E assim falou Lula: “Portanto, se aqui for dito alguma coisa
que eu já disse, é um defeito político, na verdade, um defeito genérico do
político brasileiro, mas que, segundo os comunicadores, é sempre importante a
gente repetir a mesma coisa muitas vezes, até que esta coisa se torne quase que
uma verdade absoluta para todos nós” - em discurso na sessão de abertura da
Marcha a Brasília em Defesa dos Municípios, no início do seu segundo mandato
(10/4/2007).
Essa postura não era nova, como já mostrara o bordão sobre
herança maldita após 2003, mas sua prática continuada ao longo do segundo
mandato permitiria a Lula um arroubo extra de arrogância ao afirmar às vésperas
das eleições de 2010: “A opinião pública somos nós”. Talvez porque se sentisse
à beira de uma vitória que pretendia de caráter plebiscitário. Como é sabido, o
PT disputou até agora (mérito seu, devemos reconhecer) nada mesmo que sete
eleições presidenciais desde 1989, perdeu as três primeiras (duas no primeiro
turno) ganhou as três seguintes e disputa agora, bem situado, sua sétima
eleição presidencial.
Cabe lembrar que em nenhuma das eleições que ganhou (e da
que ainda espera ganhar) o eleitorado brasileiro lhe concedeu a graça de uma
vitória no primeiro turno. É difícil, pois, entender o arrogante “a opinião
pública somos nós” de 2010. Assim como é difícil de aceitar a simplória visão
de que a complexa, rica e diversa sociedade brasileira caiba na camisa de força
da divisão entre o recorrente “nós” do petismo e o conjunto, nada desprezível,
daqueles que têm opiniões distintas e recusam a rotulagem fácil como instrumento
de desqualificação. Parte expressiva dos 142 milhões de eleitores brasileiros
tem todo o direito de perguntar “nós quem?”, ao saber que uma mesma coisa deve
ser repetida muitas vezes até que esta coisa se torne uma verdade quase que
absoluta - e para todos nós.
Quatro meses atrás escrevi neste espaço: é bem possível que
a máquina de propaganda do governo, com seus vastos recursos e amplo uso das
instrumentalidades do poder, convença mais da metade dos eleitores de que eles
devem votar de olhos postos nas “conquistas” que seriam, todas, “dos últimos 12
anos” e que “eles” (quaisquer oposições relevantes) iriam destruí-las se
eleitos fossem. É lamentável, pela mentira, desfaçatez e hipocrisia, mas alguns
dirão: “Isso é do jogo simbólico da política”. Como já foi feito no passado.
Fernando Gabeira foi ao ponto que importa em seu artigo no
Globo de domingo passado: “Uma vitória do PT, creio, não pode ser atribuída
apenas à sua capacidade de mentir e de atacar”. Não se deve nunca acusar o
adversário pela própria derrota. Se não for possível resistir aos ataques e
mentiras do PT, isso significa que vai ficar eternamente no poder. Por que
mudaria de tática?
Com efeito, por que mudaria de tática, se não tivemos
respostas políticas adequadas a deslavadas mentiras do tipo “eles” queriam (ou
iriam se eleitos) privatizar a Petrobrás, o Banco do Brasil, a Caixa ou o
BNDES. Ou do tipo “eles são contra, e se eleitos vão acabar com o Bolsa
Família, o Minha Casa, Minha Vida e outros programas sociais do governo”. Ou “eles”
não aumentaram o salário mínimo em termos reais - o que é mentira, e de má-fé.
Ou a mentira de que os programas de transferência direta de renda para os mais
pobres sejam uma criação petista, quando a medida provisória do governo Lula,
mais de dez meses e meio após a sua posse, lista os programas que havia herdado
do governo anterior, e os consolida, após reconhecer que era muito melhor ideia
do que a alternativa que tentara por mais de dez meses. Não é correto, como
sabe qualquer pessoa minimamente informada, que a estabilidade tenha sido uma
conquista dos anos pós-2003.
A presidente chega à decisão do segundo turno carregando
consigo três tipos de heranças - duas das quais de sua própria lavra. Sobre a
primeira muito já escrevi neste espaço e posso agora apenas resumir. O Brasil
não começou em 2003; os últimos 12 anos foram marcados por três períodos
distintos: um Lula do primeiro mandato, que começou a acabar em marco/abril de
2006, um Lula II diferente até 2010 e o governo Dilma, que foi um Lula II muito
mais problemático. A nova estratégia de marquetagem política, após afirmar não
ser possível voltar ao “passado”, volta a 12 ou 16 anos atrás (1998 -2002) para
acusar adversários de terem “quebrado por três vezes”. Uma mentira e uma tática
diversionista para evitar discutir os sérios problemas que hoje enfrenta o País
e os difíceis quatro anos à frente.
A segunda herança - e esta é a que importa agora - é a que o
governo Dilma construiu para si (ou para seu sucessor) ao longo dos últimos
quatro anos. E na qual só vê elementos positivos, os únicos problemas
preocupantes sendo derivados da situação internacional. No front doméstico as
coisas estariam absolutamente sob controle: inflação dentro da meta, situação
fiscal sem problemas de credibilidade, investimento e crescimento sempre
prestes a melhorar um dia. Mas o fato é que as legítimas preocupações com a combinação
- há quatro anos - de muito baixo crescimento, muito baixo investimento e
relativamente alta e renitente inflação constituem manifestações de problemas
(não apenas de curto prazo) que não deixarão de existir porque são ignorados
pela força da propaganda e de bravatas de campanha.
A terceira herança é a que a presidente Dilma vem
construindo em seus discursos e debates de campanha, em especial ao longo dos
últimos dois meses, criando para si própria armadilhas adicionais às que
construiu com as políticas que implementou ao longo de seus quatro anos. São
estas que estão sob o escrutínio agora, quando a presidente pede ao eleitorado
mais quatro anos do mesmo, já que não reconhece problemas e, portanto, não vê
necessidade de mudanças para enfrentá-los.