domingo, 12 de outubro de 2014

Pedro Malan: Fazendo o diabo

E assim falou Lula: “Portanto, se aqui for dito alguma coisa que eu já disse, é um defeito político, na verdade, um defeito genérico do político brasileiro, mas que, segundo os comunicadores, é sempre importante a gente repetir a mesma coisa muitas vezes, até que esta coisa se torne quase que uma verdade absoluta para todos nós” - em discurso na sessão de abertura da Marcha a Brasília em Defesa dos Municípios, no início do seu segundo mandato (10/4/2007).

Essa postura não era nova, como já mostrara o bordão sobre herança maldita após 2003, mas sua prática continuada ao longo do segundo mandato permitiria a Lula um arroubo extra de arrogância ao afirmar às vésperas das eleições de 2010: “A opinião pública somos nós”. Talvez porque se sentisse à beira de uma vitória que pretendia de caráter plebiscitário. Como é sabido, o PT disputou até agora (mérito seu, devemos reconhecer) nada mesmo que sete eleições presidenciais desde 1989, perdeu as três primeiras (duas no primeiro turno) ganhou as três seguintes e disputa agora, bem situado, sua sétima eleição presidencial.

Cabe lembrar que em nenhuma das eleições que ganhou (e da que ainda espera ganhar) o eleitorado brasileiro lhe concedeu a graça de uma vitória no primeiro turno. É difícil, pois, entender o arrogante “a opinião pública somos nós” de 2010. Assim como é difícil de aceitar a simplória visão de que a complexa, rica e diversa sociedade brasileira caiba na camisa de força da divisão entre o recorrente “nós” do petismo e o conjunto, nada desprezível, daqueles que têm opiniões distintas e recusam a rotulagem fácil como instrumento de desqualificação. Parte expressiva dos 142 milhões de eleitores brasileiros tem todo o direito de perguntar “nós quem?”, ao saber que uma mesma coisa deve ser repetida muitas vezes até que esta coisa se torne uma verdade quase que absoluta - e para todos nós.

Quatro meses atrás escrevi neste espaço: é bem possível que a máquina de propaganda do governo, com seus vastos recursos e amplo uso das instrumentalidades do poder, convença mais da metade dos eleitores de que eles devem votar de olhos postos nas “conquistas” que seriam, todas, “dos últimos 12 anos” e que “eles” (quaisquer oposições relevantes) iriam destruí-las se eleitos fossem. É lamentável, pela mentira, desfaçatez e hipocrisia, mas alguns dirão: “Isso é do jogo simbólico da política”. Como já foi feito no passado.

Fernando Gabeira foi ao ponto que importa em seu artigo no Globo de domingo passado: “Uma vitória do PT, creio, não pode ser atribuída apenas à sua capacidade de mentir e de atacar”. Não se deve nunca acusar o adversário pela própria derrota. Se não for possível resistir aos ataques e mentiras do PT, isso significa que vai ficar eternamente no poder. Por que mudaria de tática?

Com efeito, por que mudaria de tática, se não tivemos respostas políticas adequadas a deslavadas mentiras do tipo “eles” queriam (ou iriam se eleitos) privatizar a Petrobrás, o Banco do Brasil, a Caixa ou o BNDES. Ou do tipo “eles são contra, e se eleitos vão acabar com o Bolsa Família, o Minha Casa, Minha Vida e outros programas sociais do governo”. Ou “eles” não aumentaram o salário mínimo em termos reais - o que é mentira, e de má-fé. Ou a mentira de que os programas de transferência direta de renda para os mais pobres sejam uma criação petista, quando a medida provisória do governo Lula, mais de dez meses e meio após a sua posse, lista os programas que havia herdado do governo anterior, e os consolida, após reconhecer que era muito melhor ideia do que a alternativa que tentara por mais de dez meses. Não é correto, como sabe qualquer pessoa minimamente informada, que a estabilidade tenha sido uma conquista dos anos pós-2003.

A presidente chega à decisão do segundo turno carregando consigo três tipos de heranças - duas das quais de sua própria lavra. Sobre a primeira muito já escrevi neste espaço e posso agora apenas resumir. O Brasil não começou em 2003; os últimos 12 anos foram marcados por três períodos distintos: um Lula do primeiro mandato, que começou a acabar em marco/abril de 2006, um Lula II diferente até 2010 e o governo Dilma, que foi um Lula II muito mais problemático. A nova estratégia de marquetagem política, após afirmar não ser possível voltar ao “passado”, volta a 12 ou 16 anos atrás (1998 -2002) para acusar adversários de terem “quebrado por três vezes”. Uma mentira e uma tática diversionista para evitar discutir os sérios problemas que hoje enfrenta o País e os difíceis quatro anos à frente.

A segunda herança - e esta é a que importa agora - é a que o governo Dilma construiu para si (ou para seu sucessor) ao longo dos últimos quatro anos. E na qual só vê elementos positivos, os únicos problemas preocupantes sendo derivados da situação internacional. No front doméstico as coisas estariam absolutamente sob controle: inflação dentro da meta, situação fiscal sem problemas de credibilidade, investimento e crescimento sempre prestes a melhorar um dia. Mas o fato é que as legítimas preocupações com a combinação - há quatro anos - de muito baixo crescimento, muito baixo investimento e relativamente alta e renitente inflação constituem manifestações de problemas (não apenas de curto prazo) que não deixarão de existir porque são ignorados pela força da propaganda e de bravatas de campanha.


A terceira herança é a que a presidente Dilma vem construindo em seus discursos e debates de campanha, em especial ao longo dos últimos dois meses, criando para si própria armadilhas adicionais às que construiu com as políticas que implementou ao longo de seus quatro anos. São estas que estão sob o escrutínio agora, quando a presidente pede ao eleitorado mais quatro anos do mesmo, já que não reconhece problemas e, portanto, não vê necessidade de mudanças para enfrentá-los.