Na cadeia se diz: aqui o filho chora e a mãe não ouve. Na
política a expressão é outra: a situação está de vaca não reconhecer o bezerro.
Ambas denotam uma crise, pela suspensão do amor materno, e revelam um certo
desamparo, um mundo de ponta-cabeça.
Às vezes a atmosfera político-cultural do Brasil, neste
longo período de dominação do PT, transmite essa sensação, mais evidente nas
ruas, onde quase toda manifestação termina em violência, mesmo quando sua
bandeira é a defesa dos animais.
Marina Silva lançou a ideia de salvar Dilma Rousseff dos
políticos fisiológicos, evitando que deles se torne refém. Não ficou muito
claro para mim. Passa a ideia de uma donzela imaculada assediada por
experientes chantagistas, como se o governo não fosse também um fator decisivo
nesse processo. Onde a proposta de Marina sugere dependência, vejo uma
interdependência. Se consideramos o governo refém da fisiologia, é preciso
reescrever a história do mensalão, isentando o partido do governo de sua maior
responsabilidade.
Também não entendi, no front político-cultural, a defesa da
autorização prévia de biografias. Tantas pessoas queridas, entre elas Caetano
Veloso – a quem tenho gratidão – embarcam num equívoco por falta de um debate
mais amplo.
Para começar, a importância das biografias em nossa
formação. Pela trilogia de Isaac Deutscher sobre Trotsky muito se aprendeu
sobre a Revolução Russa e os bolcheviques. Sem Rüdiger Safranski não teríamos
uma história equilibrada da vida de Martin Heidegger, sem Robert Skidelsky não
conheceríamos a vida de lorde Keynes. É um território delicado, pois sem as
biografias não conheceríamos a vida de Mao Tsé-tung, nem os pecados dos nossos
políticos – que certamente iriam aproveitar-se desses dois artigos
inconstitucionais que determinam autorização prévia para publicação de
biografias.
Os argumentos também foram defendidos de forma ambivalente.
Na maioria das vezes, falava-se em defesa da privacidade. Mas, em outras,
surgia a questão do dinheiro, da falsa suposição de que biografias no Brasil rendem
fortunas. O artigo de Mário Magalhães contando suas dificuldades para biografar
Carlos Marighella é muito mais próximo da realidade, pois revela como ele
gastou dinheiro do próprio bolso para completar o seu livro.
Quando surgem de um mesmo núcleo a defesa da privacidade e
demandas financeiras, cria-se a falsa impressão de que são intercambiáveis.
Quanto custariam, por exemplo, os detalhes da relação com a cunhada numa
biografia de Sigmund Freud?
De um ponto de vista existencial, os admiradores dos grandes
artistas que participam do movimento ficam preocupados com um debate
biográfico. Ainda esperamos deles tantas canções, tantos espetáculos, tantas
aventuras políticas, tantos amores… Quem sabe o melhor não virá nos últimos
capítulos, nos anos ainda não vividos?
Nas ruas, os black blocs de uma certa forma conseguiram
propagar a violência. Isso só é possível por falta de uma certa cartilagem
tecida pela política. Tudo vai direto ao osso, termina em incêndio e
pancadaria.
Historicamente, essas ondas de violência levam a leis mais
rígidas e mais repressão. Quem vem de longe tem o dever de lembrar isso. Mas
leis mais rígidas não resolvem sozinhas. O sistema político no Brasil precisa
recuperar o mínimo de credibilidade e o sistema repressivo, desenvolver o
mínimo de inteligência e capacidade de análise.
No passado os políticos metiam-se no meio dos conflitos com
a disposição de atenuá-los. Hoje fogem dos conflito com medo justificado de
apanhar da multidão. O Congresso foi incapaz de produzir um debate sobre a
violência nas ruas. A sensação é de que as raposas políticas aceitam a explosão
de violência porque sabem que ela os ameaça menos que os grandes protestos de
massa. Na verdade, ao inibir potenciais manifestações pacíficas os black blocs
criam uma camada de proteção útil ao político que se aproveita da confusão para
seguir sendo o que é.
O mundo está mesmo virado. Os black blocs consideram-se
revolucionários. E no momento em que poderosos instrumentos internacionais
devassam a privacidade de bilhões de pessoas, nosso tema central é a biografia
de pessoas famosas.
A defesa do aumento do consumo como o único valor político
moral nos levou a esse abismo. A gente não quer só comida. Os artistas têm um
grande papel na superação dessas ruínas, sobretudo as de Brasília. Grandes
momentos nos esperam e Chico Buarque foi bastante simples ao dizer: “Se a lei é
esta, perdi”.
A lei é a Constituição. Se não for essa, teremos perdido
nós. Não deixarei de lamentar uma contradição tão explícita entre a sentença e
um dos seus artigos essenciais: o que prevê a ampla liberdade de expressão.
No momento, o filho chora e a mãe não ouve, a vaca não
reconhece o bezerro. É a crise. Suspensa a presença materna, temos de enfrentar
uma certa solidão na busca pela saída. O caminho será encontrado via diálogo,
mas sem a ilusão de considerar o governo refém da picaretagem. Foi o governo,
em sua estreiteza e seu materialismo vulgar, que acabou provocando essa crise:
a galinha aterrissou do voo econômico e só cacareja no chão suas previsões
otimistas.
Estamo-nos acostumando com as chamas urbanas. Uma pedrada
aqui, um coquetel molotov ali, produzimos uma rotina burocrática, sintonizada
com o pântano político. Nos fronts político, social e cultural o alarme está
soando há algum tempo. Conseguimos sobreviver a uma longa ditadura militar.
Será que vamos capitular diante de um governo que distribui cestas básicas e
Bolsas Família?
O País foi moralmente arrasado pela experiência petista e de
todos os cafajestes que o governo conseguiu alinhar. Predadores oficiais e
predadores de rua se encontram nessa encruzilhada em que um profundo silêncio
político se abate sobre nós, com exceção de vozes isoladas.
Precisamos reaprender a conversar, reafirmar valores
políticos que não se resumem a casa e comida. Precisamos viver a vida, cuidar
mais da bio que da grafia. Precisamos sair dessa maré.