a tese do governo de que o Brasil estaria sendo atingido agora pelos efeitos da crise econômica de 2008 – segundo ele, consequência das políticas da Conferência de Bretton Woods e do Fundo Monetário Internacional, no que apenas repetiu os discursos já altamente manjados de nossas esquerdas estatizantes contra o fantasmagórico “neoliberalismo”. As verdadeiras causas dessa crise, bem como o porquê de a afirmação acerca do Brasil ser estupidamente falsa – além da recessão, crescemos menos até que vários vizinhos, especialmente os que estão integrados à Aliança do Pacífico -, já foram exaustivamente explicadas e dissecadas. O governo, no entanto, insiste em distorcer os números e vender a versão de que está tudo às mil maravilhas e de que nosso modelo é exemplo para o mundo.

Sim, segundo Marco Aurélio, o mundo reconhece o Brasil como exemplo de “desenvolvimento econômico aliado à promoção da justiça social” e bla, bla, bla. Até, por exemplo, para a Alemanha, que, em seu modo de ver, estaria “despencando” – ou essa foi a primeira palavra que lhe saiu da boca, até perceber que tinha ido longe demais no entusiasmo cínico e retificar, falando em um “grande baque industrial”.  A situação justificaria políticas mais “protecionistas”, de “soberania nacional” – nós sabemos o que ele quer realmente dizer com isso.

De acordo com ele, o Brasil não é antiamericano e está procurando se reaproximar dos Estados Unidos depois do “ataque de espionagem”. Nem os petistas seriam loucos a ponto de anularem qualquer tipo de relação com a poderosa nação do norte. Até aí, nada de surpreendente. Marco Aurélio alegou ainda que o governo brasileiro não é bolivariano e ele próprio não tem qualquer identificação com o bolivarianismo – usando o termo como uma concepção política “nacionalista” própria de certos vizinhos, que nada teria a ver com o projeto de integração propugnado por lideranças como Lula, Fidel e o falecido Chávez via Foro de São Paulo. Uma simplificação eufemística; determinados termos são usados para sintetizar uma realidade, expressar didaticamente uma ideia. Quer o PT se diga bolivariano ou não, pouco importa; suas afinidades ideológicas e políticas com o projeto retrógrado de continente defendido pelos socialistas dos países próximos são notórias e assumidas. Marco Aurélio não nega essa relação peremptoriamente. Ao contrário, ele afirma que o Brasil optou pela ideia de fazer da América Latina um pólo de forças no mundo.

Aí é que ultrapassamos todos os limites do razoável. Segundo ele, estamos numa das regiões mais bem-sucedidas do planeta nos últimos tempos, devido à saída de diversas pessoas da miséria nos países locais e ao “aumento de investimentos” – de acordo com Marco Aurélio, os comentários de investidores que mostram receio de atuar por essas bandas são apenas mitologia oposicionista. A América Latina se notabilizaria ainda por ser berço de DEMOCRACIAS ALTAMENTE AVANÇADAS e ter apenas nações com governos livres, sem forte REPRESSÃO MILITAR. Marco Aurélio Garcia não pode estar falando sério. No continente em que temos uma Bolívia, em que um deputado ameaça eleitores com chicote se não depositarem seus votos conforme o interesse do governo, e uma Venezuela de Maduro, que dispensa maiores comentários, ficamos nos perguntando onde está o paraíso vislumbrado pelo assessor delirante.

Marco Aurélio não vê problema em nada disso, na verdade. Segundo ele, o Brasil não deve funcionar como “agência de certificação do respeito aos direitos humanos”; relacionar-se com ditaduras e regimes autoritários, para os quais não se poderia simplesmente cerrar as portas, é uma coisa. Construir portos em Cuba, fortalecer líderes deploráveis como Maduro e Morales, e afagar as ditaduras africanas, outra bem diferente, em que o Brasil não se limita ao comportamento de outros países com orientações mais civilizadas. Na verdade, isso deveria ser óbvio. Mas Marco Aurélio acredita que é um pensamento hipócrita, porque países como os Estados Unidos também violam direitos humanos, e muito mais do que os citados. A retórica é muito boa e pode enganar quem não tenha o menor senso de proporção, ou não queira ter. Mas, em sã consciência, não se pode comparar Cuba com os EUA. Simplesmente não dá. Na cabeça de uma das mentes do petismo, porém, pesos e medidas nada significam.

Finalmente, o momento que todos esperavam. Marco Aurélio mencionaria, em sua palestra, a indelicadeza do Brasil na questão israelense, quando ordenou a saída do embaixador do país durante o acirramento da crise com Gaza? Não. Sobre Oriente Médio, ele preferiu abordar a polêmica mais recente, com o Estado Islâmico. Aqui, a estupefação chega ao ápice: segundo ele, o Brasil apenas se opôs a intervenções armadas sem autorização do Conselho de Segurança, nada mais; não fomos irresponsavelmente indulgentes com os terroristas do Estado Islâmico. Ocorre que pouco importa o que Marco Aurélio ou a equipe do Itamaraty digam. Nossa representante máxima, a presidente da República, Dilma Rousseff, para o mundo inteiro ouvir, defendeu o “diálogo” como uma saída possível e necessária diante de facínoras que degolam pessoas para as câmeras sem o menor constrangimento. Disse que a “melhor forma é o diálogo”, que não acredita na eficácia da atitude, que deveria ser defendido o “acordo” (!!). Se não era bem isso que ela quis dizer, assessor, a culpa é dela e dos senhores, que a orientaram mal; não é da imprensa e dos setores da sociedade que reagiram com indignação à vergonha incomensurável que nos fizeram passar como pátria.


Cremos que é suficiente, encerremos aqui. Marco Aurélio se orgulha da política externa dos doze anos de PT. Os verdadeiros patriotas, por outro lado, pranteiam a orientação tupiniquim na contramão da história, sustentando e apoiando o que há de mais atrasado e destrutivo no concerto das nações. Se assim continuar, o qualificativo de “anão diplomático”, atribuído a nós pelo porta-voz do Ministério de Relações Exteriores israelense, Yigal Palmor, seguirá uma lamentável realidade, de todo destoante da sólida tradição dos tempos de Rio Branco e Oswaldo Aranha.