A estrutura de uma filosofia é o que ela tem de mais patente
e de mais oculto ao mesmo tempo. Patente, porque está presente em todas as suas
partes, mesmo as mais ínfimas e humildes, as quais nada são fora dela. Oculto,
porque só está presente no fundo, como chave de travamento do conjunto, e
jamais como parte ou tema explícito em qualquer das partes. O filósofo que
tomasse como tema a estrutura da sua própria filosofia, para discorrer sobre
ela, já a estaria, nesse mesmo momento, inserindo como parte numa estrutura
maior.
Uma das conseqüências disso é que a estrutura jamais pode
ser revelada por nenhuma “análise de texto”, por mais meticulosa e bem
cuidadinha que seja, a qual só leva à estrutura da exposição, ou da obra
escrita, cuja relação com a estrutura da filosofia propriamente dita é sempre
variada e ambígua.
O método para apreender a estrutura de uma filosofia tem de
partir dos seguintes princípios:
(1) Toda filosofia, por abstrata e desinteressada que
pareça, é uma intervenção no curso dos negócios humanos. Visa sempre a
modificar ou reforçar o estado de coisas na sociedade, na cultura, na ciência,
na religião, nos costumes, ou mesmo na condição humana em sua totalidade,
(2) Para esse fim, ela procede a um exame em profundidade
dos obstáculos, cognitivos ou de qualquer outra ordem, que impedem ou
dificultam a sua consecução, tentando criar os meios intelectuais e práticos
para removê-los.
(3) Sua estrutura, portanto, define-se como uma articulação
de fins e meios: Qual a meta histórico-cultural proposta e qual a estratégia, a
um tempo cognitiva e persuasiva, usada para legitimá-la e viabilizá-la?
Dito de outro modo, a estrutura de uma filosofia só se
revela quando o discurso em que ela se expressa é examinado não como um puro
sistema de idéias e doutrinas, mas como uma ação humana, a intervenção de um
indivíduo intelectualmente privilegiado na vida dos seus semelhantes
supostamente menos dotados que estejam dispostos a ouvi-lo.
Ora, o exame de um discurso como modalidade de ação humana é
o campo especializado dos estudos retóricos, da arte da persuasão. Para
apreender a estrutura de uma filosofia, a articulação dos seus fins com os seus
meios, é preciso portanto examiná-la desde o ponto de vista retórico,
considerando-a como esforço de persuasão destinado a produzir, através de
modificações na esfera cognitiva, determinados efeitos na vida histórico-social
ou até na vida humana em geral.
O que faz com que essa obviedade seja freqüentemente
esquecida é que a exposição das idéias filosóficas se faz em geral por meio de
um discurso lógico-dialético que despreza o apelo à persuasão retórica e
pretende situar-se no campo da demonstração estrita, das certezas intelectuais
imunes aos atrativos da oratória.
Acontece que esse discurso, enquanto tal, não é “a”
filosofia, mas apenas o conjunto ou sistema de meios intelectuais pelos quais
ela busca realizar os seus fins. Se o examinamos “em si mesmo”, sem
subordiná-lo aos fins a que deve servir, perdemo-nos numa infinidade de
“problemas filosóficos” ou acidentes de percurso, sem jamais atinar com a
estrutura da filosofia em questão, a qual estrutura consiste precisamente na
articulação dos fins com os meios.
No empenho de discernir essa estrutura, é portanto
necessário compreender o discurso lógico-dialético como parte e instrumento de
um esforço de persuasão, isto é, de um empreendimento que, visto no conjunto,
não é e não pode ser senão de ordem retórica.
O método, portanto, para descobrir a estrutura de uma
filosofia reside na análise retórica do seu discurso, discernindo nele os
quatro elementos que nos tratados clássicos definem todo discurso retórico: a
“situação” de discurso, isto é, o quadro histórico, social, cultural e psicológico
onde ele emerge e no qual pretende intervir; o “juiz”, isto é, o público em
especial a que se dirige e sobre o qual pretende influir; o “objetivo” ou meta,
isto é, a modificação específica que pretende introduzir no quadro; e por fim o
“discurso” mesmo, isto é, o conjunto de meios de argumentação, prova e
persuasão colocados em ação para realizar esse fim.
Felizmente, o objetivo ou meta – o “para quê”, em última
análise, o filósofo está fazendo o que faz – vem explicitamente declarado na
maior parte das filosofias. Basta procurá-lo. A dificuldade reside em que nem
sempre ele consta das partes consideradas mais importantes ou mais nobres da
obra filosófica – às vezes só aparece em cartas pessoais ou trabalhos menores
--, de modo que o estudioso, especialmente quando adestrado numa tradição de
ensino que privilegia sobretudo a análise dos textos enquanto tais e se
concentra por isso nos de maior prestígio, pode se perder num emaranhado de
dificuldades de percurso e não chegar jamais a perguntar-se para onde, afinal,
o filósofo o está levando com tudo isso. É assim que a mais requintada
sofisticação dos meios de análise pode se tornar uma apurada técnica de não
entender nada.
Embora eu não conheça nenhum caso em que o objetivo tenha
permanecido totalmente oculto, o filósofo pode ter um bom motivo para mantê-lo
discreto, quando o considera perigoso ou revolucionário demais para poder, sem
escândalo, ser exibido em público nas partes mais nobres e vistosas da sua obra
escrita. Neste caso é necessário procurá-lo em escritos menores e de ocasião,
cuja importância estratégica no conjunto escapa à atenção do analista vulgar,
deslumbrado ante o prestígio das “grandes obras”.
É esse, precisamente, o caso de Immanuel Kant, de Descartes
e de Maquiavel.