“É um absurdo vender isso. A sociedade não participou do
debate sobre o tema. Nossa tentativa é sensibilizar o governo para negociar e
discutir.” As sentenças, de Francisco José de Oliveira, diretor da Federação
Única dos Petroleiros (FUP), referiam-se ao leilão de Libra, na faixa do
pré-sal. Mas a lógica subjacente a elas, expressa na segunda frase, nada tem de
singular. Nas duas últimas décadas, os “movimentos sociais” repetem
aborrecidamente a ladainha sobre “a sociedade” excluída do “debate”, enquanto
invadem órgãos públicos em nome da “participação”. Vivemos nos tempos do
supercorporativismo, um ácido corrosivo derramado sobre o material de nossa
democracia.
O Brasil moderno nasceu, pelo fórceps de Getúlio Vargas, sob
o signo do corporativismo. A “democracia social” do Estado Novo cerceava os
direitos do indivíduos, subordinando-os a direitos coletivos. Na definição do
historiador Francisco Martinho, “o cidadão nesse novo modelo de organização do
Estado era identificado através de seu trabalho e da posse de direitos sociais
e não mais por sua condição de indivíduo e posse de direitos civis ou
políticos” (“O corporativismo em português”, Civilização Brasileira, 2007, p.
56). Inspirado no salazarismo português e no fascismo italiano, o
corporativismo varguista organizou a sociedade como uma família tripartida:
governo, sindicatos patronais e sindicatos de trabalhadores. O
supercorporativismo, uma obra do lulopetismo, infla o balão do corporativismo
original até limites extremos.
Um traço forte, comum a ambos, é o desprezo pelos direitos
civis e políticos, que são direitos individuais associados à ordem da
democracia representativa. A principal diferença encontra-se no atributo
nuclear da cidadania: o cidadão varguista definia-se pelo trabalho; o cidadão
lulopetista define-se pela militância organizada. No Estado Novo, a carteira de
trabalho funcionava como atestado de inserção na ordem política nacional. Sob o
lulopetismo, o documento relevante é a prova de filiação a um “movimento
social”. Na invasão do Ministério das Minas e Energia, junto com a FUP, estavam
líderes do Movimento dos Sem Terra (MST) e do Movimento dos Atingidos por
Barragens (MAB) - que, em tese, não têm interesse no tema da exploração do
pré-sal. A sociedade, segundo o supercorporativismo, é a soma das entidades
sindicais e dos “movimentos sociais”. É por isso que, sem o consenso dessas
corporações da nova ordem, nenhum assunto jamais estará suficientemente
“debatido”.
Lula nasceu no berço do sindicalismo. O PT estabeleceu, na
origem, íntimas relações com os “movimentos sociais”. Nas democracias, a
sociedade civil organiza-se para exercer pressão legítima sobre os poderes de
Estado. O lulopetismo, porém, borrou a fronteira entre sociedade civil e Estado
assim que chegou ao governo: sua reforma da CLT estendeu a partilha do imposto
sindical varguista às centrais sindicais, enquanto os “movimentos sociais”
passaram a receber financiamento público direto ou indireto. O cordão umbilical
que liga o poder de Estado aos “movimentos sociais” é a Secretaria Geral da
Presidência, um ministério estratégico chefiado por Luiz Dulci, no governo
Lula, e por Gilberto Carvalho, no governo Dilma Rousseff. Os dois engenheiros
do edifício do supercorporativismo pertencem ao círculo de fiéis incondicionais
de Lula.
O PT sempre enxergou os “movimentos sociais” como tentáculos
partidários. Os líderes mais destacados desses movimentos são militantes
petistas. O financiamento público elevou a conexão a um novo patamar: na última
década, eles se converteram em satélites do Palácio. Os dirigentes do MST, do
MAB e de inúmeros movimentos similares ajustam suas agendas políticas às do
Partido e cerram fileiras com o lulopetismo nos embates eleitorais. Durante a
odisseia do mensalão, eles desceram às trincheiras enlameadas para proteger
José Dirceu et caterva. Contudo, na dialética do supercorporativismo, os
“movimentos sociais” também precisam promover mobilizações contra o governo,
sob pena de se condenarem à irrelevância.
O corporativismo varguista almejava a harmonia social. No
mecanismo de regulação do lulopetismo, a desordem é um componente da ordem. Os
“movimentos sociais” palacianos produzem fricções cíclicas, que são reabsorvidas
pelo recurso a negociações simbólicas e compensações materiais. A extensão
inevitável do “direito à desordem” a movimentos controlados por facções
dissidentes (PSOL, PSTU) provoca perturbações suplementares, mas,
paradoxalmente, robustece os alicerces lógicos do supercorporativismo. Os
invasores do Ministério de Minas e Energia são obrigados a confirmar
periodicamente seu estatuto de interlocutores privilegiados do poder por meio
de ações de contestação limitada da ordem.
A democracia representativa ancora-se no princípio da
soberania popular, que é exercida por meio da delegação de poder, em eleições
gerais. O sistema político-partidário brasileiro desmoraliza a representação
para assegurar privilégios especiais a uma elite política de natureza patrimonialista.
O lulopetismo, um sócio majoritário desse sistema, aproveita-se de seus desvios
para erguer o edifício do supercorporativismo como esfera paralela de
negociação política. Na dinâmica extraparlamentar do supercorporativismo, o
Partido pode ignorar as demandas dos cidadãos comuns, dialogando exclusivamente
com a casta mais ou menos amestrada de dirigentes dos “movimentos sociais”.
Sabe com quem está falando? Você só é alguém se possuir a carteirinha de um
“movimento social” - eis a mensagem veiculada pelo Palácio.
Nas “jornadas de
junho”, manifestações multitudinárias falaram em “saúde” e “educação”,
reivindicando direitos universais estranhos à lógica do supercorporativismo.
Por isso, nervoso e assustado, o Partido as rotulou como uma “reação da
direita”. Ah, bom...